Menu
Crítica
21 de Outubro de 2011   Filosofia

Ensinar filosofia a crianças

Faustino Vaz, Ana Paula Cabeça e Carla Pereira

Esta comunicação dá conta do que se fez nas aulas de Filosofia do 2.º ciclo (alunos com 10 e 11 anos), na escola Dr. Manuel Laranjeira. A oportunidade que nos foi dada, e que desde já agradecemos, pareceu-nos vir em boa hora para contar como as coisas realmente se passaram. Na primeira secção, trataremos de dizer de que modo este projecto, se é que lhe podemos chamar assim, começou. (Pedimos desculpa por esta secção estar redigida na primeira pessoa, quando somos três a apresentar esta comunicação; a verdade é que, infelizmente, foi sobretudo na primeira pessoa que, num primeiro momento, quase tudo teve de acontecer.) Diremos na segunda secção como este projecto se desenvolveu ao longo de três anos, descrevendo as aulas que de facto foram dadas, e não as aulas concebidas à partida. Por fim, faremos uma espécie de ponto da situação e diremos o que será feito de todo este esforço.

Depois de referida a bibliografia essencial, será ainda apresentada, como exemplo do trabalho desenvolvido, uma das lições exploradas nas aulas.

1. Como começou

Nada disto começou a ser planeado na altura devida. A pouco mais de um mês do início do ano lectivo de 2008/09, nos primeiros dias de Agosto, e estando eu a gozar férias, um telefonema da então directora da escola convidava-me a abraçar a ideia de ensinar filosofia no 2.º ciclo, um ciclo de estudos que a escola iria receber pela primeira vez. O convite foi insistente e, sem me dar tempo para pensar, tão grande foi a surpresa, terminou admitindo que a escola poderia contar comigo. Num gesto que se revelou inútil, ainda tentei impedir que se tomasse logo ali uma decisão. E foi assim que fiquei com umas férias estragadas.

Pareceu-me que teria de responder desde logo às duas questões seguintes: que problemas filosóficos seria mais apropriado tratar com alunos de 10 e 11 anos e que forma dar às aulas. Consultei então colegas, manuais de filosofia para crianças e até psicólogos, tantas eram as dúvidas que tinha. Com muita insegurança, concebi uma espécie de programa, na tentativa de fornecer algum conteúdo e propósito ao que teria de fazer. Esse programa definia um conjunto de pressupostos, determinava um método, concebia uma estrutura didáctica, identificava o tipo de problemas que seriam tratados e adoptava uma forma de avaliação. Ainda que isto pudesse ser rudimentar ou mesmo ingénuo, era, pelo menos, um começo.

Convém dizer em que consistia cada uma dessas partes do programa.

Os pressupostos eram os seguintes. O lugar central seria ocupado pela discussão dos problemas filosóficos através do método socrático; a discussão disciplinada, e não os seus resultados, seria o mais importante. Os alunos seriam ensinados e encorajados a pensar de modo autónomo e a formar o seu juízo; desenvolveriam competências intelectuais de raciocínio, avaliação crítica, pesquisa e pensamento criativo; e desenvolveriam ainda competências emocionais de autoconhecimento dos seus sentimentos, de empatia e de regulação das suas emoções.

O método socrático teria obviamente uma dimensão racional, testando ideias e argumentos, mas teria também uma dimensão ética, baseada sobretudo na tolerância e no respeito pela investigação da verdade, que se sobreporia à expressão corrente de opiniões. Apelaria, por isso, a uma estrutura didáctica que procurasse tornar vívidos os problemas e estimular a discussão racional acerca das respostas que lhes eram dadas. Isso seria feito com histórias que combinassem a técnica da experiência mental com elementos narrativos. Com estes, esperava-se tornar de facto vívidos os problemas, captando de maneira mais eficaz a atenção dos alunos. Com a técnica da experiência mental, esperava-se limitar as variáveis do problema contidas na história, facilitando a discussão racional. A combinação da técnica da experiência mental com elementos narrativos respondia ao desejo de introduzir uma nota realista nas situações imaginárias, evitando assim que os alunos discutissem casos muito idealizados. As histórias, que seriam o elemento didáctico central, teriam a forma de um diálogo escrito, e nisso residiria mais um aspecto socrático das aulas. Depois de lidas, seriam discutidas com a ajuda de um conjunto de questões. Esta seria uma das maneiras de disciplinar a discussão, para que ficassem claras três coisas: um problema conceptual, respostas a esse problema e argumentos a favor dessas respostas. Ao longo da discussão seriam anotados os resultados mais interessantes, sem dúvida aqueles que captassem aspectos relevantes do problema, das respostas ou dos argumentos. Havia também o desejo de que cada aluno formasse o seu melhor juízo e que esse fosse o seu pensamento filosófico acerca do problema.

