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Crítica
21 de Outubro de 2018   Epistemologia

Descaso epistémico

Quassim Cassam
Tradução de Desidério Murcho

Este artigo identifica e elucida um vício epistémico que até agora não tinha nome: o descaso epistémico. Trata-se de uma falta de preocupação descontraída quanto à questão de as nossas crenças terem ou não alguma base na realidade ou de as melhores provas disponíveis as apoiarem ou não. O principal produto intelectual do descaso epistémico é a treta no sentido de Frankfurt. Este artigo clarifica a noção de descaso epistémico e argumenta que se trata simultaneamente de uma postura e de um vício epistémicos. As posturas epistémicas são atitudes relativas a objectos epistémicos como o conhecimento, as provas ou a investigação. Os vícios epistémicos são definidos como traços de carácter, atitudes ou estilos de pensamento que sistematicamente obstruem a aquisição, manutenção ou difusão do conhecimento. O descaso epistémico não é apenas uma postura: é uma postura afectiva. Tais posturas distinguem-se dos posicionamentos epistémicos,1 que são políticas que se pode adoptar ou rejeitar. A malevolência epistémica é um exemplo de posicionamento epistemicamente vicioso que se manifesta em tentativas activas de fazer erodir o conhecimento de um grupo específico de indivíduos. Um exemplo de malevolência epistémica em acção é a chamada “estratégia do tabaco”. Defendo que a malevolência epistémica faz erodir o conhecimento ao instilar dúvidas acerca de fontes respeitáveis de prova.

I

Nos dias que conduziriam à votação britânica de 2016 para sair da União Europeia (UE), um jornalista perguntou a um membro importante da campanha a favor da saída quantas autoridades económicas independentes concordavam que o Reino Unido ficaria melhor fora da Europa. O entrevistador era Faisal Islam da Sky News e o entrevistado Michael Gove, um ministro do governo. Gove foi pressionado por Islam para admitir que as suas perspectivas acerca dos benefícios económicos de sair da União Europeia não eram partilhadas pela maior parte dos especialistas. Em resposta, Gove afastou descontraidamente tais cuidados. “As pessoas deste país”, insistiu, “estão fartas de especialistas”.2

Gove não era o único partidário da saída que parecia pensar nestes termos. Numa entrevista depois da votação, Arron Banks, um dos financiadores da campanha, explicou a vitória do seu lado dizendo que a campanha a favor da permanência na UE usou “facto, facto, facto, facto, facto”, mas que isso não funcionava: “é preciso uma conexão emocional com as pessoas”.3 Deste ponto de vista, os factos são aborrecidos e os políticos que se baseiam em provas ou especialistas quando formulam as suas políticas provavelmente fracassam quando confrontados com oponentes que não se sentem obrigados a atrapalhar-se com tais coisas. Muitos comentadores detectaram na postura de Gove e Banks provas da ascendência da “política da pós-verdade” no Reino Unido, um estilo de política na qual, nas palavras do colunista do Guardian Jonathan Freedland, “um mentiroso sem hesitações pode ser rei”, e “os pedantes que ainda se agarram a factos e provas e todas essas coisas aborrecidas são deixados a apodrecer, mal tendo tempo para calçar as botas enquanto a mentira se espalha por metade do mundo” (Freedland 2016).

Os políticos da pós-verdade visados por Freedlan incluem Boris Johnson, um ex-presidente da câmara de Londres e uma das figuras principais da campanha a favor da saída da UE. Na sua carreira prévia como jornalista, ganhou nome escrevendo artigos vagamente cómicos mas trapaceiros acerca da UE. Johnson regozijava-se com o efeito que os seus artigos pareciam ter e limitava-se a rir despreocupadamente quando se mostrava que as suas histórias não tinham qualquer relação com a realidade. Foi duas vezes despedido por mentir e foi descrito pelo colega político que se tornou jornalista, Mathew Parris, como uma pessoa “mal preparada, alegre, dissimulada, desonesta e descarada” (Parris 2016). Curiosamente, Johnson tinha a reputação de não ser a favor da saída da UE. Apesar de ter escrito um artigo a favor da saída para o Daily Telegraph, soube-se mais tarde que escreveu também um segundo artigo defendendo a posição oposta.4

