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Crítica
25 de Fevereiro de 2008   Filosofia da religião

Mary e os criadores

Michael Martin
Tradução de Vítor Guerreiro

A seguinte história, da autoria da falecida Lois Grave, foi encontrada entre os seus papéis após o seu suicídio e foi primeiro publicada pela Eastview State Press numa colecção intitulada Ensaios Filosóficos e Histórias. É aqui reeditada com permissão da Eastview State Press e de Clarence Grave, o pai de Lois. Numa carta ao seu professor, Michael Martin, Lois indicou que via esta e outras histórias acerca de Mary Taylor como um modo possivelmente frutuoso de gerar hipóteses sobre o encontro histórico que ocorreu efectivamente entre Paley e Taylor. As notas de rodapé indicam que Grave usou os criadores na sua narrativa apenas como um modo dramático de afirmar uma ideia filosófica e que não pretendia com eles indicar que acreditava em seres sobrenaturais finitos.

Vieram do caos infinito, criando incessantemente novos mundos. Quando ficavam moderadamente satisfeitos com os seus resultados, avançavam para outras planícies metafísicas e dimensões ontológicas. Antes que ficassem satisfeitos, muitos mundos se arruinavam e eram abandonados, muitos universos eram destruídos e reconstruídos. Ocasionalmente, os criadores contemplavam as suas criações e diziam “Isto é mau!” ou “Podemos fazer melhor!” Assim, os criadores eram impelidos por uma insaciável vaga de poder criativo que os impedia de ficar completamente satisfeitos com os seus produtos.

Como os próprios criadores vieram a existir era coisa que nem eles sabiam. Alguns imaginavam ter sido criados por uma raça anterior de criadores, que por sua vez teria sido criada por uma raça ainda mais antiga de criadores, e assim sucessivamente, para todo o sempre. Outros acreditavam que a sua raça sempre existira e que assim eram coeternos com o próprio universo.

Os criadores tinham um poder vasto mas finito e decerto não eram sumamente bons. Na verdade, impelidos pela sua enorme energia criadora, mostravam-se amiúde orgulhosos, ambiciosos, impiedosos. A felicidade das suas criaturas não lhes importava: a glória, a beleza, a novidade das suas criações, sim. Embora tendo imenso conhecimento, não eram omniscientes. Era frequente calcularem mal as consequências do que criavam e não compreendiam cabalmente o caos turbulento de onde retiravam as suas matérias-primas. Trabalhando em conjunto, conseguiam combinar os seus conhecimentos para construir novos mundos. Quando cooperavam, o seu poder combinado era glorioso e impressionante. Muitos milénios havia durante os quais erguiam triliões de nebulosas, regidas por leis naturais elegantemente simples, povoadas por criaturas de admirável inteligência e integridade moral, todas encerradas num contínuo espaciotemporal de dimensões múltiplas. Nestes momentos os criadores alegravam-se, saboreando o seu trabalho, e procuravam exceder-se.

Mas decorriam também biliões e biliões de anos em que os criadores ficavam desanimados com as suas criações. Durante este tempo faziam incontáveis universos que os decepcionavam e os envergonhavam. Por vezes o seu trabalho revoltava-os a tal ponto que nem sequer o destruíam. “Preservemos este universo”, diriam então, “como lembrança do que não devemos fazer. Usá-lo-emos de tempos a tempos como modelo de uma criação fracassada”. Dito isto, abandonavam este mundo criado, regressando éones mais tarde para inspeccionar o seu fracasso.

Num certo sistema solar de uma certa galáxia, num certo universo, havia um planeta chamado “Terra”, o único planeta que nesse sistema era habitado por vida inteligente. Esta vida inteligente por vezes discutia a origem do mundo em que vivia. Uma teoria popular defendida pela vida inteligente era a de que o universo fora criado por um ser chamado “Deus”. A vida inteligente desenvolveu vários argumentos para provar a existência deste ser. Um desses argumentos chamava-se “Argumento do Desígnio” — o Argumento Teleológico.