E que problemas seriam apresentados aos alunos? Resumidamente, problemas das disciplinas de ética, especialmente de ética prática e normativa, de filosofia política, e talvez de filosofia da mente e de lógica. No entanto, um aspecto não poderia ser descuidado: os problemas éticos mais duros e intensos do ponto de vista emocional teriam de ser excluídos. Os que à partida parecessem susceptíveis de tratamento didáctico para estas idades teriam, ainda assim, de ser apresentados de maneira sóbria. A discussão racional dos problemas mais comuns de filosofia da religião, à primeira vista uma boa escolha, poderiam gerar incompreensões, talvez não tanto nos alunos, mas sobretudo nos seus pais. Este receio levou a que não fossem incluídos no programa.

Finalmente, como já foi referido, o programa adoptaria uma forma de avaliação. Num primeiro momento, os alunos fariam uma auto-avaliação das suas competências quanto a escutar e responder às intervenções ocorridas na aula. Seria portanto uma auto-avaliação ajustada às competências transversais não filosóficas envolvidas na dimensão ética do método socrático. O seu registo seria feito na grelha de auto-avaliação A. Por sua vez, a auto-avaliação das competências de interrogar e raciocinar, que seria registada na grelha de auto-avaliação B, incidiria sobre o desempenho estimulado pela dimensão racional do método socrático. Dado que foi considerada exigente, só seria feita se fosse seguro que era compreendida por uma maioria significativa de alunos, e não apenas pelos mais dotados. Num segundo momento, caberia ao professor apreciar a proposta de auto-avaliação e confirmá-la ou alterá-la.

E foi munido deste programa, que pelo menos oferecia um propósito ao meu trabalho, e de uma lição, entretanto escrita, sobre justiça distributiva, que em meados de Setembro de 2008 enfrentei o desafio de ensinar filosofia no 2.º ciclo. Ali estava uma turma do 5.º ano à minha frente. Resolvido o problema inicial de saber ao que andava, uma outra questão ganhou uma relevância preocupante a partir desse momento, a saber: será que este programa e o tipo de lição que pensava dar resistiriam ao teste da realidade? E se, do que imaginei, nada ou quase nada resultasse? Vejamos então como as coisas se passaram.

2. Como se desenvolveu

2.1. Modelo de trabalho desenvolvido a partir de cada lição

As lições da experiência lentamente impuseram um modelo de trabalho. Para que a compreensão e a capacidade crítica dos alunos fossem mais sólidas, a didáctica de cada lição acabou por se organizar nos seguintes passos:

  1. Leitura da história por um grupo de alunos, que dava voz ao narrador e aos seus personagens. Era como que o pontapé de saída, o estímulo inicial que motivava o debate. (Uma dificuldade inesperada para professores principiantes neste ciclo de estudos complicou, nos primeiros tempos, uma tarefa que parecia ter tudo para ser simples: quase todos os alunos queriam ler e uma pequena multidão erguia e esticava ansiosamente os braços, verificando-se mesmo o caso de alguns se porem de pé. A maneira mais segura, mas nem sempre eficaz, de resolver esta complicação foi seleccionar os leitores de acordo com a ordem em que se dispunham na sala. O problema era que, por vezes, o grupo de leitores fazia de uma leitura que se queria viva e expressiva uma sucessão arrastada de palavras. Para não dar a ideia de que não se contava com os alunos que tinham lido, usando o pretexto de que seria bom reavivar a história, era deixada para a aula seguinte uma nova leitura por outro grupo de alunos.)
  2. Compreensão básica da história: primeiras reacções; expressão de posições de partida sobre o que supunham ser o problema; resposta a perguntas sobre os aspectos mais simples da história.
  3. Formulação do problema filosófico no quadro, para que todos o registassem. É muito importante que esta formulação seja tão simples e directa quanto possível.
  4. Identificação das respostas e análise dos argumentos que as apoiam. Registo no quadro dos argumentos simplificados.
  5. Avaliação crítica dos argumentos e formação do melhor juízo sobre o problema. (Os alunos gostam de vir em socorro de um colega que defende a mesma posição e não está a conseguir explicar-se bem. Isso deve ser encorajado, ainda que por vezes possa gerar alguma confusão porque muitos procuram fazer o mesmo.)
  6. Actividades de enriquecimento da avaliação crítica: apresentação e discussão de ensaios e debates a dois, seguidos de objecções da turma aos intervenientes nesse debate. (Outra surpresa para quem conhecia apenas o ensino secundário foi verificar que os debates a dois eram a actividade preferida dos alunos, mesmo dos mais tímidos, que gostavam de ver os seus colegas nessa situação.)