Dificilmente é uma novidade que os políticos são muitas vezes cínicos e desonestos, mas o que é surpreendente no que respeita aos políticos retratados por Freedland é o completo descaso que exibem. O descaso no sentido comum é uma falta descontraída de cuidado, uma despreocupação ou indiferença. A forma particular de descaso a que alguns políticos são atreitos é o epistémico: uma despreocupação descontraída com os factos ou uma indiferença quanto às afirmações políticas que proferem terem ou não qualquer base na realidade. O descaso epistémico significa que não há realmente uma grande preocupação por estas coisas e também que se é excessivamente descontraído e despreocupado relativamente ao desafio de encontrar respostas para questões complexas, em parte em resultado de uma tendência para considerá-las menos complexas do que de facto são. O descaso epistémico significa estar-se a cagar. Significa considerar a necessidade de encontrar provas em apoio das nossas perspectivas uma mera inconveniência, algo que não é de levar demasiado a sério. Encontrar respostas precisas para questões complexas pode ser um trabalho árduo, e o descaso epistémico fá-lo parecer desnecessário.

Antes de avançar, há uma apreensão quanto à ideia de descaso epistémico que precisa de ser já enfrentada. Trata-se da ideia de que se trata tão-somente de uma etiqueta exótica para um fenómeno bem conhecido: a desonestidade intelectual. Quando um político faz afirmações que sabe serem falsas não está a dar-se ao “descaso epistémico”. Está a mentir. Nesta leitura, dizer que há num político “descaso epistémico” é uma forma educada de dizer, ou sugerir, que é um mentiroso descarado. Nesse caso, por que não dizer apenas que é um mentiroso descarado? Esta é uma questão razoável, e a melhor maneira de lhe responder é relacionar a noção de descaso epistémico com a noção de treta de Harry Frankfurt. No seu ensaio Sobre a Treta, Frankfurt explica deste modo a diferença entre mentir e dizer tretas:

É impossível mentir a menos que se pense que se sabe e verdade […] Uma pessoa que mente responde por isso à verdade e nessa medida respeita-a. Quando um homem honesto fala, só diz o que pensa que é verdadeiro; e para o mentiroso é paralelamente indispensável que considere que as suas afirmações são falsas. Para quem fala tretas, porém, não há quaisquer garantias de coisa alguma: não está do lado do verdadeiro nem do falso. Não tem de modo algum o olho nos factos, como acontece com o homem honesto e com o mentiroso, excepto na exacta medida em que forem pertinentes para o seu interesse em safar-se com o que diz. Não se importa se as coisas que diz descrevem ou não a realidade correctamente. (2005: 55–56)

É porque quem diz tretas não se preocupa acerca disto que “a treta é um inimigo muitíssimo mais poderoso da verdade do que as mentiras” (2005: 61). Quem diz tretas não rejeita a autoridade da verdade; apenas não lhe dá qualquer atenção (ibid.).

Uma maneira de formular a questão é considerar a treta um exemplo de descaso epistémico. Na verdade, a treta é o principal produto do descaso epistémico. A treta “produz-se sem preocupação pela verdade” (Frankfurt 2005: 47), e esta falta de preocupação é a essência do descaso epistémico. Isto explica por que o descaso epistémico não é o mesmo que ser mentiroso. Mentir é algo que uma pessoa faz e não uma atitude, e a intenção de esconder a verdade implica que o mentiroso não é indiferente à verdade ou à falsidade do que profere. O descaso epistémico é uma atitude e não algo que se faz, e implica realmente uma indiferença à verdade ou à falsidade do que se profere. Claro que os políticos da treta podem ser mentirosos, mas não são as suas mentiras em si que faz deles políticos da treta, e não têm de ser mentirosos para cair no descaso epistémico. Os políticos que acusei de descaso epistémico podem ser mentirosos ou não, mas o seu sucesso político é prova do que James Ball considera correctamente o “poder da treta” (2017: 15).

