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Crítica
13 de Abril de 2023   Estética

Representação pictórica

John Hyman e Katerina Bantinaki
Tradução de Vítor Moura

Até à década de 1960, os filósofos estudaram menos intensivamente a representação pictórica do que o significado linguístico. A doutrina tradicional segundo a qual as imagens representariam objectos copiando a sua aparência tinha vindo a ser posta em questão pelos teóricos da arte desde o primeiro quartel do século XX, quando aqueles que eram considerados como estilos ilusionistas em pintura foram perdendo popularidade em favor do prestígio cada vez maior dos chamados estilos artísticos “primitivos”, e das experiências fauvistas e cubistas levadas a cabo pelos artistas dessa época. Mas foi necessário esperar várias décadas até que os filósofos se começassem a interessar por tais debates. Tal aconteceu, em grande medida, devido ao impacto que tiveram dois livros: Arte e Ilusão, de Ernst Gombrich (1960), e Linguagens da Arte, de Nelson Goodman (1968). Gombrich explorou uma grande variedade de problemas sobre a natureza da representação pictórica, a evolução dos estilos, e a natureza do realismo, muito apoiado nas teorias da percepção visual desenvolvidas desde Helmholtz, bem como na teoria falsificacionista da ciência, de Karl Popper. Goodman, pelo contrário, defendia uma teoria puramente convencionalista da representação pictórica, em geral, e da representação pictórica realista, em particular, enraizada na filosofia nominalista que ele desenvolvera a partir da sua colaboração com W.V.O. Quine. Uma grande porção do trabalho filosófico produzido sobre este tópico nos últimos cinquenta anos consiste numa série de tentativas de desenvolver teorias da representação pictórica, em geral, e da representação pictórica realista, em particular, que sejam capazes de triunfar sobre as objecções levantadas contra tais perspectivas, ao mesmo tempo que evitam as simplificações e o suposto preconceito cultural das ideias tradicionais que são por elas rejeitadas.

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1. Teorias da Semelhança

1.1. A semelhança e os seus críticos

A origem das teorias da representação pictórica baseadas na semelhança é normalmente remetida para o Livro X da República, quando Platão sugere que a pintura de um objecto é uma mimese (imitação ou representação) da sua forma e da sua cor. A ideia é intuitivamente plausível e fornece a base para uma variedade de tentativas, por parte dos filósofos, para definir ou analisar o conceito de imagem, ou para explicar o modo como as imagens representam. É verdade que as imagens representam coisas que não têm forma ou cor, como Deus ou a Justiça, mas fazem-no através da representação pictórica de coisas que têm formas e cores, tais como homens barbudos ou mulheres de olhos vendados a segurar balanças. Consequentemente, a ideia básica que sustenta as teorias da representação pictórica baseadas na semelhança é a de que as imagens são compostas por formas e cores semelhantes às formas e cores dos objectos que representam. Contudo, e ainda que tal constitua um ponto de partida adequado, para ser convincente, uma teoria da representação pictórica tem de ser construída com cuidado, tal como Nelson Goodman (1968) demonstrou. A afirmação simplista de que A representa B apenas quando A se assemelha notoriamente a B é demonstrativamente falsa. De acordo com Goodman, “dificilmente seria possível concentrar mais erros numa fórmula tão curta” (1968: 3–4).

De facto, a fórmula simplista que Goodman ataca nunca foi proposta por Charles Sanders Peirce ou pelos seus seguidores, como Suzanne Langer (1942) ou John Hospers (1947), cujas teorias semióticas constituíam o alvo imediato de Goodman, nem por nenhum outro filósofo ou teórico da arte. Peirce descreveu as imagens como signos icónicos, ou seja, signos que significam objectos porque se assemelham a eles, e distinguia os signos icónicos dos índices, que significam objectos porque estabelecem com eles determinadas relações espaciais, temporais ou causais, e dos símbolos, que significam objectos por meio de convenções (Peirce 1982, Vol. 2: 53–56). Mas esta classificação depende da ideia básica de significação, que Peirce defende ser uma relação triádica entre um sinal, o seu objecto e um “interpretante”, ou seja, um pensamento do objecto ou uma tradução do signo. Além disso, Peirce reconhece que estas três categorias de signo não são mutuamente exclusivas, e que a significação de uma imagem pode também depender de convenções iconográficas, bem como do seu contexto de utilização.

Portanto, a concepção que Peirce faz da representação pictórica não se encontra na fórmula que Goodman critica. Contudo, é bem provável que esta fórmula possua algum valor heurístico uma vez que chama a atenção para alguns dos desafios com que se depara qualquer teoria que se proponha explicar a representação pictórica com base na semelhança. Assim, de acordo com Goodman, a semelhança é uma relação reflexiva e simétrica, enquanto que a representação não é nem uma nem outra: um objecto assemelha-se a si próprio ao mais alto grau mas não se representa normalmente a si mesmo, e o objecto que uma imagem representa não representa a imagem, embora se assemelhe à imagem exactamente na mesma medida e nos mesmos aspectos em que a imagem a ele se assemelha. Mais ainda, muitas imagens assemelham-se a outras imagens, como por exemplo as suas cópias, muito mais aproximadamente do que a outros objectos, embora não representem tais imagens. “É claro”, conclui Goodman, “que a semelhança, seja em que grau for, não é condição suficiente para a representação” (1968: 4).

Como já indicámos, o desafio inicial que Goodman opõe às teorias da representação pictórica baseadas na semelhança não mostra que tal abordagem esteja errada. Isto porque, de acordo com alguns filósofos que defendem esta abordagem, a ideia de semelhança é usada para explicar o que torna uma representação pictórica especificamente pictórica, e não para explicar o que a torna genericamente representacional. A relação figurativa entre um retrato e o seu modelo não é, de facto, nem reflexiva nem simétrica. Mas a semelhança continua a ser uma candidata válida para explicar o que torna uma representação pictórica ou figurativa, e, portanto, para explicar como é que o retrato de um indivíduo difere de um texto que descreve a sua aparência. Por comparação, a relação de referência entre o indexical “agora” e o tempo a que se refere não é nem reflexiva nem simétrica, mas tal não nos impede de explicar como “agora” se refere a um tempo específico em termos de simultaneidade (entre o uso da palavra e o tempo a que se refere), que acaba por ser as duas coisas.

No entanto, o exemplo do retrato conduz-nos a uma outra objecção às teorias da representação pictórica baseadas na semelhança, que Goodman menciona de passagem (1968: 25), mas a que outros concederam maior peso (Hopkins 1998b; Abell 2009). Pois se a semelhança é uma relação, e se os elementos em relação têm de ser particulares existentes, então parece que as imagens que representam indivíduos ficcionais (Zeus, Pégaso), e as imagens de género, que representam espécies de objectos sem representar nenhuma instância particular de tais espécies, não podem assemelhar-se àquilo que representam. Portanto, ainda que seja plausível que uma teoria da semelhança possa explicar como um retrato representa um modelo, não é capaz de proporcionar uma teoria geral da representação pictórica.

Uma resposta a este argumento consiste em defender que as personagens ficcionais são entidades abstractas que existem de facto (Kripke 2013: 73). Outra é defender que uma personagem ficcional pode ser um elemento genuíno de uma relação sem, contudo, existir: basta que seja capaz de ser identificada, que possa ser referida, e descrita, e nenhuma destas condições requer a existência (Rundle 1979: 249; Sainsbury 2005: cap. 6). Mas mesmo que uma destas respostas esteja correcta, e que, portanto, a objecção não seja capaz de demonstrar que o conceito de semelhança é impróprio para explicar o modo como as imagens representam personagens ficcionais, o problema das imagens de género subsiste. Contudo, John Hyman (2012: 129–132) tem vindo a defender que o verbo “assemelhar-se” só por vezes exprime uma relação. Por exemplo, na frase “Darwin assemelha-se a Sócrates” “assemelha-se” exprime de facto uma relação, ao passo que na frase “Sócrates assemelha-se a um sátiro”, funciona como um verbo copular (de ligação). Portanto, de acordo com Hyman, “assemelha-se”, “parece-se”, “é como”, etc., têm o mesmo uso duplo que “é”, que ora pode exprimir identidade ora ter uma função copular (Russell 1914: 48). Se tal estiver correcto, então a objecção também não é capaz de demonstrar que o conceito de semelhança é impróprio para explicar a representação pictórica em geral (cf. Blumson 2014).

Goodman dá mais importância a uma terceira objecção às teorias da representação pictórica baseadas na semelhança. Uma teoria deste género, segundo ele, teria de especificar o aspecto visível, ou os aspectos visíveis, do objecto que a imagem imita ou copia. No entanto, todo e qualquer objecto pode ser visto de várias maneiras, dependendo da experiência, dos interesses e das atitudes do observador: “o objecto diante de mim é um homem, um enxame de átomos, um complexo de células, um violinista, um amigo, um tolo, e muito mais” (1968: 8). Uma vez que o artista não consegue copiar todos estes aspectos de uma vez só, todos os modos como o objecto é ou parece que é, podemos assumir que o seu objectivo será o de raspar o verniz do hábito perceptivo, do preconceito ou da interpretação, e captar o objecto como se estivesse a ser visto “em condições assépticas, pelo olho livre e inocente”. Goodman, porém, defende, na senda de Ernst Gombrich (1960), que “não existe nenhum olho inocente”: a ideia de que podemos aceder a dados visuais em bruto por meio de “ritos de purificação ou através de uma desinterpretação metódica” é um mito. Tanto “a forma como vemos como o modo como pintamos dependem da experiência, da prática, dos interesses e das atitudes, e mudam com estes” (Goodman 1968: 10).