2.2. Problemas tratados

A lista dos problemas, pela ordem em que foram tratados, é a seguinte:

Lição 1
Tema: Justiça
Problema: Que mundo escolherias, pensando no bem de todos?

Lição 2
Tema: Justiça
Problema: Que podes fazer para diminuir injustiças que ocorrem longe de ti?

Lição 3
Tema: Igualdade
Problema: Haverá desigualdades boas?

Lição 4
Tema: Verdade
Problema: Será que devemos dizer a verdade acerca do Pai Natal?

Lição 5
Tema: Retribuição justa
Problema: Será que devemos pagar na mesma moeda?

Lição 6
Tema: Tirar a vida
Problema: Será que a nossa integridade é sempre o mais importante?

Lição 7
Tema: Obrigação perante a lei
Problema: Deveria Sócrates obedecer à lei que o condenou à morte?

Lição 8
Tema: Fazer o bem
Problema: Se a tortura promover o bem da maioria, tem uma boa justificação?

Lição 9
Tema: Inteligência artificial
Problema: Caso venha a ser possível, será bom haver máquinas capazes de pensar?

Lição 10
Tema: Felicidade
Problema: O que é uma vida feliz?

Lição 11
Tema: Valores
Problema: Será que todos os valores variam de cultura para cultura?

Lição 12
Tema: Direitos dos animais
Problema: Há animais que têm direitos?

Lição 13
Tema: Incremento genético e moralidade
Problema: Haverá alguma coisa de errado em incrementar geneticamente bebés?

Lição 14
Tema: Carácter
Problema: Tem mais importância saber que deveres seguir ou saber que tipo de pessoa ser?

Lição 15
Tema: Liberdade de expressão (parte I)
Problema: Há limites para a liberdade de expressão?

Lição 16
Tema: Liberdade de expressão (parte II)
Problema: Que limite tem a liberdade de expressão?

Lição 17
Tema: Violência
Problema: Como enfrentar a violência?

2.3. Hábitos de pensamento crítico

Os hábitos de pensamento crítico são uma maneira disciplinada de tratar os problemas conceptuais típicos da disciplina de filosofia. Como seria de esperar, nem todos tiveram a mesma relevância. A abordagem desses hábitos foi implícita, uma vez que eram usados, mas não referidos, na discussão dos problemas. Os mais usados foram de facto os hábitos de argumentar, contra-argumentar e contra-exemplificar, de avaliar argumentos, testar implicações e dissolver dicotomias, e ainda os hábitos de explorar hipóteses e condicionais, de estabelecer condições necessárias e suficientes e de revelar divergências mais subtis. Vale a pena, a propósito, dar conta de um facto que foi uma surpresa. O exame racional dos problemas já referidos não pôde, obviamente, deixar de envolver uma avaliação das intuições de partida dos alunos. Ora, o facto surpreendente é que essas intuições eram muitas vezes consequencialistas, e que, quando contrariadas, a sua defesa era ensaiada com vigor. Vale também a pena referir que a discussão do problema dos direitos dos animais permitiu verificar as intuições fortemente antiespecistas dos alunos. Um facto que causará menos surpresa, mas que não deixa de ser interessante, é o de os alunos terem uma perspectiva genuinamente liberal acerca da liberdade de expressão.

3. Em que pé estão as coisas

Iremos agora fazer o ponto da situação quanto aos aspectos que nos parecem mais relevantes.

3.1. O que se pensou fazer mas não se fez

As competências emocionais não puderam ser desenvolvidas no grau que foi suposto nas intenções do projecto. Isso implicaria relações mais ricas entre os alunos na discussão dos problemas, que aulas de 45 minutos a turmas geralmente grandes de todo não permitem.