O descaso epistémico é um vício epistémico. Da maneira como os concebo, os vícios epistémicos são traços de carácter, atitudes ou maneiras de pensar que sistematicamente, ainda que não invariavelmente, “se atravessam no caminho do conhecimento” (Medina 2013: 30) e são obstruções à sua obtenção, manutenção ou difusão. Chamo a esta perspectiva do vício epistémico obstrucionismo. Segundo o obstrucionismo, os vícios epistémicos são danosos para nós como agentes de conhecimento, mas são diferentes de meros defeitos. Ao contrário dos defeitos, os vícios epistémicos são censuráveis ou em qualquer caso repreensíveis. O descaso epistémico é uma atitude viciosa, um vício epistémico que é uma atitude. Por “atitude” não quero dizer “atitude proposicional”. O descaso epistémico é o que irei chamar uma postura epistémica.5 Isto clarifica melhor a relação entre o descaso epistémico e a treta. A treta não é uma atitude; estritamente falando, nem ser um tretas, ou seja, alguém disposto a dar-se à treta, o é. Além disso, a treta não é o único produto do descaso epistémico. Este pode levar uma pessoa a recusar certos tipos de prova ou de investigação, mas essa recusa não é treta ainda que o resultado seja uma treta.

Algumas atitudes viciosas são posturas epistémicas ao passo que outras são posicionamentos. A minha ideia de posicionamento baseia-se na concepção de Bas van Fraassen, presente no seu livro The Empirical Stance, ainda que eu use o termo de maneiras que não foram entrevistas por van Fraassen. Terei algo mais a dizer acerca da distinção entre posturas e posicionamentos, mas um bom exemplo de um posicionamento epistemicamente vicioso é o que Jason Baehr chama “malevolência epistémica”, ou seja, a “oposição ao conhecimento em si” (2010: 190). Na prática, o descaso epistémico pode ser difícil de distinguir da malevolência epistémica, e algumas das condutas políticas que descrevi podem ser vistas como epistemicamente malévolas e não como descasos epistémicos. Voltarei a este tema, depois de discutir um exemplo mais bem definido de malevolência epistémica, nomeadamente, a chamada “estratégia do tabaco”, descrita por Naomi Oreskes e Erik Conway no livro de 2010 Merchants of Doubt.

Este artigo tem três missões principais. A primeira é elucidar a noção de postura epistémica e tornar plausível a ideia de que o descaso epistémico é uma postura. A segunda é elucidar a noção de um posicionamento epistémico, com o objectivo de distinguir entre posicionamentos e posturas, e para considerar a malevolência epistémica um posicionamento e não uma postura. A terceira é explicar o sentido em que o descaso epistémico e a malevolência epistémica são vícios epistémicos bona fide. Depois de completar estas missões, terminarei com algumas reflexões breves acerca da relação entre as atitudes viciosas e os outros vícios. Este ensaio é uma contribuição para a epistemologia dos vícios, o estudo filosófico da natureza, identidade e importância epistemológica dos vícios epistémicos (Cassam 2016). A epistemologia dos vícios é menos conhecida que a epistemologia das virtudes, mas é improvável que o estudo desta última lance muita luz sobre os acontecimentos políticos recentes.

II

O descaso epistémico é uma atitude, mas o que é uma atitude? A atitude de alguém para com algo é a sua perspectiva quanto a isso.6 As atitudes exigem objectos da atitude, e um objecto de atitudes é qualquer coisa perante a qual seja possível ter uma atitude (Maio e Haddock 2015: 4). Assim, por exemplo, as pessoas, os partidos políticos e as ideias são objectos de atitudes. As atitudes podem ser positivas ou negativas, mais fracas ou mais fortes. Os exemplos incluem o desagrado, o desprezo, a indiferença, o desdém, a suspeita, a indiferença, a hostilidade, o cinismo e o respeito. Todos estes são exemplos de posturas. Por exemplo, o desprezo por outra pessoa é uma postura perante ela que tem um espectro de manifestações comportamentais como recusar-se a apertar-lhe a mão ou evitá-la em situações sociais. Como Michelle Mason faz notar, o desprezo é uma “forma de consideração” que tem uma “marcada qualidade afectiva” (2003: 241). Um elemento do desprezo é uma baixa consideração pelo objecto do desprezo, mas não é apenas uma questão de crença ou de opinião.7 É algo que se sente, e este sentimento de desprezo é a qualidade afectiva da atitude. Se isto estiver correcto, então o desprezo por outra pessoa não é apenas uma postura, mas antes uma postura afectiva, uma postura com uma dimensão afectiva.