Segundo Goodman e Gombrich, as teorias da representação pictórica baseadas na semelhança estão dependentes de um pressuposto errado segundo o qual as percepções visuais resultam de um processo de interpretação de padrões bidimensionais de cor simples, sem qualquer significado intrínseco, que os artistas são ensinados a observar e registar. Psicólogos como Hermann von Helmholtz, artistas como Claude Monet e teóricos da arte como John Ruskin adoptaram uma teoria da pintura deste género. Por exemplo, a passagem de Ruskin de onde Gombrich retirou a expressão “olho inocente” diz o seguinte:

Todo o poder técnico da pintura depende do nosso resgate daquilo a que se pode chamar a inocência do olhar. Quer dizer, de uma espécie de percepção infantil destas manchas planas de cor tal como são, simplesmente, sem consciência daquilo que significam (Gombrich 1960: 296; citando Ruskin 1857: 6, nota 1).

Goodman e Gombrich associam esta concepção da pintura às teorias da representação pictórica baseadas na semelhança. Mas a verdade é que tal não constitui uma parte essencial de tais teorias. Se a representação pictórica de um objecto depende da imitação da sua forma e da sua cor, segue-se então que um artista tem de ser capaz de percepcionar tais propriedades e de as reproduzir, mas daí não se segue que temos de conceber a pintura nos termos recomendados por Ruskin.

1.2. Teorias recentes da semelhança

As principais objecções às teorias da representação pictórica baseadas na semelhança podem ser pouco convincentes, mas o desafio maior que afecta tais teorias é especificar o modo ou modos em que as imagens se assemelham aos objectos, e tal não é tarefa simples. A mera referência a “forma e cor” é insatisfatória. Como Descartes já havia salientado, não é claro como a forma 2-D de uma marca na superfície de um desenho ou pintura pode assemelhar-se à forma 3-D do objecto que representa, e o uso da perspectiva mostra que os losangos podem representar quadrados melhor que os próprios quadrados, as ovais podem representar círculos melhor que os próprios círculos, e assim por diante ([1637] 1985: I 165). Além disso, algumas imagens (por exemplo, as pinturas cubistas) não apresentam uma semelhança óbvia com os objectos que representam seja na forma seja na cor. Assim, a ideia básica segundo a qual a representação depende das semelhanças na forma e na cor terá de ser especificada de modo a satisfazer o que Dominic Lopes designa como o requisito da diversidade (Lopes 1996: 32), por outras palavras, terá de acomodar a grande variedade de estilos na produção de imagens. Diferentes teóricos da semelhança responderam a estes desafios de diferentes maneiras.

John Hyman e Catherine Abell propuseram diferentes teorias da representação pictórica nas quais a ideia de semelhança desempenha um papel significativo. Hyman rejeita a teoria de que as imagens constituem sinais icónicos (2012: 127), mas defende que existe uma relação rigorosa e invariável entre as formas e as cores na superfície de uma imagem e as formas e as cores dos objectos que ela representa. A teoria de Hyman depende da distinção que Gottlob Frege faz entre sentido e referência. Tomando um dos próprios exemplos de Frege, as frases “a estrela da manhã” e “a estrela da noite” têm a mesma referência, mas sentidos, ou modos de apresentação, diferentes. Ambas as frases referem-se a um mesmo objecto, o planeta Vénus, mas descrevem-no ou apresentam-no como uma estrela que é visível em diferentes alturas do dia. Da mesma forma, dois retratos do mesmo indivíduo podem apresentá-lo de cabelo escuro e sentado, usando uma bata preta (como o retrato de Tolstói por Kramskoy de 1873), ou de cabelo cinzento e de pé, usando uma bata branca (no retrato por Repin de 1901). Retratam (referem-se a) o mesmo indivíduo, mas apresentam-no de forma diferente (diferem no sentido). A distinção é importante, argumenta Hyman, porque as semelhanças não explicam a referência de uma imagem, explicam o sentido. (A alegação de que A representa B se e só se A se assemelha notavelmente a B, que Goodman critica, é sobre a representação pictórica enquanto retrato, ou seja, enquanto referência pictórica, não enquanto sentido.)

Segundo Hyman, o sentido ou modo de apresentação de uma imagem, expresso nos termos mais gerais, é um aspecto ou perspectiva de um objecto ou de um arranjo de objectos, relativamente a um ponto de vista implícito (ou a uma variedade de pontos de vista). (Um “objecto” neste sentido não é necessariamente um “objecto material”, pois pode ser uma sombra, um arco-íris, ou uma parte do céu). Diferentes partes de uma imagem podem apresentar diferentes aspectos de um objecto ou das suas partes, correspondentes a diferentes pontos de vista, mas nada pode ser retratado independentemente de um ponto de vista. Caso contrário, como Hyman faz notar,

[podíamos] descobrir diferentes aspectos de um objecto representado numa imagem, movendo-nos à volta dele e estudando-o de diferentes ângulos, como podemos fazer no caso de uma escultura. (2012: 142)

A principal alegação de Hyman é que o sentido ou modo de apresentação de uma imagem é definido pelas cores e formas das marcas na sua superfície, de acordo com princípios ópticos definidos e relativos à cor e à forma (2006: cap. 5; ver também Hopkins 1998a: 27). Concentremo-nos na forma.

O princípio da forma de Hyman emprega o conceito da forma de oclusão de um objecto, ou seja, a secção transversal 2-D do cone de luz que ele subtrai ao olho de um espectador. (O conceito é semelhante ao da forma do contorno [“outline shape”] de Hopkins; ver abaixo, §3.2.) Por exemplo, a forma de oclusão de uma moeda circular visualizada de forma oblíqua é uma elipse. Esta forma, argumenta Hyman, é uma propriedade visível da moeda. É especialmente saliente quando um objecto está retro iluminado, e aparece em silhueta. É relativa a um ponto de vista, e muda à medida que o ponto de vista muda. Mas Hyman insiste que “relativa” aqui não significa “subjectiva”. A forma de oclusão de um objecto “não é apenas uma característica da experiência do espectador. Pertence à óptica, não à psicologia” (2012: 143; cf. Peacocke 1987). O princípio da forma de Hyman consiste nisto: a forma de uma região na superfície de uma imagem (ou, no caso de imagens anamórficas, a sua forma de oclusão em relação ao ponto de vista pretendido para o espectador) é idêntica à forma de oclusão do objecto que representa, em relação ao ponto de vista implícito. Por outras palavras, existe uma semelhança exacta entre estas formas (2006: 81).

Segundo Hyman, este princípio capta uma relação exacta entre as marcas na superfície da imagem e o sentido da imagem, que não depende da intenção do artista, nem do efeito psicológico da imagem sobre um espectador, e que se aplica às imagens independentemente do seu estilo ou da tradição artística a que pertencem. Juntamente com um princípio relativo à cor, é suposto conseguir explicar como as cores e as formas na superfície de uma imagem fixam as cores e as formas dos objectos que esta representa. Mas os princípios ópticos de Hyman não implicam que um retrato de Tolstói se assemelhe a Tolstói, uma vez que se referem apenas ao sentido de um quadro, e não à sua referência. Também não implicam que uma pintura de um homem barbudo se assemelhe a um homem barbudo, uma vez que apenas dizem respeito às formas e cores dos objectos numa imagem. Hyman afirma, portanto, que a sua teoria se encaixa perfeitamente na ideia de que a referência de um quadro é normalmente determinada pela intenção do artista, e com a ideia de que a representação de objectos de tipos específicos, tais como homens ou cavalos, depende da propensão de um quadro para activar a capacidade de um espectador para reconhecer estes tipos de objectos pelas suas formas e cores, e as formas e cores das suas partes (ver abaixo, §3.2). Ele explica como estes dois elementos de uma teoria de representação podem ser combinados com o exemplo de uma silhueta:

as formas negras que o desenhador de silhuetas recortou fixam as formas de oclusão dos objectos representados e das suas partes, relativamente a uma linha de visão implícita. E a capacidade do espectador para reconhecer, por exemplo, uma rapariga ou um gato, permite-lhe ver uma rapariga ou um gato representado numa silhueta, vendo a sua forma de oclusão e as formas de oclusão das suas partes. (2012: 113)

A teoria de Hyman tem sido criticada por vários motivos. Em primeiro lugar, e mais genericamente, Michael Podro sustenta que a teoria exprime um preconceito a favor da representação realista ou literal (Podro 2010: 457). No entanto, Hyman responde que os princípios ópticos que define “não ditam ou limitam as formas que os artistas criam, os modelos que seguem, ou os valores que encarnam no seu trabalho”, tal como a gramática inglesa também não limita a imaginação dos poetas ingleses (Hyman 2012: 145). Em segundo lugar, tem sido alegado que a teoria de Hyman não consegue explicar “a representação de objectos inexistentes” (Abell 2009: 195). Contudo, esta objecção depende da suposição questionável de que a semelhança é, invariavelmente, uma relação entre particulares existentes (ver acima §1.1). Em terceiro lugar, tem sido argumentado que as indeterminações nas formas de oclusão dos objectos representados numa imagem podem não corresponder às indeterminações nas formas das partes da imagem que os representam (Kulvicki 2014: 61-62). Finalmente, tem sido argumentado, mais genericamente, que as correspondências exactas de forma e de cor entre a superfície de uma imagem e o seu conteúdo, e que a teoria de Hyman prevê, por vezes falham, e que as correspondências que de facto existem dependem de características contingentes do sistema visual humano (Newall 2006; Hyman 2007; Newall 2011).

A última objecção reflecte a razão mais amplamente aceite para rejeitar teorias de semelhança como a de Hyman, nas quais o mecanismo básico de representação pictórica é definido sem referência quer à experiência visual de um espectador, quer ao contexto cultural em constante mudança no seio do qual as imagens são produzidas. Catharine Abell defendeu uma teoria da representação pictórica baseada na semelhança que difere da de Hyman em ambos os aspectos, e que foi pensada de modo a evitar as objecções acima mencionadas. É também uma teoria mais ambiciosa, não só porque Abell não distingue entre o sentido e a referência de uma imagem, pretendendo antes explicar ambos de uma só vez, como também porque explica a representação de tipos específicos de objectos, tais como homens e cavalos, em termos de semelhança, em vez de confinar o âmbito da teoria às formas e cores dos objectos numa imagem. Ao contrário de Hyman, Abell não especifica quais são os aspectos particulares da semelhança que são necessários para a representação, para além do requisito de que devem ser visíveis (2009: 199), argumentando em vez disso que “diferentes aspectos da semelhança regem diferentes instâncias da representação” (2009: 196), incluindo a semelhança em relação às propriedades ópticas, tais como a forma de oclusão, e as propriedades dependentes da resposta, como quando os pintores imitam o efeito do contraste simultâneo.