A grelha de auto-avaliação B, destinada às competências intelectuais, não chegou a ser usada. É certo que o uso dessa grelha foi entendido desde logo como opcional, dadas as exigências que comportava. Todavia, conseguir usá-la teria sido muito bom e não é fácil evitar a esse respeito uma certa desilusão.

Um dos exercícios que havia a intenção de propor aos alunos era o de apresentarem o seu pensamento filosófico todas as semanas sobre o problema em debate. Esta intenção mostra bem a inexperiência neste ciclo de estudos de quem fez a formulação inicial do projecto. Na semana em que se dava início à discussão de um problema, por exemplo, geralmente era apenas possível que os alunos tivessem uma noção mais clara do que ele implicava.

3.2. O que se pensou não fazer mas poderia ter sido feito

Como já se disse, os problemas da disciplina de filosofia da religião foram deliberadamente excluídos deste projecto. Submeter os mais comuns e intuitivos desses problemas a avaliação crítica poderia ser um factor de perturbação, que uma disciplina nova faria bem em evitar a todo o custo. Mas é muito provável que isto tenha sido um erro. Aulas mais recentes forneceram indícios de que a inclusão destes problemas seria vista com simpatia pelos alunos. Se também o seria pelos pais, é a dúvida que subsiste. Talvez uma explicação directa aos pais sobre o que iria ser feito nessas aulas, e que obviamente nada teria de doutrinário ou militante, permitisse auscultar as suas reacções e resolver essa dúvida. Seja como for, a discussão racional do problema da existência de Deus e do problema do mal, por exemplo, é sempre muito motivadora.

3.3. O que não se pensou fazer mas que, a partir de agora, seria bom que fosse feito

O lugar central das aulas foi ocupado por diferentes maneiras de preparar e organizar o debate dos problemas já apresentados. Isto compreende-se, uma vez que a finalidade primária era incutir hábitos de pensamento crítico. É no entanto provável que o debate tenha ocupado em doses excessivas o lugar central. Seria bom que, a partir de agora, se tentasse introduzir outro tipo de exercícios e, passo a passo, se fizesse uma avaliação dessa estratégia. Por exemplo, exercícios para testar as reacções dos alunos a argumentos simplificados, preencher premissas e conclusões de argumentos, avaliar diferentes relações de consequência, testar possibilidades conceptuais, avaliar graus de força de argumentos, definir conceitos e identificar condições necessárias e suficientes. A introdução destes exercícios, e de um teste por período com exercícios do mesmo tipo, poderia tornar mais robusta a proficiência filosófica dos alunos e permitir a auto-avaliação das competências intelectuais, que infelizmente nunca pareceu adequada. Isto compensaria a desvantagem de, nesse caso, terem de ser apresentadas menos histórias e discutidos menos problemas.

3.4. E agora?

Para muitos dos que se interessam por educação, um projecto destes talvez seja uma boa notícia. Esperamos, pelo menos, que nos seja concedido o benefício da dúvida quanto à seriedade com que enfrentámos este desafio. Mas o que sinceramente mais esperávamos era que o nosso trabalho fosse apreciado de maneira cuidadosa antes de ter sido tomada a decisão de acabar com este projecto. De facto, esta é a má notícia que deixamos para o fim da nossa comunicação. Não se pense que as aulas de filosofia para o 2.º ciclo terminam por vontade da escola, ou por notório cepticismo dos encarregados de educação, e em geral da comunidade educativa, quanto às suas vantagens. Nada disso sucedeu, e é com agrado que o reconhecemos. O que ocorreu foi que, abruptamente, uma decisão central determinou o fim da chamada “oferta de escola”. Era justamente nesse espaço não disciplinar do 2.º ciclo que a escola Dr. Manuel Laranjeira, durante quarenta e cinco minutos por semana, oferecia o ensino da filosofia.

Bibliografia mais consultada na elaboração das lições

A bibliografia que se segue foi a essencial. Claro que, por vezes, alguma bibliografia primária e obras gerais, que não fazem parte desta lista, foram consultadas por simples precaução; no entanto, esta bibliografia seria suficiente para a elaboração das lições. Ainda que praticamente todos os livros sejam introdutórios e de fácil leitura, os mais acessíveis são assinalados com um asterisco.