Outra postura afectiva é a arrogância. No coração da arrogância encontra-se uma “atitude desdenhosa perante os pontos de vista ou as perspectivas alheias” (Tiberius e Walker 1998: 382). No caso da arrogância intelectual, esta atitude baseia-se na crença na nossa superioridade intelectual, mas a arrogância, como o desprezo, não é apenas uma questão de crença. Envolve também o que Alessandra Tanesini descreve como “um sentimento de superioridade sobre os outros” (2016: 74).8 A qualidade afectiva da arrogância, como a do desprezo, é uma presença mental — um sentimento de superioridade — mas nem todas as posturas são como a arrogância neste aspecto. Por exemplo, pode-se dizer que uma pessoa se sente indiferente quanto a algo, mas o característico da indiferença é a ausência de certos sentimentos ou emoções e não a sua presença. Contudo, nem mesmo a indiferença é uma ausência pura; há algo que se sente quando não nos importamos com uma coisa ou quando somos indiferentes a isso. Como a insensibilidade, a indiferença é ao mesmo tempo um sentimento e uma ausência de sentimento.

As posturas afectivas são tipicamente involuntárias. O sentido em que isto é assim é que não são questões de escolha ou decisão. Isto não é surpreendente visto que a maneira como alguém se sente não é habitualmente uma questão de escolha ou decisão. Por exemplo, quando se sente desprezo ou respeito por outra pessoa, não se escolheu habitualmente desprezá-la ou respeitá-la. Podemos, é claro, escolher mostrar respeito, mas não se pode escolher ter respeito por alguém se nada conseguimos ver nela que mereça respeito. Do mesmo modo, não podemos decidir sentir superioridade intelectual.9 Ainda que, por alguma razão obscura, decidamos desdenhar dos pontos de vista e perspectivas de outra pessoa, podemos considerá-los tão irresistíveis que nos é impossível não levá-los a sério.

Na filosofia, as atitudes são habitualmente entendidas como proposicionais, ou seja, estados mentais atribuídos por meio de uma oração “que”.10 A relação entre atitudes proposicionais e posturas é complicada. Por um lado, parece claro que muitas posturas não são atitudes proposicionais, e muitas atitudes proposicionais não são posturas. Uma pessoa é desdenhosa ou depreciativa quanto a algo ou alguém. Não se tem desdém nem se deprecia que tal-e-tal.11 Além disso, muitas atitudes proposicionais carecem de elemento afectivo. Dizer que alguém acredita que está chovendo é nada dizer quanto aos seus sentimentos ou emoções. Por outro lado, se sentimos desprezo por outra pessoa, é habitualmente porque temos certas crenças acerca dela. A nossa postura afectiva neste caso não é uma atitude proposicional mas relaciona-se com as nossas atitudes proposicionais.

O descaso epistémico é uma postura perante a verdade, as provas ou a investigação, uma postura que se manifesta na nossa conduta epistémica. Implica, e é em parte constituída, por uma marcada falta de seriedade intelectual, e pela leviandade quanto à sustentação das nossas opiniões nos especialistas ou no que as provas mostram. É uma descontracção ou indiferença à verdade e à necessidade de basear as nossas opiniões nos factos relevantes. O descaso epistémico não é habitualmente uma questão de decisão nem de escolha e é neste sentido involuntário. Normalmente, uma pessoa não decide ser excessivamente casual e displicente face ao desafio de encontrar respostas a questões complexas.12 O descaso epistémico é um reflexo do que nos importa, e o que nos importa não é tipicamente uma questão de escolha ou decisão. É possível não nos importarmos com o que as provas mostram, ou se as nossas perspectivas acerca de um tópico particular têm alguma base na realidade, sem termos decidido não nos preocuparmos com estas coisas.