Baseando-se no artigo seminal de Paul Grice “Meaning” (Grice 1957), Abell argumenta que os aspectos da semelhança que regem uma determinada imagem dependem das intenções comunicativas do artista:

A semelhança de um quadro com um objecto O em certo(s) aspecto(s) é relevante para determinar o que o quadro representa se o seu autor pretendia que o quadro se assemelhasse a O no(s) aspecto(s) relevante(s) e, assim, trazer O à mente dos espectadores, pretendendo também que estas semelhanças tivessem este efeito em parte porque os espectadores reconhecem essa intenção. (2009: 201; cf. Blumson 2009 e 2014)

De acordo com Abell, uma imagem representa um objecto O apenas se se assemelhar a O numa série de aspectos relevantes, e se desse modo capturar a “aparência geral” de O, permitindo a um espectador distingui-lo de objectos com os quais não seria normalmente confundido (2009: 210). Tal como foi acima referido, Abell considera que as imagens de objectos que na realidade não existem são problemáticas para as teorias da representação pictórica baseadas na semelhança. A sua solução para o problema combina duas ideias. Primeiro, uma imagem de um objecto que não existe realmente, mas que poderia, no entanto, existir, tal como uma montanha de ouro, assemelhar-se-ia ao objecto, se este existisse. Segundo, podemos fazer-de-conta [“make-believe”] que uma personagem ficcional como Sherlock Holmes existe, e fazer-de-conta que uma imagem se assemelha a ele (2009:216).

Abell argumenta que, uma vez que ela não especifica quais os aspectos particulares da semelhança que são necessários para a representação, a sua teoria é consistente com o requisito da diversidade, por outras palavras, é capaz de acomodar a grande variedade de convenções estilísticas que se desenvolveram em diferentes tradições artísticas. No entanto, pode objectar-se que a sua teoria não consegue acomodar outro alegado requisito para uma teoria da representação pictórica baseada na semelhança, identificada por Lopes e que ele designa como requisito da independência. Segundo Lopes, um espectador deve ser capaz de percepcionar as semelhanças postuladas por uma teoria da representação pictórica baseada na semelhança “sem saber de antemão” o que uma imagem representa (Lopes 2005a: 16–17). De facto, esta objecção só se aplica a uma teoria que implique que um espectador percepciona um certo tipo de objecto numa imagem ao percepcionar uma semelhança entre as marcas na sua superfície e um objecto desse tipo, e uma teoria da semelhança não precisa de implicar tal coisa. No entanto, Abell aceita que a objecção se aplica à sua própria teoria, especialmente porque ela defende que os “aspectos da semelhança” que “regem” uma imagem dependem das intenções comunicativas do artista, e que o conhecimento destas intenções por parte do espectador é obtido, pelo menos em parte, a partir da própria imagem. No entanto, ela aborda a objecção, destacando a existência de fontes alternativas de informação sobre as intenções do artista, e que são específicas do seu contexto (Abell 2005,2009; cf. Blumson 2014).

2. Teorias convencionalistas da representação pictórica

As teorias da representação pictórica baseadas na semelhança diferem umas das outras de forma significativa. Mas todas concordam num ponto crucial: a diferença fundamental entre a representação pictórica e a representação linguística consiste no facto de a primeira depender de semelhanças entre as representações e os objectos que elas representam, enquanto que a segunda não depende disso. É amplamente aceite que a representação linguística depende de convenções que criam o vocabulário de uma língua e as estruturas semanticamente significativas em que os elementos do seu vocabulário são combinados. Mas a contribuição das palavras e das estruturas para o significado de uma frase quase nunca é explicada pela semelhança. Se há excepções, como a onomatopeia, elas apenas confirmam a regra.

Alguns teóricos da arte, como Roman Jakobson, desafiaram esta divisão entre arte pictórica e linguagem no início do século XX (Jakobson [1921/1971] 1987), reagindo contra o que se pensava serem estilos ilusionistas em pintura. Julgava-se então que, se os estilos artísticos fossem entendidos como comparáveis a linguagens ou a códigos, então os artistas sentir-se-iam mais à vontade para abandonar as convenções académicas, para seguir modelos “primitivos”, e para participar no experimentalismo fauvista e cubista de Matisse, Picasso ou Braque (Bois 1987). Quando chegámos aos anos 50, o convencionalismo estava já bem estabelecido. Como exemplo, leia-se a seguinte observação surgida num artigo do artista americano Leo Steinberg, intitulado “The Eye Is a Part of the Mind” [“O Olho Faz Parte da Mente”], que antecipa a posição de Gombrich e de Goodman sobre o “olho inocente” (ver acima §1.1):

A “capacidade técnica na imitação da natureza” é coisa que simplesmente não existe. O que existe é a capacidade de reproduzir símbolos gráficos práticos para as aparências naturais, e apresentar factos familiares através de convenções profissionais estabelecidas. (Steinberg [1953] 1972: 198)

No entanto, a primeira tentativa de defender uma teoria convencionalista da arte de forma sistemática e detalhada encontra-se no livro de Goodman Linguagens da Arte.

Goodman aceita que as imagens podem assemelhar-se aos objectos que representam, mas nega que isto explique a razão pela qual os representam:

Uma imagem que representa — como uma passagem que descreve — um objecto, refere-se a ele, e, mais particularmente, denota-o. A denotação é o núcleo da representação e é independente da semelhança. (1968: 5)

Goodman não define a denotação, para além de a descrever como uma variedade da referência, mas há duas características da sua concepção de denotação que devem ser referidas. Em primeiro lugar, é suposta ser a relação em que um nome representa o seu portador, ou em que um predicado representa os membros da sua extensão, ou em que um retrato representa o seu modelo. Daí se segue que a controversa doutrina segundo a qual os predicados e os nomes possuem a mesma função semântica encontra-se implícita na teoria da representação pictórica de Goodman (Geach 1972; Strawson 1976; Hyman 2006: 185–190). Em segundo lugar, a teoria nominalista das propriedades de Goodman exclui a possibilidade de um símbolo denotar um objecto por se assemelhar a ele (Arrell 1987: 42). Pois Goodman não faz apenas a observação incontroversa de que um objecto é cinzento se e só se “cinzento” se lhe aplicar, mas vai mais longe ao afirmar que as propriedades que um objecto possui dependem dos predicados que se lhe aplicam (Goodman 1968: 51, 54–55). Por outras palavras, “cinzento” não denota um objecto porque este tem a propriedade de ser cinzento. Pelo contrário, tem essa propriedade porque “cinzento” o denota. Do mesmo modo, os mesmos predicados não denotam indivíduos diferentes porque eles se assemelham uns aos outros, ou porque têm propriedades em comum. Pelo contrário, assemelham-se uns aos outros, ou têm propriedades em comum, porque os mesmos predicados os denotam. Assim, a semelhança é explicada pela denotação e, portanto, não pode ela própria explicá-la.

De acordo com Goodman, os sistemas de símbolos pictóricos diferem dos sistemas linguísticos por serem analógicos e relativamente repletos, sendo um sistema analógico aquele que é sintática e semanticamente denso. (Por razões de espaço, não discutiremos aqui a relação entre analógico e denso; ver Lewis 1971 e Haugeland 1981). Um sistema pictórico é sintaticamente denso porque fornece um conjunto denso de caracteres pictóricos, dito por outras palavras, um conjunto contendo infinitamente muitas imagens “de tal forma ordenadas que entre cada duas haja uma terceira” (Goodman 1968: 136), e é semanticamente denso porque fornece um conjunto denso de classes de referentes [“denotata”]. (Por contraste, o sistema de numeração árabe para denotar os números naturais fornece infinitamente muitos caracteres — “1”, “2”, “3”…, “11”, “12”, “13”..., etc. — mas existe uma “lacuna” entre cada número e o seu sucessor, e entre cada um dos números naturais correspondentes e o seu sucessor: o sistema é articulado, não é denso). Finalmente, um sistema pictórico é relativamente repleto porque há um número relativamente maior de propriedades de uma imagem que são relevantes para a sua interpretação:

Qualquer espessamento ou adelgaçamento da linha, a sua cor, o seu contraste com o fundo, o seu tamanho, até mesmo as qualidades do papel — nenhuma destas está excluída, nenhuma pode ser ignorada. (Goodman 1968: 229)

Assim, enquanto diferentes instâncias de uma mesma letra, palavra ou frase escritas podem diferir amplamente na aparência, as imagens que diferem na aparência, em qualquer uma de muitas maneiras diferentes, e por mais pequena que seja essa diferença, também diferirão no que representam.

Portanto, as principais teses de Goodman são estas:

  1. As representações pictóricas diferem das descrições porque pertencem a sistemas de símbolos que são analógicos/densos e relativamente repletos.
  2. As representações pictóricas e as descrições são igualmente “artificiais”, “arbitrárias” ou “convencionais” (1968:230-231).
  3. A denotação é o núcleo da representação, nesta se incluindo a representação pictórica.

Todas foram contestadas.

A primeira dificuldade com 1 é que um conjunto é denso apenas em relação a uma ordenação. Por exemplo, o conjunto de números naturais pode receber uma ordenação densa, mas não é denso na ordenação habitual de 1, 2, 3, ... Na primeira edição de Linguagens da Arte, Goodman não explica que ordenação de imagens tem em mente, mas na edição revista ele afirma que

a ordenação em questão é entendida como sendo tal que qualquer elemento que se encontre entre dois outros é menos discriminável de cada um deles do que eles o são entre si. (1976: 136)

Isto levanta duas questões. Primeira, será possível uma ordenação de imagens deste tipo? Segunda, a ordenação de Goodman parece depender de graus de semelhança, contudo trata-se de semelhanças entre os signos e não entre signos e referentes. Ora, será esta reintrodução do conceito de semelhança compatível com a sua teoria nominalista das propriedades e o seu ataque à doutrina do “olho inocente”?