* * *

— O Arquidiácono de Carlisle, Reverendo Paley, vai dar hoje um sermão —, disse a Sr.ª Taylor para a sua filha, Mary. Mary acenou. Estava ansiosa por ouvir o grande homem. Sabia que Paley era autor de diversos tratados eruditos em defesa da cristandade, além de um orador impressionante. Na verdade, Mary tentara pedir emprestado um dos livros de Paley sobre teologia ao seu primo, Robert, que é estudante em Cambridge. Contudo, o seu pai descobrira e proibira-o.

— Filha minha não anda a encher a cabeça com uma data de argumentos teológicos retorcidos, — vociferou. — A Mary precisa de encontrar um marido, não de refutar teólogos obscuros.

Mary adorava refutar os argumentos dos teólogos e de quem quer que tivesse a coragem de apresentar argumentos.

— Ela pensa como um lógico — queixava-se habitualmente o pai. — Como poderá arranjar marido se descobre as falácias nas promessas dos pretendentes?

— O Reverendo Paley não é obscuro, pai — observou tranquilamente Mary, a caminho da igreja. — Na verdade, é um dos mais conhecidos teólogos em Inglaterra. O seu tratado sobre...

— Por favor, não me contradigas — pediu o Sr. Taylor, tentando ser paciente. — Quer seja obscuro ou não, a sua escrita não é para consumo feminino. Na verdade, tenho sérias reservas quanto a ires ouvi-lo. Depois do sermão agradecia que guardasses os comentários para ti própria. Muita boa lição se tem estragado com as tuas perguntas incisivas durante o regresso a casa.

— Sim, Pai — respondeu Mary.

No banco da igreja, Mary sentou-se com uma atenção extasiada enquanto o Reverendo Paley argumentava em termos gerais que o intricado funcionamento da natureza e dos organismos, a complexa inter-relação das partes e do todo, as subtis conexões entre os aspectos do mundo, podiam ser usados como indícios em favor da hipótese de que o universo foi concebido por uma grande inteligência. Um argumento em prol da Divindade, dizia, deve basear-se numa analogia. Dada a analogia entre o universo e um artefacto humano que sabemos ter sido concebido, o próprio universo terá provavelmente sido concebido. Paley iniciou então a sua palestra sobre a analogia do relógio, de que Mary ouvira falar ao seu primo Robert. O Reverendo Paley defendeu que do mesmo modo que podemos inferir com base num relógio encontrado num terreno baldio que alguém o construiu, podemos também inferir que o universo foi construído por alguém. As suas palavras ressoaram na congregação ali reunida:

— Todo o indício de engenho, toda a manifestação de concepção que existe no relógio existe no funcionamento da natureza; com a diferença, do lado da natureza, de ser maior e mais numerosa, e num grau que excede o raciocínio.

Ao sair da igreja, a imaginação de Mary fervilhava. A analogia do relógio, crucial para o argumento do Reverendo Paley, era bastante problemática. Mary pensou: “Se levássemos a analogia do relógio às suas últimas consequências lógicas, chegaríamos a conclusões inaceitáveis para o Arquidiácono ou para qualquer bom cristão, inclusive a Mãe e o Pai. Os relógios são normalmente construídos por muitos seres inteligentes. Assim, o argumento implica alguma forma de politeísmo em vez de um monoteísmo! Além disso, os seres que constroem relógios têm corpos, de modo que Deus tem de ter um corpo. Mas isto é absurdo! Se um relógio tem imperfeições, há razão para supormos que o relojoeiro não é perfeito. Então, uma vez que o universo tem imperfeições, concluiríamos que Deus não é perfeito, mas isto contradiz a doutrina cristã”.

Ao subir para a carruagem, ocorreu-lhe ainda outra ideia. “Não será possível fazer outras analogias? O universo é como uma planta em certos aspectos e como um animal noutros. Se seguirmos completamente estas analogias, chegamos a conclusões bastante diferentes da defendida pelo Arquidiácono, de que o universo foi criado por uma inteligência divina”. Os pensamentos de Mary foram interrompidos pela voz do seu pai.

— Na minha opinião, foi um sermão esplêndido e edificante — afirmou o Sr. Taylor.

Mary permaneceu em silêncio e fitou o chão. O Sr. Taylor observou a sua brilhante filha durante algum tempo. Por fim disse:

— Depreendo pela tua conduta, Mary, que não encontraste qualquer defeito no sermão de hoje.