É o descaso epistémico uma postura afectiva? Poderá parecer que a sua marca distintiva é a ausência de certos sentimentos ou emoções, e não a sua presença, mas na realidade as coisas são mais complicadas. O descaso epistémico não é apenas uma questão de não nos importarmos com certas coisas. A falta de interesse no que as provas mostram é um elemento do descaso epistémico, mas outro dos elementos é em alguns casos o desprezo. Há desprezo pelos factos, desprezo pelas provas e, no caso de alguns políticos, desprezo pelo público. Cada um destes tipos de desprezo é detectável na postura dos políticos que descrevi. O desprezo deles é a qualidade afectiva do seu descaso epistémico e explica a sua indiferença a questões que deveriam ser do interesse de alguém que procura conscienciosamente a verdade. Além disso, como fiz notar, a indiferença é em si algo que se pode sentir; não é a ausência pura de sentimento.

É o desprezo necessário para o descaso epistémico? No caso de Boris Johnson, poder-se-ia pensar que o problema não é o desprezo pelos factos ou pelas provas mas antes um interesse insuficiente por estas coisas e preguiça para procurar apoio probatório genuíno para os seus pontos de vista. Na terminologia de Heather Battaly, Johnson é um mandrião que não está para se dar ao trabalho intelectual árduo que se exige para encontrar respostas precisas a questões complexas. Contudo, ser um mandrião pode fazer uma pessoa cair no descaso epistémico independentemente de sentir ou não desprezo pela investigação séria ou por quem se entrega a essa actividade. Dizer que uma pessoa sente desprezo por algo é sugerir que tem sentimentos fortes acerca disso, mas os mandriões não se interessam o suficiente pela investigação séria para sentirem desprezo por ela. Como Battaly faz notar, um mandrião genuíno não tem energia para sentir desprezo.13

Uma resposta a esta linha de raciocínio seria dizer que seja o mandrião motivado ou não pelo desprezo, o seu descaso epistémico e a conduta epistémica a que dá origem manifestam mesmo assim um desprezo pelos factos e pelas provas. Deste ponto de vista, contudo, não é o seu desprezo que explica o seu descaso epistémico, mas antes este último que explica o primeiro. Ou seja, o seu desprezo não é uma componente independentemente identificável do seu descaso epistémico. Um mandrião como Johnson manifesta desprezo por algo pelo qual pode não sentir desprezo; manifesta o seu desprezo por meio da sua conduta. Se isto estiver correcto, então o desprezo qua postura afectiva não é estritamente necessária para o descaso epistémico mesmo que os dois andem amiúde juntos. O que é necessário é o que considerei uma indiferença pela verdade e pelo imperativo de basear os nossos pontos de vista nos factos ou provas relevantes. É esta indiferença ou displicência que é essencial no descaso epistémico e que constitui a sua dimensão afectiva, pressupondo que a indiferença tem uma qualidade afectiva. Não se importar com algo é uma postura afectiva negativa em vez de positiva.

Se o descaso epistémico é uma atitude, qual é o seu “objecto”? O conhecimento, as provas e a investigação são objectos epistémicos, e as atitudes para com eles são atitudes epistémicas. Nestes termos, o descaso epistémico é uma atitude epistémica. A falta de interesse pelo que as provas mostram é uma dimensão epistémica do descaso epistémico, mas há outras. Uma actividade epistémica fundamental para a maior parte dos seres humanos é a investigação. Esta é o meio de procurar respostas às nossas questões, do banal ao momentoso. A investigação é a tentativa de “descobrir as coisas, alargar o nosso conhecimento levando a cabo investigações que visam responder a questões” (Hookway 1994: 211). Como outras coisas que fazemos, investigar é algo que pode ser bem feito ou mal, e a qualidade da investigação é em parte uma função da atitude do investigador. Ter um descaso epistémico é ter uma atitude distintiva para com a investigação; é considerar que a actividade de alargar o nosso conhecimento por meio de investigações que visam responder a questões é uma labuta entediante que não merece toda a nossa atenção. Isto faz do descaso epistémico uma atitude epistémica, uma atitude para com a investigação. Contudo, os objectos desta atitude não são exclusivamente epistémicos. O desprezo pela verdade não é uma atitude epistémica porque a verdade não é um objecto epistémico.