A segunda dificuldade com 1 é que as fotografias digitais seriam normalmente classificadas como fotografias juntamente com as analógicas (Bach 1970; Kulvicki 2006); e alguns diagramas, que não seriam normalmente classificados como imagens, são analógicos e relativamente repletos (Peacocke 1987). Além disso, os esboços são menos repletos do que diagramas nos quais não só a forma mas também a cor afecta o que eles representam, e, no entanto, os primeiros seriam normalmente classificados como imagens, enquanto que estes últimos não (Schier 1986; Kulvicki 2006). Goodman reconhece que “há alguns limites antigos e vagos que são transgredidos, e algumas novas alianças e alienações significativas que são efectuadas” devido à classificação dos sistemas de símbolos que ele defende (1968: 232), mas é discutível até onde a sua teoria revisionista pode ir, sem deixar de ser uma teoria da representação pictórica. A verdade é que nós queremos saber como as fotografias, incluindo as fotografias digitais, representam. É possível afirmar, em resposta, que a representação não é o fenómeno unitário que ingenuamente imaginávamos que fosse. Mas isto não pode ser estabelecido mostrando apenas que a teoria dos símbolos de Goodman exclui uma explicação unitária da representação pictórica.

A base principal da contestação de 2 por parte dos filósofos é que tal ideia é inconsistente com a chamada generatividade natural das imagens. O argumento deve-se originalmente a Flint Schier (1986: 43-55), mas é também avançado por Richard Wollheim:

se consigo reconhecer uma fotografia de um gato, e sei como é um cão, então posso esperar reconhecer uma fotografia de um cão. Mas na opinião de [Goodman] isto deveria ser desconcertante. Deveria ser tão desconcertante como se, sabendo que a palavra francesa “chat” significa gato, e sabendo como são os cães, eu deveria, ao ouvi-la, ser capaz de compreender o que a palavra “chien” significa. (1987: 77)

Contudo, parece haver alguns sistemas de símbolos convencionais, tais como a tablatura da guitarra, em que ocorre uma generatividade natural. Assim, pode objectar-se que Schier e Wollheim confundiram uma discrepância entre imagens e palavras com uma discrepância entre imagens e signos convencionais em geral.

3 conduz a duas perguntas. Em primeiro lugar, o que explica o facto de uma fotografia ter uma denotação particular, como, por exemplo, o retrato de Goya que denota o Duque de Wellington? Em segundo lugar, a denotação é uma relação – a relação entre um nome e o seu portador, ou entre um predicado e os membros da sua extensão. Assim, a teoria de Goodman também tem de enfrentar a questão levantada anteriormente a propósito das teorias da representação pictórica baseadas na semelhança, no que diz respeito às imagens de indivíduos ficcionais (Zeus, Pégaso), e imagens de género. Se os membros de uma relação devem ser particulares existentes, então parece que as imagens destes géneros não podem denotar o que representam. Então como é que os representam?

Relativamente à primeira pergunta, Wittgenstein afirma que “uma resposta óbvia, e correcta, à pergunta ‘O que faz de um retrato o retrato de fulano?’ é que é a intenção” (1958: 32). Mas Goodman discorda. Ele reconhece que as intenções estão “normalmente envolvidas” na criação de sistemas de símbolos, tal como na construção de pontes, “mas em ambos os casos, podemos estudar os resultados independentemente do pensamento dos criadores” (1972: 125). Afirma que o que uma pintura ou desenho denota pictoricamente depende unicamente da disposição das cores na sua superfície, e das convenções sintácticas e semânticas que definem o sistema de símbolos a que pertence (1968: 42). Mas o que parece seguir-se daqui é que há poucos retratos (se é que haverá mesmo algum) que retratam um único indivíduo, por oposição a todos os membros de uma classe de indivíduos semelhantes. Pois se as imagens são efectivamente símbolos semelhantes a predicados num sistema pictórico, então, a menos que X seja o único indivíduo que satisfaz um retrato, ou seja, a menos que o retrato seja uma “descrição” pictórica única identificadora de X, X não é o único modelo do retrato, o único indivíduo que ele retrata. Além disso, é difícil perceber como se pode pintar um retrato impreciso de alguém, tal como é difícil perceber como se pode usar uma descrição imprecisa para referir alguém (por exemplo, “O homem que está a beber um martini é meu irmão”, quando na realidade ele está a beber um daiquiri), se a quem nos estamos a referir depende puramente da sintaxe e da semântica da frase (Kripke 1977).

Quanto à segunda questão, relativa a imagens de indivíduos ficcionais e imagens de género, Goodman argumenta que os verbos “retratar” e “representar” são “altamente ambíguos” (1968: 22). Na frase “O retrato de Goya representa o Duque de Wellington”, “representa” é um predicado de dois termos, expressando uma relação, e a frase como um todo identifica a denotação do retrato de Goya. Ao passo que na frase “A pintura de Rubens representa Pégaso”, “representa” faz parte de um predicado de um termo, e a frase como um todo classifica ou caracteriza a pintura de Rubens sem implicar que está a denotar alguma coisa. Assim, quadros com denotação nula são comparáveis a predicados ou descrições com denotação nula, tais como “cavalo voador” ou “maior número primo”. Podemos distinguir a imagem de um centauro da imagem de um unicórnio, mesmo que ambas denotem exactamente os mesmos objectos (ou seja, nenhum), porque ambas são instâncias de caracteres diferentes num sistema de símbolos que nós compreendemos. O sistema de símbolos consiste em regras para a “correlação de símbolos com referentes” (1968: 228), mas prevê a possibilidade de imagens com denotação nula.

Finalmente, de acordo com Goodman, um sistema de símbolos pictóricos consiste em regras que correlacionam símbolos com referentes, embora ele não chegue a propor um único exemplo de tais regras. Ele refere-se ao “sistema de representação tradicional ocidental” (1968: 226), mas não chega a formular as suas regras. É inegável que vários tipos de costumes, regras e convenções se encontram envolvidos na produção de imagens, incluindo procedimentos técnicos, convenções iconográficas, regras de composição, e assim por diante. Mas nenhum destes tem a função de correlacionar símbolos com referentes, e é duvidoso que existam regras pictóricas deste tipo específico (Hyman 2006: 174–175).

Apesar de todas estas objecções à teoria da representação pictórica de Goodman, esta continua a exercer uma forte influência entre os filósofos da arte. Por exemplo, John Kulvicki defendeu recentemente uma teoria que se destina a lidar com alguns dos argumentos acima referidos, e a incorporar algumas das ideias avançadas pelos opositores de Goodman, mantendo ao mesmo tempo as suas ideias principais. Em particular, Kulvicki concorda com Goodman que uma imagem é um símbolo num sistema denotativo, e que um sistema denotativo é pictórico em virtude da sua estrutura, e não pelo facto de assentar numa qualquer semelhança entre os seus símbolos e os objectos que eles denotam (Kulvicki 2006: 13). Mas é difícil perceber até que ponto ele partilha a abordagem de Goodman à semântica das imagens, e dos símbolos em geral. Em particular, Kulvicki baseia-se na ideia de que as imagens têm diferentes tipos de conteúdo (ver abaixo), mas não é claro se ele concorda com a redução que Goodman faz do conteúdo à denotação (1968: 27–29), e se partilha do compromisso geral de Goodman com o extensionalismo, ou se concorda com Frege quando este defende que, além de possuírem uma referência ou denotação, os nomes e as descrições também exprimem um sentido.

Segundo Kulvicki, as características semânticas de uma imagem são as “características que a imagem retrata como pertencendo àquela cena”, ao passo que as suas características sintácticas são as propriedades de cor e de forma que são “relevantes para a semântica da imagem” (2014: 92–93). Nem todas as propriedades de cor e forma de uma imagem se qualificam como características sintácticas. Por exemplo, a cor acastanhada de uma fotografia a sépia é apenas uma característica “incidental”. Kulvicki argumenta que um sistema de símbolos pictóricos tem quatro características: (a) plenitude, ou seja, há uma gama relativamente vasta de propriedades de uma fotografia que se qualificam como características sintácticas, como, por exemplo, cor, espessura das linhas, etc.; (b) sensibilidade, o que significa que pequenas alterações feitas a uma pintura relativamente a qualquer uma destas propriedades são sintacticamente significativas (cf. Bach 1970: 128–132); (c) riqueza, porque “existem pelo menos tantas denotações possíveis no sistema como existem tipos sintácticos” (Kulvicki 2006: 38); (d) transparência, ou seja, se parte de uma imagem X representa uma imagem Y, então essa parte de X tem as características sintácticas que estão representadas em Y.