Escola Secundária Dr. Manuel Laranjeira

Filosofia — 6.º ano
2010–11

Lição 13
Tema: Incremento genético e moralidade

Beatriz encomenda o filho dos seus sonhos

Estamos em 2050. A genética não pára de fazer progressos. Há muito que é possível seleccionar o sexo dos filhos. Mas agora é também possível ter um filho com as características preferidas de qualquer pessoa: saúde, inteligência e beleza. E, além destas, com aquelas características que para cada casal são especiais. As Clínicas de Aperfeiçoamento de Seres Humanos têm cada vez mais clientes. Não é barato ter um filho que resulta da Técnica de Aperfeiçoamento de Seres Humanos. Mesmo assim há muitos casais dispostos a fazer sacrifícios para conseguirem o filho dos seus sonhos.

Esse pode ser o caso da Beatriz e do Ricardo. Como têm um rendimento elevado, escolheram a Clínica da Eterna Juventude. São raros os clientes que não vêem os seus desejos satisfeitos por esta clínica. Mas há um problema. A verdade é que o Ricardo não sabe se quer ter um filho comum ou um filho aperfeiçoado. Quando um dos membros do casal tem dúvidas, a primeira consulta é de Aconselhamento Genético. É essa a especialidade do Dr. Sampaio, que tem muita paciência para responder a todas as questões que lhe queiram pôr.

— Em que posso ajudar? — perguntou, num tom amável, o Dr. Sampaio.

O Ricardo respondeu:

— A Beatriz quer ter um filho geneticamente aperfeiçoado, mas eu duvido que essa seja a melhor opção.

— Diga porquê. — pediu o Dr. Sampaio.

— Vamos por partes. — começou o Ricardo. — A Beatriz quer ter um menino, e não uma menina. Como futura mãe, acha que um menino lhe dará mais prazer. Mas, para mim, isto não faz o menor sentido. Trata-se de uma preferência egoísta: a Beatriz está a pensar em si própria, e não a dar mais importância ao interesse do filho. Imagino que muitos outros pais farão também uma escolha egoísta. É por esta razão que sou contra a escolha de sexo.

— Então não é a favor da liberdade de escolha? — perguntou o Dr. Sampaio.

— Claro que sou. Só que, nos casos em que as pessoas podem fazer escolhas erradas, a liberdade de escolha não é uma coisa boa. — respondeu o Ricardo.

— Veja bem, Ricardo: o facto de alguns fazerem certas escolhas pelas razões erradas não justifica que se negue a liberdade de escolha. Era como se alguém escolhesse o curso de medicina pela razão errada de que um dia ganharia muito sem trabalhar grande coisa. Acha bem que, só por isso, a liberdade de escolha seja negada?

— Talvez tenha razão. — disse o Ricardo. — Em todo o caso, há outro problema muito sério. E se a grande maioria das pessoas escolhesse filhos do sexo masculino, por exemplo? Isso seria bastante mau para toda a sociedade. A diferença entre a quantidade de membros de um sexo e de outro poderia impedir a renovação das gerações.

— Concordo que essa poderia ser uma consequência da liberdade de escolha. — aceitou o Dr. Sampaio. — Mas uma maneira eficaz de a corrigir seria dar incentivos a quem tivesse filhos do sexo menos escolhido; por exemplo, cobrar-lhes menos imposto, como se faz a quem ajuda instituições de solidariedade, ou não polui o ambiente. E, claro, cobrar mais imposto a quem escolhesse um filho do sexo em excesso.

— Estou a ver. Parece que tenho de pensar melhor neste assunto. — Concluiu o Ricardo.

O Dr. Sampaio disse:

— Seja como for, sendo essa a escolha, terão o vosso rapaz. Mas não me digam que apenas querem escolher o sexo do vosso filho! Tenho muito mais para oferecer. Podem também fazer escolhas quanto à inteligência, saúde, beleza, constituição física e muitos outros detalhes, como altura, cor do cabelo ou dos olhos, só para dar uns quantos exemplos.

A Beatriz decidiu prontamente:

— Como é óbvio, além de um filho rapaz, quero um filho com inteligência muito acima da média, saudável, bem constituído e bonito.

— Muito bem! Terá um filho com essas características. Será introduzido no embrião uma sequência de genes de um prémio Nobel da física e eliminadas sequências de genes que aumentam a probabilidade de deficiência ou a susceptibilidade a doenças. E isto não é tudo, Beatriz. É também possível criar imunidade a muitas doenças, desde a asma ao cancro.