Em que medida exactamente é o descaso epistémico representativo das atitudes viciosas em geral? Outra atitude viciosa é o preconceito. Segundo Miranda Fricker, “a ideia de preconceito é no seu mais básico a de um juízo prévio”, ou seja, “um juízo feito ou mantido sem atender apropriadamente às provas” (2007: 32–33). Há duas maneiras em que isto poderá parecer incompatível com a minha perspectiva das atitudes viciosas. Primeiro, os juízos são atitudes proposicionais e não posturas afectivas. Segundo, os objectos do prejuízo não parecem especialmente epistémicos. Se uma pessoa tem uma atitude negativa perante outra devido à sua raça, é certamente culpada de preconceito, mas as pessoas e as raças não são objectos epistémicos e o preconceito racial não soa muito a atitude epistémica. Estas questões tornam-se particularmente nítidas com o exemplo de Fricker de Mataram a Cotovia, de Harper Lee (Fricker 2007: 23–29). Nesse romance, um jovem negro, Tom Robinson, é acusado de violar uma rapariga branca, Mayella Ewell. Tom está inocente, mas quando as provas da sua inocência colidem com os preconceitos dos jurados brancos são estes que se revelam decisivos e ele é considerado culpado. Os jurados não aceitam a explicação de Tom do que aconteceu entre ele e Mayella, e isto reflecte a atitude deles perante os negros em geral e Robinson em particular. O preconceito dos jurados, contudo, não é apenas uma questão de juízo. É uma postura ou orientação carregada de afecto que envolve sentimentos profundos de desprezo, aversão e superioridade. A atitude negativa dos jurados não é no fundo uma questão intelectual. É mais visceral que isso. Como outras posturas afectivas, os preconceitos reflectem em parte os juízos, mas isto não é dizer que os preconceitos são juízos, como Fricker sugere. O que faz de um preconceito um preconceito é o facto de ser uma atitude formada e sustentada sem qualquer investigação apropriada quanto aos méritos ou deméritos do seu objecto. Faz parte da natureza do preconceito resistir às contraprovas mas essa resistência não pertence exclusivamente aos juízos ou às crenças. Pode também afectar posturas afectivas.

Quanto a saber se o preconceito é uma atitude epistémica, a discussão de Fricker torna parente um sentido em que o é. Como ela faz notar, em trocas testemunhais face-a-face quem ouve tem de “atribuir a quem fala alguma credibilidade” (2007: 18). Se quem fala sabe algo mas quem o ouve não acredita devido aos preconceitos que tem contra o primeiro, então este foi moralmente prejudicado “especificamente, na sua capacidade de agente de conhecimento” (2007: 1). Este é um dos prejuízos morais que Tom Robinson sofreu, que é vítima do que Fricker chama “injustiça testemunhal”. Esta é uma injustiça epistémica, e o prejuízo que está na sua raiz é, nesta medida, uma atitude epistémica. O preconceito conta como atitude epistémica na medida em que é uma postura afectiva perante as credenciais epistémicas da outra pessoa. Uma atitude negativa perante outra raça não é per se uma atitude epistémica, mas implica uma atitude epistémica. De modo que o preconceito não é um contra-exemplo ao ponto de vista de que as atitudes viciosas são posturas epistémicas. Isto não é dizer, contudo, que todos os vícios são posturas. Como foi já mencionado, algumas atitudes viciosas são posicionamentos, de maneira que é agora o momento de explicar melhor a noção de posicionamento. A minha concepção baseia-se na do livro de Bas van Fraassen, The Empirical Stance, de maneira que a sua obra é o ponto de partida.