A plenitude, a sensibilidade e a riqueza são explicadas, e comparadas com a plenitude relativa, a densidade sintáctica e a densidade semântica de Goodman, em Kulvicki 2006 (29-46). Mas Kulvicki explora a transparência com maior detalhe, deduzindo em particular a seguinte consequência: que uma pintura se assemelha à cena que representa relativamente a uma gama limitada de propriedades cromáticas e formais, tais como “o padrão abstracto de claro e escuro” registado por uma fotografia a preto e branco (2014: 101). Kulvicki chama a esta gama de propriedades o “conteúdo básico” da imagem, no seguimento de Haugeland 1991. Não tenta definir as propriedades de cor e forma em que ele consiste, mas, tal como Hyman, sugere que a semelhança por ele postulada entre uma imagem e a cena que esta representa explica parcialmente como ocorre a experiência normal de estar a ver o que uma imagem representa. O “conteúdo discriminado” de uma imagem (ou seja, o conteúdo identificado numa descrição normal de uma imagem: um cavalo, um homem, etc.) depende da sua propensão para desencadear a capacidade do espectador para reconhecer tipos de objectos através das propriedades de forma e de cor incluídas no seu conteúdo básico:

Ver o conteúdo discriminado de uma imagem resulta de uma aplicação de conceitos, em resultado de se estar a ver a superfície da imagem (e assim a registar o seu conteúdo básico), que não se aplicam à superfície da imagem. Quais os conceitos que utilizamos depende dos conceitos que possuímos ligados ao reconhecimento, o que determina a saliência perceptiva de um dado conteúdo discriminado. (2006: 173–174)

As principais questões levantadas pelos críticos à teoria de Kulvicki são as seguintes. Primeiro, esta teoria foi pensada de modo a evitar algumas das objecções levantadas contra a teoria de Goodman, nomeadamente o facto de existirem tanto imagens digitais como analógicas, mas outras objecções permanecem, especialmente as que dizem respeito à doutrina de Goodman segundo a qual a denotação é “o núcleo da representação”. Em segundo lugar, não é claro que papel Kulvicki atribui à intenção do artista na sua teoria da representação pictórica. A questão é ignorada em Kulvicki 2006, tal como o foi em Goodman 1968. No entanto, em Kulvicki 2014, ele sugere que as imagens “representam em virtude das intenções dos seus criadores” (2014: 156), mas não discute o alcance deste princípio (por exemplo, se se aplica ao sentido ou à referência de uma imagem, ou a ambos) ou como deve ser exactamente definido o papel da intenção. Finalmente, o desacordo explícito de Kulvicki com Goodman centra-se na forma como devem ser definidas as relações entre os símbolos de um sistema pictórico. Mas é discutível se as quatro condições que Kulvicki estipula são de facto necessárias e suficientes para a representação. Alguns alegados contra-exemplos são discutidos em Blumson 2011, Newall 2011, e Kulvicki 2012.

3. Teorias psicológicas da representação pictórica

3.1. Teorias experienciais

As teorias experienciais procuram explicar a representação com base no tipo de experiência que uma imagem causa num espectador, em vez do tipo de sistema representacional a que uma imagem alegadamente pertence, ou através da semelhança ou isomorfismo independentes do espectador que existirão entre uma imagem e os objectos que ela representa, ou mediante os mecanismos cognitivos subconscientes supostamente activados por uma imagem. Permanece em aberto a questão de saber se teorias deste tipo podem evitar a acusação de circularidade, ou seja, se é possível definir a experiência de estar a ver o que uma imagem representa sem empregar o conceito de representação pictórica. De qualquer modo, mesmo entre os filósofos que acreditam que tal é possível, a natureza exacta desta experiência tem sido motivo de debate.

3.1.1. Ver como e ver em

A teoria experiencial mais simples consiste em defender que uma imagem representa um objecto de um certo tipo, levando o espectador a ter a experiência visual que normalmente teria se estivesse a ver o tipo de objecto que ela representa. As observações de Descartes sobre a representação pictórica na sua Óptica sugerem uma teoria deste tipo:

O problema é simplesmente o de saber como [as imagens] podem fazer com que a alma tenha percepções sensoriais de todas as várias qualidades dos objectos a que correspondem – e não o de saber como podem assemelhar-se a estes objectos. ([1637] 1985: I, 166)

Michael Newall defendeu recentemente a teoria de que “as imagens ocasionam uma visão não verídica do seu objecto” (Newall 2011: 42), o que pode ser interpretado como uma defesa da posição de Descartes. Mas geralmente acredita-se que Descartes assimila as imagens em geral aos trompe l’oeil, cujo objectivo é (ou geralmente acredita-se que é) causar nos espectadores uma espécie de ilusão. É por esta razão que as teorias experienciais que os filósofos defendem hoje em dia tendem a definir de forma diferente a experiência causada pelas imagens. (Newall distingue entre a sua própria teoria e a teoria de que a experiência pictórica é uma espécie de ilusão em Newall 2011: 23-30).

A fonte mais importante de teorias experienciais do século XX é o livro Arte e Ilusão (1960) de Ernst Gombrich, baseado nas Mellon Lectures que ele proferiu em 1956. Neste livro seminal, Gombrich defende que as imagens realistas ou naturalistas se aproximam dos trompe l’oeil. Na verdade, como aponta Wollheim,

os dois conjuntos de termos, “naturalismo” e “naturalista”, por um lado, “ilusão” e “ilusionista” por outro, são utilizados indistintamente.

Em Arte e Ilusão (Wollheim 1963: 25). Contudo, Arte e Ilusão não avança nenhuma teoria geral da representação pictórica, embora Gombrich compare a percepção do conteúdo pictórico com o fenómeno da comutação de aspectos ou “ver como”. Ele introduz o “ver como” através do desenho ambíguo de um pato ou coelho, que as Investigações Filosóficas de Wittgenstein tornaram famoso (Wittgenstein 1953: 194):

Podemos ver a imagem ou como um coelho ou um pato. É fácil de detectar ambas as leituras. O que já não é tão fácil é descrever o que acontece quando passamos de uma interpretação para outra. É evidente que não temos a ilusão de sermos confrontados com um pato ou um coelho “reais”. A forma no papel não se assemelha muito bem a nenhum dos animais. E, no entanto, não há dúvida de que a sua forma se transforma de um modo subtil. (Gombrich 1960: 5)

A importância da imagem ambígua está no facto de nos tornar conscientes de um processo que se encontra sempre presente na percepção do conteúdo pictórico: o processo de fazer uma “projecção tentativa, um disparo experimental que transforma a imagem se atingir o alvo”. “A ambiguidade — coelho ou pato? — é claramente a chave para todo o problema da leitura da imagem” (1960: 198). Gombrich é normalmente apontado como tendo proposto uma “teoria da ilusão” da representação pictórica (por exemplo, Lopes 1996: 37; Newall 2011: 2), mas a verdade é que ele sempre rejeitou enfaticamente qualquer intenção desse género, salientando que o título das palestras em que se baseou para escrever Arte e Ilusão era O Mundo Visível e a Linguagem da Arte:

Nunca imaginei que este título [Arte e Ilusão] levasse certas pessoas a pensar que eu considerava a ilusão, ou mesmo o engano, o objectivo principal da arte. (Gombrich 1973: 195)

Gombrich explora uma variedade de ideias frutíferas em Arte e Ilusão, sobre a história do estilo, sobre o realismo nas artes visuais, e sobre a relação entre o conteúdo de uma representação e o seu uso no jogo imaginativo, e voltaremos a algumas destas ideias mais tarde. Mas a comparação entre ver imagens e ver aspectos constitui o foco da crítica de Richard Wollheim às ideias de Gombrich, e a base a partir da qual Wollheim desenvolveu a sua própria teoria da representação pictórica.

Wollheim interpreta Gombrich como afirmando que um espectador não pode estar simultaneamente consciente das marcas na superfície de uma imagem e da cena que esta representa, e que estas só podem ser objecto de percepções alternadas, embora isto seja algo que Gombrich nunca afirmou explicitamente (Wollheim 1963; cf. Bantinaki 2007). Contudo, segundo o próprio Wollheim, a consciência simultânea da superfície e do conteúdo é precisamente o que distingue a experiência de estar a ver uma imagem. Além disso, trata-se de dois aspectos distinguíveis, mas “inseparáveis”, de uma única experiência visual, e não de duas experiências de alguma forma combinadas (Wollheim 1987, 1998, 2003a, b; Wollheim não tenta definir um critério de identidade das experiências, pelo que esta afirmação é difícil de avaliar). Assim, a experiência de estar a ver uma imagem tem uma fenomenologia sui generis, a que Wollheim chama “dualismo” [‘twofoldness’]. Os dois aspectos desta experiência — o aspecto configuracional e o aspecto recognicional — são considerados como psicologicamente reais e integrados de um modo que também afecta o carácter fenomenal da experiência como um todo.

Wollheim designa esta dupla experiência visual de “ver-em”, mas acrescenta que esta não é exclusiva das imagens. Também pode ocorrer, por exemplo, se seguirmos o famoso conselho de Leonardo para descobrir paisagens, batalhas e rostos grotescos nas manchas de uma parede antiga.

Ver-em é um tipo distinto de percepção, e é desencadeado pela presença dentro do campo de visão de uma superfície diferenciada. [...] Quando a superfície está bem feita, então ocorrerá uma experiência com uma certa fenomenologia, e é esta fenomenologia que distingue o ver-em. [...] A característica fenomenológica distintiva é o que chamo de “dualismo” porque, quando ocorre o ver-em, acontecem duas coisas: estou visualmente consciente da superfície para a qual olho, e consigo discernir algo que está à frente, ou (em certos casos) atrás, de outra coisa. (Wollheim 1987: 46)

De acordo com Wollheim, uma parábola genealógica revela como “a representação pode ser explicada em termos de ver-em”:

Em certa comunidade, na qual o ver-em está firmemente estabelecido, certo membro da comunidade – chamemos-lhe (prematuramente) artista – procede à marcação de uma superfície com a intenção de fazer com que outros à sua volta vejam nela uma determinada coisa: digamos, um bisonte. Se a intenção do artista for bem-sucedida ao ponto de um bisonte poder ser visto na superfície que ele marcou, então a comunidade cerra fileiras e determina que quem estiver de facto a ver nela um bisonte estará a ver a superfície correctamente, e estará a vê-la incorrectamente se vir, como também é possível, algo de diferente, ou mesmo se não estiver a ver nada. A partir daí, a superfície marcada passa a representar um bisonte (Wollheim 1987: 46).

Não se trata aqui de uma peça de história especulativa. O objectivo da história é mostrar que a representação pictórica ocorre quando as marcas numa superfície são desenhadas de modo a fazer com que a experiência de ver-em ocorra. Não é suficiente que esta experiência ocorra. Ela deve, quando ocorre, cumprir a intenção do “artista”. Note-se que para Wollheim, nem os trompe l’oeil nem as pinturas puramente abstractas (ou seja, pinturas abstractas que não solicitam a percepção de relações figura-fundo), são representações pictóricas, embora possam assemelhar-se, em certos aspectos, a representações pictóricas e incorporar alguns dos mesmos valores estéticos. As pinturas puramente abstractas não produzem uma experiência com o aspecto “recognicional” do ver em, enquanto que os trompe l’oeil não produzem uma experiência com o seu aspecto “configuracional”.