— Bem — exclamou Mary, mais animada — houve um ou dois pormenores que...

A Sr.ª Taylor pôs a mão no braço da filha e Mary parou.

— Sim, Pai, o sermão foi esplêndido.

* * *

Regressando ao cabo de incontáveis éones, os criadores vieram inspeccionar o que pensavam ser um dos seus fracassos. Concentraram-se num sistema solar da galáxia, onde há um planeta chamado “Terra”, o único planeta que daquele sistema era habitado por vida inteligente.

— Reparem no terceiro planeta deste sistema — disse o primeiro criador.

— As criaturas inteligentes que o habitam são dignas de dó e algo estúpidas — observou o segundo criador.

— Sim, e a sua eficácia é severamente debilitada pelas muitas doenças e catástrofes naturais que os afligem — disse o terceiro criador.

— Podíamos ter feito muito melhor — sugeriu o quarto criador.

— Que vergonha! — exclamou o quinto criador.

— Destruímo-lo? — perguntou o primeiro criador.

— De modo algum — respondeu o terceiro criador. — Podemos aprender com os nossos erros.

— Reparem como eles nem sequer conseguem fazer inferências a partir dos factos — alertou o quinto criador.

— A criatura de nome Paley é um exemplo típico — comentou o segundo criador. — Infere que o mundo foi criado por Deus, um ser omnipotente, omnisciente, sumamente bom!

— Sim, sim, é deveras absurdo — disse o terceiro criador.

— Mas noto com interesse que nem todas as nossas criaturas são assim tão obtusas. Reparem na criatura de nome Mary Taylor! Quase todas as suas inferências estão correctas — observou o quinto criador.

— Pois é! — exclamou o primeiro criador.

Por fim, falou o sexto criador:

— Não reconheço este universo.

— Que queres dizer? — perguntou o quarto criador.

— Não creio que o tenhamos criado. — replicou.

— Quê? Isso é um disparate! Como poderia existir sem nós? — inquiriu o quinto criador.

— Os universos poderiam surgir do nada. Poderiam ser criados espontaneamente. Durante muitos éones suspeitei que isto por vezes ocorre — afirmou o sexto criador.

— Que ideia ridícula! — Exclamou o segundo criador. — Como podes explicar sem nós a ordem e a aparência de concepção que há neste universo?

— Dado o tempo suficiente e as criações espontâneas suficientes, certamente que alguns universos exibiriam uma quantidade considerável de ordem — afirmou o sexto criador.

— Esta especulação é improdutiva! Mesmo que esta não fosse uma das nossas criações, é decerto semelhante a outras inumeráveis criações que são nossas. Pode servir um objectivo e não devia ser destruída apesar das suas imperfeições — disse o primeiro criador.

— Ainda assim, a ideia de que os mundos podem surgir sem nós é perturbadora. Fica-se a pensar se tais mundos espontaneamente gerados poderão superar os que foram criados por nós — disse o terceiro criador.

— Basta! Vamos embora! Aprendemos tudo o que podíamos aprender aqui, por agora — afirmou o segundo criador. — Voltaremos noutra altura!

— Temos novos mundos para construir! — exclamou o primeiro criador.

Dito isto, os criadores, de algum modo alertados pela nova ideia, desapareceram no caos infinito em busca de novas oportunidades de construir universos e edificar mundos.

* * *

Quando chegaram a casa depois da igreja, Mary continuou a pensar no sermão de Paley, tendo o cuidado de guardar para si as suas ideias. “Será possível”, indagava, “que o nosso universo tenha surgido a partir do nada? Que tenha simplesmente vindo de repente à existência? Se um número suficiente de tais universos veio subitamente à existência, certamente que alguns poderiam ser como o universo de relojoeiro de Paley, isto é, como o nosso! Será que devo mencionar esta possibilidade ao Pai? Não, é melhor não. Falarei com o Robert quando ele cá estiver durante as férias. Oh, quem me dera ser homem!”

Michael Martin
The Big Domino in the Sky (Prometheus Books, 1996)
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ISSN 1749-8457