III

Segundo Fraassen, uma posição filosófica pode consistir num “posicionamento”.14 Um posicionamento no sentido literal inglês, stance, é o ponto de vista de uma pessoa ou a sua postura corporal (van Fraassen 2004: 174). Num sentido menos literal, “é uma atitude adoptada em relação a um tema particular” (2004: 175). Um posicionamento neste sentido é “algo que se pode adoptar ou rejeitar” (2004: 175) e serve de política ou de guia (Lipton 2004: 148; Teller 2004: 161). É neste sentido que as perspectivas filosóficas como o empirismo são posicionamentos. Por exemplo, quando os empiristas declaram que todo o conhecimento factual tem em última análise de derivar da experiência pode-se considerar que estão adoptando a política de denegrir pretensões de conhecimento que não tenham base na experiência (veja-se Lipton 2004: 148). Contudo, os posicionamentos não são afectivos nem involuntários. Não se distinguem pela presença ou ausência de uma qualidade afectiva particular e podem ser voluntariamente adoptados ou rejeitados.15 Como as posturas, os posicionamentos podem envolver atitudes proposicionais mas “ter um posicionamento não pode ser equacionado com a posse de crenças particulares” (van Fraassen 2004: 174). Contudo, a política de rejeitar pretensões de conhecimento que não se baseiem na experiência baseia-se em si em crenças acerca da relação entre o conhecimento e a experiência.16 Os posicionamentos reflectem habitualmente as crenças que se tem.

Já sugeri que a malevolência epistémica é uma atitude viciosa que é um posicionamento e não uma postura. Jason Baehr caracteriza a malevolência moral como a “oposição ao bem em si” (2010: 190) e a malevolência epistémica como a “oposição ao conhecimento em si” (2010: 203). Ser malévolo em qualquer dos sentidos é uma política e não uma postura: é uma atitude voluntariamente adoptada que carece de um elemento afectivo.17 Para Baehr, a oposição ao bem que é essencial à malevolência, moral ou epistémica, é volitiva, activa e profundamente pessoal (Baehr 2010: 190). É volitiva no sentido de envolver a vontade e não é a mera preferência de que nos oponhamos ao bem. É activa no sentido de se manifestar em tentativas reais de “fazer parar, diminuir, erodir, destruir, denunciar ou pôr os outros contra o bem” (2010: 190). Por fim, o que faz dela profundamente pessoal é o facto de reflectir os cuidados e interesses da pessoa malévola. Pressupondo que o bem epistémico é o conhecimento, a malevolência epistémica é a oposição ao conhecimento. Na sua forma impessoal, é uma oposição ao conhecimento em si. Em contraste, a malevolência epistémica pessoal é a oposição ao conhecimento de outra pessoa ou ao seu “bem-estar epistémico em si” (Baehr 2010: 203).

Uma fonte rica de exemplos de malevolência epistémica é a investigação no campo emergente da agnotologia, o estudo da produção e manutenção da ignorância (Proctor 2008). Um exemplo é as tentativas da indústria do tabaco de gerar e manter a ignorância quanto ao impacto do tabaco na saúde. Vale a pena voltar a contar a história deste exercício de guerra contra os factos, que é relatada por Naomi Oreskes e Erik Conway no livro de 2010 Merchants of Doubt, se a intenção é ver qual será o aspecto da malevolência epistémica no mundo real. A história começa na década de 1950, com a descoberta de que fumar provoca o cancro do pulmão. A indústria do tabaco ficou em pânico com esta descoberta e reagiu contratando uma firma de relações públicas para questionar as provas científicas. A firma recomendou a criação de uma Comissão de Investigação da Indústria do Tabaco que financiaria investigações para pôr em dúvida a ligação entre fumar e o cancro.