A teoria de Wollheim tem sido amplamente discutida e criticada (ver especialmente van Gerwen 2001; Kemp & Mras 2016; Jagnow 2019). As principais objecções a esta teoria são as seguintes. Em primeiro lugar, a implicação de que os trompe l’oeil não são representacionais foi contestada (Lopes 1996: 49-50; Levinson [1998] 2001; Newall 2009: 25-26; para uma avaliação crítica da concepção de Wollheim da pintura abstracta ver Caldarola 2012). Em segundo lugar, a sugestão de que a relação figura-fundo é uma característica universal da representação foi contestada (Hyman 2006). Em terceiro lugar, Wollheim propõe que o padrão de correcção, que determina se o espectador percepcionou correctamente o conteúdo de um quadro, “é estabelecido ... para cada quadro pelas intenções do artista, na medida em que estas são cumpridas” (Wollheim 1987: 46). Mas isto parece simplificar excessivamente a relação entre o conteúdo representacional de um quadro e o conteúdo pretendido pelo artista. É bem sabido que o significado de uma frase pronunciada pode divergir do significado pretendido pelo orador, e é difícil entender por que o mesmo não se pode aplicar a uma imagem (cf. Terrone, no prelo). Em quarto lugar, Wollheim recusa-se a oferecer uma caracterização detalhada de ver em, que seja capaz de explicar (a) como a experiência de ver um determinado tipo de objecto numa superfície está relacionada com a experiência de ver o mesmo tipo de objecto frente a frente (ele descreve estas experiências como “incomensuráveis” (1987: 47)); ou (b) como a experiência de ver um determinado tipo de objecto numa superfície difere da experiência de ver outro tipo de objecto numa superfície (Budd 2008a; Hopkins 1998a). Em quinto lugar, a teoria de Wollheim não consegue explicar o facto de os objectos serem necessariamente representados a partir de um ponto de vista implícito (Hopkins 1998a). Finalmente (embora constitua um desenvolvimento mais do que uma objecção), tem sido argumentado que, pelo menos no caso de imagens que têm uma referência bem como um sentido, a experiência de ver uma imagem tem um terceiro aspecto, ou seja, é “tríplice” e não apenas “dual”, como sugere Wollheim (ver Brough 2012; Nanay 2018; Mion 2019; cf. Voltolini 2018).

Apesar de estas objecções, e do carácter elusivo da sua escrita, a teoria de Wollheim tornou-se o ponto de referência chave para subsequentes teorias experienciais da representação pictórica.

3.1.2. Semelhança experienciada e fazer-de-conta

Semelhança experienciada: Como já foi referido, as teorias experienciais explicam a representação em termos do tipo de experiência que uma imagem causa num espectador. As duas teorias mais influentes que procuraram definir esta experiência com mais precisão do que Wollheim devem-se a Christopher Peacocke e a Robert Hopkins, e o conceito principal que ambos empregam é o de semelhança experienciada.

Consideremos a experiência de ficar surpreendido pela semelhança de alguém com outra pessoa que já se conhece bem, por exemplo, quando se vê o filho adulto de um velho amigo pela primeira vez em vários anos. (Podemos falar aqui de ver o pai “na” criança.) Sem dúvida que aqui existe uma semelhança — em estrutura óssea, pigmentação, etc. – que tem uma justificação genética. Mas podemos descrever a experiência como uma experiência de semelhança, independentemente de a semelhança existir efectivamente, em que aspectos, ou porquê. De acordo com as teorias que empregam o conceito de semelhança experienciada, esta é comparável (embora não seja exactamente igual) à experiência que um espectador tem quando vê o que uma imagem representa. Deste modo, a suposição (feita, entre outros, por Wollheim ou a ele atribuída) de que o objecto ou a cena representados numa imagem são, de alguma forma, percepcionados pelo espectador, ou estão presentes na sua experiência, é rejeitada por aqueles que explicam a representação em termos de semelhança experienciada.

Segundo Peacocke (1987: 386-388), um desenho ou configuração de marcas numa superfície representa um certo tipo de objecto φ se e apenas se for eficazmente concebido para ocupar uma região do campo visual bidimensional do espectador que ele experiencia como semelhante em forma a uma região em que um φ poderia ser apresentado, mas sem ser experienciado (como poderia ser o caso de uma escultura representando um φ) como estando a ocupar uma região tridimensional do espaço físico semelhante à que poderia ser ocupada por um φ. Os detalhes da explicação de Peacocke foram criticados (ver Hopkins 1998a; Budd 2008b; Voltolini 2015), mas o seu recurso à semelhança experienciada na explicação da representação pictórica revelou-se influente.

O desenvolvimento mais amplamente discutido da abordagem de Wollheim pertence a Robert Hopkins. Hopkins adopta o termo “ver-em” de Wollheim para se referir ao tipo de experiência visual que uma imagem é alegadamente concebida para produzir. Ele concorda com Peacocke que o ver-em pode ser definido em termos de semelhança experienciada, mas argumenta que o ver-em é uma experiência da semelhança da forma do contorno entre as marcas na superfície de uma imagem e o objecto ou a disposição de objectos que ela representa, em vez da forma no campo visual bidimensional (Hopkins 1998a). A forma do contorno, explica Hopkins, é “uma propriedade das coisas que percepcionamos com regularidade, mas que raramente articulamos” (1998b: §6), uma propriedade visível, mas que é relativa a um ponto de vista (ao contrário da cor, por exemplo). De facto, parece a mesma propriedade que a forma de oclusão de Hyman, ou seja, o cruzamento 2-D do cone de luz que um objecto subtrai relativamente a um ponto de vista (ver acima §1). Ao contrário do conceito de Peacocke da forma de uma região no campo visual de um espectador, não é definido de forma subjectiva, em termos da experiência de um espectador, mas objectivamente, puramente em termos de geometria projectiva. E uma vez que o ver-em pode ser definido em termos da forma de contorno, o mesmo pode acontecer com a representação pictórica:

Ver-em [...] é essencialmente a experiência da semelhança no que diz respeito à forma do contorno. A representação pictórica pode então ser entendida como aquela representação que funciona através da génese deliberada desta experiência. (Hopkins 1998b: §6)

A definição de ver-em de Hopkins responde a algumas das mais influentes objecções à própria abordagem de Wollheim. Em particular, evita a implicação que torna a relação figura-fundo uma característica universal da representação; explica precisamente como a experiência de estar a ver um determinado tipo de objecto à superfície está relacionada com a experiência de ver o mesmo tipo de objecto frente a frente, e como a experiência de estar a ver um tipo de objecto numa superfície difere da experiência de ver outro tipo de objecto numa superfície; e explica o facto de os objectos serem necessariamente representados de um ponto de vista implícito. Mas Hopkins não afirma que existe invariavelmente uma correspondência exacta entre o conteúdo de uma imagem e o que pode ser visto nela (Hopkins 1998a: 128; ver também Brown 2010; Dilworth 2005, 2010). Com base no seu conhecimento da cultura pictórica e da convenção, um espectador culto irá descontar algumas das características do objecto visto numa imagem — tais como desvios em relação à anatomia humana normal — atribuindo-as ao estilo pictórico prevalecente, em vez de as incluir no conteúdo pretendido da imagem. Desta forma, Hopkins estabelece uma distinção entre o conteúdo do ver-em, que é determinado apenas pela semelhança experienciada da forma do contorno, e o conteúdo pictórico, que também depende das intenções do artista (Hopkins 1998a).

No entanto, subsistem várias dificuldades. Em primeiro lugar, não é claro como é que a teoria de Hopkins pode acomodar a restrição da independência, de Lopes. Como vimos (ver acima, §1.2), segundo Lopes, se a teoria implica que um espectador percepciona o conteúdo de uma imagem ao percepcionar uma semelhança entre as marcas na sua superfície e o tipo de objecto que ela representa, então ele deve ser capaz de notar esta semelhança “sem saber de antemão” o que a imagem representa. Mas a “experiência da semelhança em relação à forma do contorno” de um espectador pode depender do que ele vê numa imagem, segundo afirma Lopes, e “a semelhança experienciada não pode explicar a representação pictórica se for devedora da representação [ou seja, se for por ela explicada] ” (2005a: 16–17). Em segundo lugar, Hopkins concorda com Wollheim que o padrão de correcção da percepção do conteúdo de uma imagem pelo espectador “é definido ... para cada pintura pelas intenções do artista, na medida em que são cumpridas”, e por isso enfrenta a mesma objecção griciana (ver acima, §3.1). Finalmente, qualquer teoria experiencial da representação pictórica enfrenta a dificuldade de explicar como as formas (ou contornos) das marcas na superfície de uma imagem restringem as formas (ou contornos) dos objectos que representam. Por um lado, se o único constrangimento é que elas devem ser de molde a gerar uma experiência do tipo postulado pela teoria, então é difícil explicar como esta experiência difere de uma alucinação causada por um estímulo óptico, tal como a misteriosa tela em branco descrita por Flint Schier, que causa a experiência ilusória de estar a ver um retrato de Marilyn Monroe, embora presumivelmente não represente nada (Schier 1986: 197). Por outro lado, se tem de haver uma correspondência óptica ou geométrica directa entre as formas (ou contornos) das marcas e as formas (ou contornos) dos objectos que elas representam, de modo a que possamos perceber as últimas através da percepção das primeiras, então a teoria já não é puramente experiencial, e depende, em última análise, do tipo de relação entre a superfície e o conteúdo que é postulada (por razões diversas) por Hyman, Kulvicki e Voltolini. (Ver Hyman 2006, Kulvicki 2014, Voltolini 2015. Para as respostas de Hopkins a estas objecções, ver Hopkins 2003 e 2005).