— Esse é mesmo o filho que qualquer mãe gostaria de ter — disse a Beatriz.

— Mas nem todos os pais — reagiu o Ricardo. — Isso, para mim, é simplesmente manipulação. Seres humanos assim parecem objectos produzidos por uma indústria sofisticada; é como se fossem designer babies. Aliás, neste caso, nem sei se faz ainda sentido falar de seres humanos. O mundo parece cada vez mais um lugar muito estranho.

— Não vejo o que tem isso de estranho, Ricardo. — disse a Beatriz. — Se tivesses um filho que não fosse geneticamente aperfeiçoado não farias tudo para que ele fosse saudável e inteligente?

O Ricardo respondeu:

— Já sabes que faria, Beatriz. Mas o que conta é a maneira como o faria.

A Beatriz continuou:

— Estou a ver. Gostarias de ter um filho saudável e inteligente oferecendo-lhe os melhores estímulos e as melhores oportunidades para se educar. Farias isso através da educação, como quase toda a gente fazia antes da revolução genética. Mas, depois dessa revolução, isso não é inteligente da tua parte.

— Porquê? — perguntou o Ricardo.

— Porque agora a engenharia genética pode assegurar com muito mais eficácia o resultado que procuras. Se não te parece errado assegurar o filho que mais desejas através de programas educativos, por que razão passa a ser errado assegurar esse mesmo filho através da mais recente tecnologia médica? Sinceramente, não percebo o teu ponto, Ricardo.

O Dr. Sampaio interveio:

— Está a pensar muito bem, Beatriz. Tenho a impressão que me pode substituir lindamente.

— Não sei se a Beatriz estará a pensar assim tão bem, Dr. Sampaio — disse o Ricardo. — Todas as pessoas gostam de ver os seus desejos satisfeitos. Depois de um desejo, vem outro, e mais outro, e mais outro, e o processo não pára. Além de um filho inteligente, saudável e bonito, haverá pessoas que querem um filho com as mãos do pianista Alfred Brendel, e pessoas que querem um filho com os pés do Cristiano Ronaldo, e pessoas que querem uma filha com a voz da Amy Winehouse, e sei lá mais o quê.

— E por que não? — desafia o Dr. Sampaio.

— Porque assim os filhos são como roupas de marca: existem para satisfazer os nossos desejos e vaidades. São usados como meios, e não encarados como fins em si mesmos — respondeu o Ricardo com firmeza.

— Talvez esteja a interpretar mal os desejos das pessoas, Ricardo. Elas não querem exibir um troféu, ainda que possa parecer que querem. O mais provável é que queiram simplesmente o melhor para os seus filhos — disse o Dr. Sampaio.

O Ricardo disse:

— Concordo. Mas isso não impede que algumas pessoas queiram filhos geneticamente aperfeiçoados por razões egoístas.

A Beatriz disse:

— Tens toda a razão, Ricardo, mas voltamos ao ponto mais importante: é errado negar a liberdade de escolha a quem usa essa liberdade por boas razões só por causa daqueles que a usam por más razões.

O Dr. Sampaio continuou:

— E há boas razões para fazer ainda uma outra escolha. Sabem qual? Por que não assegurar um certo tipo de imortalidade ao vosso filho?

— Mas esse é realmente o filho dos meus sonhos! — disse, maravilhada, a Beatriz. — E que “imortalidade” é essa? — perguntou.

— É o tipo de imortalidade que consiste em “desligar” a sequência genética responsável pelo envelhecimento. Aos cem anos, o seu filho permanecerá jovem. Claro que ele poderá morrer devido a um acidente, ou a uma doença fatal; mas não morrerá por velhice.

Actividades

Identificar argumentos

Para que a discussão do problema dos designer babies seja mais proveitosa, reúne, numa tabela com duas colunas, os argumentos da Beatriz e do Dr. Sampaio, por um lado; e, por outro, os argumentos do Ricardo.

Debates a dois

Apresenta os melhores argumentos a favor da tua resposta aos seguintes problemas: Será correcto produzir designer babies? Será a “imortalidade” de que fala o texto desejável?

Faustino Vaz, Ana Paula Cabeça e Carla Pereira
Comunicação apresentada no 9.º Encontro Nacional de Professores de Filosofia, promovido pela Sociedade Portuguesa de Filosofia e realizado nos dias 9 e 10 de Setembro de 2011, na Universidade do Minho.
Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457