Fazer-de-conta: Uma caracterização alternativa da experiência gerada pelas imagens, referida à imaginação, é proposta por Kendall Walton (1990, 2008a,b, 2011) no contexto de uma teoria mais ampla da representação artística. Seguindo Gombrich (1963), e baseado nos escritos seminais de Ryle sobre imaginação e fingimento (Ryle 1949: cap. 8; cf. White 1990), Walton afirma que as imagens são adereços em jogos visuais de faz-de-conta, que prescrevem imaginações [“imaginings”] visuais com um conteúdo particular. Quando alguém se envolve da forma apropriada com uma imagem de um certo tipo de objecto ou de cena, imagina que está a ver um objecto ou cena desse tipo:

A participação em jogos visuais de faz-de-conta usando imagens como adereços é uma actividade perceptiva e imaginativa complexa. [...] No mínimo, imagina-se estar a ver os objectos representados ou objectos dos tipos que estão a ser representados, à medida que se examina a superfície da imagem. Também se imagina que a experiência visual real da imagem é uma experiência visual destes objectos ou de objectos destes tipos. [...] Defendo que esta experiência complexa constitui, aproximadamente, o que Wollheim e outros chamam ver árvores, campos, etc. na imagem (Walton 2011: 396-397).

A teoria geral do faz-de-conta de Walton é amplamente considerada como uma importante contribuição para a filosofia da arte. Mas a sua teoria da representação pictórica enfrenta a mesma dificuldade que outras teorias experienciais ao explicar como as formas (ou contornos) das marcas na superfície de uma imagem determinam as formas (ou contornos) dos objectos que representam, ou o jogo imaginativo que abrem ao envolvimento dos espectadores. Além disso, alguns críticos de Walton negaram que a imaginação visual é uma característica essencial da percepção da imagem (Savile 1986), e outros negaram que o conceito de um jogo visual de faz-de-conta é capaz de captar a experiência de ver em, com base no facto de Walton não conseguir integrar os aspectos “recognicional” e “configuracional” da experiência, ou, pelo menos, não conseguir integrá-los da forma mais correcta. No entanto, a força desta objecção é, até certo ponto, amortecida pela discordância entre os seguidores de Wollheim sobre a forma correcta para explicar como a experiência de ver em é integrada. (Para objecções a Walton, ver Wollheim 1998, 2003b; Budd 2008a; Nanay 2004. Para as respostas de Walton às objecções, ver Walton 2008b,c. Para uma análise alternativa de ver em termos de imaginação visual, ver Stock 2008. Para diferentes perspectivas sobre a “integração” de ver em, ver Abell & Bantinaki 2010; Newall 2015; Voltolini 2015).

Inflexão: Tal como foi acima referido, a alegada “integração” do ver em tem sido objecto de debate. Isto é especialmente verdade no que diz respeito aos casos em que as marcas na superfície de um quadro não constituem apenas um meio de percepção do seu conteúdo pelo espectador, mas são concebidas pelo artista para contribuir para o conteúdo do quadro em virtude do seu carácter enquanto marcas. Por exemplo, em vários desenhos a pastel feitos na década de 1880, nos quais Degas retrata uma mulher a secar-se a si própria, o rasto do pastel esfregado ao longo da superfície do papel regista subliminarmente o movimento da toalha contra a pele da mulher. Neste tipo de casos, como explica Michael Podro,

o reconhecimento do tema é alargado e elaborado pela forma como as suas condições de representação, o medium e os ajustamentos psicológicos a que a pintura convida, são absorvidos pelo seu conteúdo. (Podro 1998: 2)

A experiência deste fenómeno pelo espectador tem sido designada como “ver em inflectido”, e tanto o fenómeno como a experiência têm recebido uma atenção considerável, tanto por filósofos que sustentam que a representação pode ser definida em termos experienciais, como por aqueles que duvidam disso ou que o negam. Lopes (2005a) faz a interessante observação de que a inflexão resolve o puzzle da mimese: por outras palavras, explica porque valorizamos ou gostamos de ver imagens de tipos de objectos que não valorizamos ou gostamos de ver frente a frente (O tratamento seminal deste problema está na Poética de Aristóteles (Livro IV). Entre as discussões sobre a inflexão que são dignas de nota, contam-se Hopkins 2010, Nanay 2010, e Voltolini 2013. Discussões mais amplas sobre os tipos de experiência pictórica que as imagens em diferentes estilos podem suscitar incluem Lopes 2005a, Cavedon-Taylor 2011, Newall 2011, e Bradley 2014).

3. 2. Teorias baseadas no reconhecimento

Observámos no §3.1 que as teorias experienciais procuram explicar a representação pictórica com base no tipo de experiência que uma imagem causa num espectador, em vez de recorrerem aos mecanismos cognitivos subconscientes que se acredita serem accionados pela imagem. Alguns filósofos sustentam, portanto, que as teorias que explicam a representação pictórica com base na propensão de uma imagem para activar as capacidades de reconhecimento do espectador não são teorias experienciais, estribados no argumento de que o reconhecimento pode ocorrer sem experiência (Matthen 2005: 25-26; Newall 2011: 21-23). Outros alegam ou assumem, pelo contrário, que o reconhecimento é um tipo de experiência, referindo-se, pelo menos, ao tipo de reconhecimento que é estimulado por uma imagem (Squires 1969; Schier 1986).

O pensamento básico que subjaz às teorias de representação baseadas no reconhecimento é que uma imagem deve ser reconhecível:

Deve ser o tipo de coisa que pode ser relacionada com o que o artista tinha em mente, se for vista da forma correcta por pessoas dotadas de aptidão e experiência. [...] Em última análise, estabelecemos o que é reconhecível por referência ao que é reconhecido. (Squires 1969: 203)

A mesma ideia é desenvolvida por Schier. Tal como acima referido (ver §2), Schier afirma que a nossa interpretação das imagens, ao contrário da nossa interpretação das palavras, é gerada naturalmente:

Assim que alguém consegue ser bem-sucedido numa interpretação pictórica inicial [...] deverá então ser capaz de interpretar ícones novos sem estar a par de estipulações adicionais, apenas porque consegue reconhecer o objecto ou estado de coisas retratado. (Schier 1986: 43)

Consequentemente, Schier argumenta que a representação pictórica pode ser definida com base na generatividade natural e no reconhecimento: uma imagem é o tipo de representação que provoca interpretações geradas naturalmente em espectadores competentes, activando as suas capacidades de reconhecimento. Assim, “as imagens são símbolos cuja interpretação pode ser explicada causalmente pelas capacidades de reconhecimento relevantes” (Schier 1986:49). Especificamente, “uma imagem de O é precisamente algo que pode desencadear as capacidades de reconhecimento de O por parte do intérprete” (Schier 1986: 195).

A ideia básica de Schier foi subsequentemente incorporada numa teoria ecléctica da representação por Dominic Lopes (1996). Baseando-se em Gareth Evans e na sua explicação da referência através da teoria da informação (Evans 1982) e na controversa afirmação de Kendall Walton de que as fotografias são “transparentes” (Walton 1984), bem como na teoria da representação pictórica baseada no reconhecimento, de Schier, Lopes defende as seguintes ideias.

Em primeiro lugar, as imagens pertencem a “sistemas de informação” e transmitem informação perceptiva dos seus referentes (Lopes 1996: 107), envolvendo assim (e também alargando) as capacidades de reconhecimento que os espectadores utilizam na percepção visual comum. “A capacidade de perceber o que as imagens representam está numa relação directa com a capacidade de reconhecer os seus referentes ao vivo” (2005a: 170). Em segundo lugar, Lopes adopta a tese de Walton de que as fotografias são “transparentes”, ou seja, que os espectadores vêem literalmente os objectos que aparecem nas fotografias, como que através de um painel de vidro, e não apenas registos visuais ou fontes de informação sobre eles. No entanto, Lopes alarga esta tese de modo a abranger todo o tipo de imagens: “há tantas razões para acreditar que vemos através de pinturas e desenhos como através de fotografias” (1996: 181). Em terceiro lugar, os quadros apresentam aspectos dos seus referentes ao assumirem tanto “compromissos” como “não-compromissos” relativamente às suas propriedades: “Cada imagem apresenta o seu objecto como possuindo alguma propriedade que a impede de se comprometer com uma outra propriedade” (Lopes 1996: 125). Por exemplo, uma imagem que retrata um homem com barba assume um compromisso relativamente à propriedade de ser hirsuto, mas pela mesma razão não se compromete relativamente à propriedade de ter um queixo com covinha. O “não-compromisso” explícito distingue a representação pictórica de outros tipos de representação. (Para críticas ver Herwitz 2000, Savile 2000, Kulvicki 2006.) Em quarto lugar, os estilos pictóricos, ou sistemas de representação pictórica, diferem uns dos outros nos tipos de aspectos que tipicamente apresentam. A competência pictórica é relativa a estilos ou sistemas específicos: para se ser capaz de interpretar uma imagem, é preciso ter as competências de reconhecimento correspondentes ao sistema a que ela pertence (Lopes 1996: 152-3).

Estas ideias enfrentam várias dificuldades, algumas das quais já considerámos a respeito de outras teorias experienciais. Primeiro, as ideias de Lopes sobre a transmissão de informação perceptiva e a transparência das imagens são difíceis de aplicar a imagens de indivíduos ficcionais e a imagens de género (Hopkins 1997). Segundo, a tese da transparência foi criticada mesmo no caso das fotografias, onde o problema dos objectos ficcionais e das imagens de género normalmente não ocorre (Currie 1995). Em terceiro lugar, a alegação de que as imagens diferem de outros tipos de representação, na medida em que apenas as imagens “não se comprometem” explicitamente com propriedades, foi contestada (Kulvicki 2006). Finalmente, como vimos, a teoria de Walton de que as imagens são adereços de jogos de faz-de-conta visual não parece ser capaz de explicar como as formas das marcas na superfície de uma imagem restringem as formas dos objectos que representam, ou os jogos imaginativos que convidam ao envolvimento dos espectadores. As teorias baseadas no reconhecimento estão abertas a uma objecção semelhante. Várias teorias de representação pictórica são compatíveis com a afirmação de que as imagens activam as mesmas capacidades de reconhecimento que os tipos de objectos que retratam. A questão sobre a qual tais teorias diferem consiste em saber por que o fazem. Por exemplo, será que é porque a forma de uma região na superfície de uma imagem é idêntica à forma de oclusão do objecto que ela retrata? Ou será que é porque uma parte da superfície de uma imagem ocupa uma região do campo visual bidimensional do espectador que ele experiencia como sendo semelhante em forma a uma região na qual o tipo de objecto que retrata poderia ser apresentado? Ou será que é por alguma outra razão? Sem uma resposta a esta pergunta, o problema de explicar a forma como as imagens representam é elaborado através da introdução de ideias sobre reconhecimento, generatividade natural e transparência, mas não é resolvido (Newman 1998; cf. Neander 1987, Sartwell 1991).

4. Realismo

Como vimos, para ser plausível, qualquer teoria da representação pictórica terá de acomodar a grande variedade de estilos de produção de imagens. A história da arte contém tratamentos bem mais sofisticados e férteis do conceito de estilo do que a filosofia, nomeadamente por Heinrich Wölfflin (1950), Aloïs Riegl ([1893]1992), Erwin Panofsky (1997), Ernst Gombrich (1968), e Meyer Schapiro (1994). Contudo, existe um tema da teoria do estilo sobre o qual existe literatura filosófica considerável, a saber, o realismo.

O termo “realismo”, e termos equivalentes noutras línguas europeias, foram introduzidos na literatura e na crítica de arte durante o século XIX, e as pinturas e esculturas ainda são comummente descritas como realistas (fiáveis, fiéis à natureza, etc.) por críticos e historiadores de arte. No entanto, muitos filósofos e historiadores de arte desde os anos 20 expressaram cepticismo quanto à ideia de que alguns estilos de arte representam a realidade de uma forma mais verdadeira ou mais fielmente do que outros (Jakobson [1921/1971] 1987; Steinberg [1953] 1972; Nochlin 1971; Stewart 1997). O expoente mais influente desta visão é Goodman, que argumenta que o realismo não pode ser uma questão de fidelidade à natureza, e não pode ser medido pela semelhança com a realidade, porque os nossos juízos sobre a fidelidade à natureza dependem dos nossos hábitos visuais, que por sua vez são moldados pela cultura visual em que estamos inseridos, e pelas imagens que estamos habituados a ver e a interpretar. A semelhança não pode ser um padrão “constante e independente” pelo qual as obras de arte possam ser medidas, porque “os critérios de semelhança variam com as mudanças na prática representacional” (Goodman 1968:39). “O sistema de representação literal ou realista ou naturalista”, afirma Goodman, “é, muito simplesmente, aquele a que estamos habituados”.

O realismo é relativo, determinado pelo sistema de representação que é padrão para uma determinada cultura ou pessoa num determinado momento. Os sistemas mais recentes ou mais antigos ou mais estranhos são considerados artificiais ou não qualificados. (1968: 37)

O argumento de Goodman tem sido contestado por vários motivos. Em primeiro lugar, o sistema realista de representação não pode ser simplesmente o padrão ou o sistema habitual, porque, à medida que um estilo artístico evolui, os espectadores estarão inevitavelmente menos habituados às técnicas e aos temas inovadores do que aos temas e técnicas que aqueles vêm modificar ou substituir. Assim, se a afirmação de Goodman fosse verdadeira, um estilo artístico nunca poderia tornar-se mais realista, aos olhos dos espectadores que vivessem nessa altura. No entanto, o registo histórico prova, pelo contrário, que é mesmo isso que acontece (Newall 2011: 119–121). Em segundo lugar, Goodman exagera a medida em que a experiência visual é modificada pela arte. Oscar Wilde proclamou, celebremente, que não tinha havido nevoeiro em Londres antes de este aparecer nos quadros de Turner. Mas de facto, os escritores, de uma forma geral, descreveram efeitos ópticos muito antes de os pintores terem aprendido a representá-los. Por exemplo, os lampejos giratórios na roda de uma carruagem foram descritos pelo poeta latino Prudêncio muitos séculos antes de Velázquez ter captado este efeito na pintura. Em terceiro lugar, mesmo que a arte que vemos modifique em certa medida os nossos hábitos visuais e influencie as semelhanças que percepcionamos, não se segue daí que o realismo não possa consistir numa semelhança ou numa fidelidade à natureza. Compare-se a relação entre teoria e observação na ciência. O crescimento do conhecimento científico permitiu-nos refinar as nossas observações de fenómenos naturais, e estas observações, por sua vez, permitiram-nos testar teorias científicas. Não há nada de suspeito nesta interacção entre teoria e observação, nem nada que nos leve a pensar que possuímos um padrão “constante e independente”, com o qual as teorias científicas podem ser avaliadas.

Hoje em dia, é geralmente aceite que os conceitos de semelhança e fidelidade à natureza são demasiado vagos e metafóricos para explicar o que é o realismo, e que a arte “realista” ou “realística” procede de valores, métodos e pontos de vista específicos, tal como outros tipos de arte (Schapiro 1978). Além disso, a confusão sobre o realismo é agravada pelo facto de o termo ser utilizado para descrever uma variedade de estilos e períodos artísticos, incluindo a arte do final da Idade Média e do início do Renascimento, a pintura holandesa do século XVII, e a pintura francesa do século XIX. Mas daqui não se segue que “realismo” seja apenas um termo honorífico que aplicamos à arte feita num estilo familiar, ou que a fidelidade à natureza seja uma ideia vã.

A distinção fundamental que precisamos de fazer, a fim de clarificar o conceito de realismo, é entre realismo no tema e realismo na técnica (Hyman 2005). O realismo no tema é sobre a escolha do assunto e a forma como este é tratado. A arte realística, neste sentido, representa as classes sociais mais baixas, o cómico em oposição ao material trágico, a vida quotidiana como oposta ao mito. Por exemplo, nas pinturas de Courbet, Manet e Degas, a hierarquia tradicional dos géneros, que promoveu a representação da história, do mito ou da alegoria, é definitivamente posta de lado, e o quotidiano das pessoas pertencentes às classes sociais mais baixas é levado a sério e colocado num contexto social contemporâneo, tal como nos romances de Balzac e Flaubert.

O realismo na técnica é um fenómeno diferente, que podemos fazer remontar aos desenvolvimentos revolucionários da arte grega entre os séculos VI e IV a.C., e mais especificamente, aos desenvolvimentos na anatomia e na representação do espaço e da luz. Desde que os filósofos e os teóricos da arte abandonaram a ideia de que o realismo podia ser definido em termos de fidelidade à natureza ou de semelhança, muitos daqueles que não consideram o realismo como um conceito puramente ideológico ou um embuste (por exemplo, Stewart 1997; Neer 2002) definiram o realismo na técnica em termos de informação: seja a quantidade de informação registada num quadro (Gombrich 1960; Schier 1986), a quantidade de informação relevante ou visualmente saliente (Lopes 1996; Sartwell 1994; Abell 2006, 2007; Kulvicki 2006), a facilidade com que a informação é obtida (Goodman 1968), ou a gama de informação (Hyman 2005), uma delas é apontada como a medida, ou a medida principal, da arte realista. (Ver também Walton 1990; Chasid 2007; e Newall 2011 para pontos de vista comparáveis).

Segundo Hyman, o realismo na técnica pode ser definido em termos de três características: precisão, animação e modalidade (Hyman 2005: 40-46). Precisão significa a representação pictórica precisa de uma espécie de material ou objecto ou actividade, como água ou cetim, uma palmeira ou uma pomba, dormir, andar a galope ou fazer amor. A animação combina a mobilidade com a expressão de emoção, de carácter ou pensamento (ver também Penrose 1973: 268). O termo “modalidade” refere-se ao potencial expressivo que se encontra disponível para os artistas durante uma determinada fase do desenvolvimento de uma tradição artística, por outras palavras, a gama dos tipos de informação que os recursos técnicos disponíveis para os artistas lhes permitem registar:

Os recursos técnicos da arte pictórica são sempre limitados no seu alcance expressivo, tal como as línguas também o são. E estes recursos técnicos, como nas línguas, podem expandir-se em direcções diferentes para expressar novas ideias e novas observações. O desenvolvimento de técnicas realistas é a expansão da modalidade da arte, ou por outras palavras, a expansão do que a arte pode representar. (Hyman 2009: 497)

O argumento mais comum que desmistifica a ideia de um estilo artístico realista depende da ideia de que os estilos artísticos são análogos às línguas (ver acima, §2 para referências). A comparação pretende sublinhar a medida em que os artistas se baseiam em sistemas de convenções, e desencorajar a ideia de que alguns estilos são mais verdadeiros, ou mais próximos da realidade, do que outros. Pois as coisas que dizemos não são mais verdadeiras ou mais próximas da realidade se as dissermos em francês, inglês ou chinês. No entanto, na verdade, a analogia acaba por apoiar a tese de que o potencial expressivo é a medida da arte realista. Pois as línguas não são como os códigos ou os escritos. Por exemplo, os escritos egípcios hieráticos e hieroglíficos não diferem na gama de informação que podem registar, nem o código de semáforo e o código Morse. Mas as línguas, obviamente, diferem muito no que se refere aos seus poderes expressivos, e expandiram-se rapidamente em alguns períodos da história. Assim, a diferença entre a arte italiana do trecento e do seicento é comparável à diferença entre o inglês dos Contos de Cantuária de Chaucer e o inglês do Paraíso Perdido de Milton, mas não é comparável à diferença entre o código Morse e o código de semáforo, ou entre o inglês e o francês (ver Ackerman 1978: 157–160; Hyman 2005: 47).

John Hyman e Katerina Bantinaki

Bibliografia

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ISSN 1749-8457