A chave era a dúvida. Nas palavras de um memorando de má fama escrito por um executivo da indústria do tabaco, “A dúvida é o nosso produto dado que é a melhor maneira de competir com o “corpo de factos” que existe no espírito do grande público”.18 Aquilo a que Oreskes e Conway chamam a “estratégia do tabaco” foi simples mas muitíssimo eficaz. Ao “escolher selectivamente os dados e ao centrar-se em detalhes anómalos ou por explicar” (2010: 18) visava-se produzir incerteza acerca dos efeitos médicos de fumar e promover a impressão de um debate científico genuíno acerca da ligação entre as duas coisas. A perspectiva da indústria era que não havia provas de que o tabaco era mau. Promoveu esta perspectiva inventando um debate e “convencendo os meios de comunicação de que os jornalistas responsáveis tinham a obrigação de apresentar “os dois lados do debate” (2010: 16). Esta estratégia funcionou, especialmente em tribunal, onde durante muitos anos a indústria do tabaco conseguiu defender-se fornecendo testemunhos de peritos que asseguravam que a ligação entre fumar e o cancro era incerta. A indústria sabia perfeitamente que fumar era nocivo, mas “conspirou para suprimir este conhecimento […] para fazer guerra aos factos e para comercializar a dúvida” (2010: 33). A comercialização da dúvida acerca dos efeitos de fumar era o meio a que a indústria deitou mão para tentar evitar que o público soubesse o que sabia. Se o público duvidasse da nocividade de fumar, ou se pensasse que era ainda uma questão em aberto, não poderia saber ou acreditar que fumar era nocivo porque não teria confiança que as coisas fossem assim.

A estratégia do tabaco generaliza-se e na verdade foram usados métodos semelhantes por quem nega a mudança climática ou faz campanha contra as vacinas, entre outros, para lançar as sementes da dúvida acerca do que na realidade são provas científicas esmagadoras (Proctor e Schiebinger 2008). Em todos os casos, a estratégia básica é usar cientistas para denegrir o trabalho dos seus colegas convencionais e sugerir que os factos são menos claros do que na realidade são. Contudo, Oreskes e Conway sugerem que a era moderna da luta contra os factos começou com a estratégia do tabaco. A história que contam é “acerca de um grupo de cientistas que lutaram contra as provas científicas e espalharam a confusão em muitas das mais importantes questões do nosso tempo” (2010: 9). Uma questão óbvia é: por que razão haveria um cientista de respeito de querer fazê-lo? Sem dúvida que os incentivos financeiros eram consideráveis, mas é difícil a qualquer pessoa que conheça estas noções não pensar que a malevolência moral e epistémica desempenharam também um papel significativo. O sentido em que os cientistas contratados pela indústria do tabaco eram moralmente malévolos é que procuraram activamente fazer erodir o bem-estar físico dos fumadores tornando menos provável que abandonassem o hábito. A malevolência epistémica dos cientistas consistiu na sua oposição ao bem-estar epistémico dos fumadores, espalhando dúvidas que faziam erodir o conhecimento acerca dos efeitos de fumar. Bloquearam a difusão do conhecimento lutando contra os factos genuínos com “factos alternativos” e apoiando-se na incapacidade de quem não é cientista, assim como dos meios de comunicação, para ver a diferença. Não disseram tretas sobre os perigos de fumar; mentiram acerca dos seus perigos e acerca do que sabiam.

Uma preocupação que se pode ter quanto a considerar que a estratégia do tabaco foi epistemicamente malévola no sentido de Baehr é que o seu alvo foi demasiado específico. Presumivelmente, a indústria do tabaco não se opunha ao conhecimento em si, e por isso não revelava malevolência epistémica na sua forma impessoal. Nem se opunha ao bem-estar epistémico geral dos fumadores. Tudo o que fez foi evitar muitos fumadores de ganhar ou reter um tipo específico de conhecimento — o conhecimento das consequências médicas de fumar cigarros — e poder-se-ia pensar que este objectivo é demasiado restrito para falar apropriadamente de malevolência epistémica. Isto mesmo que se reconheça que a estratégia do tabaco fez muitos estragos epistémicos colaterais. Por exemplo, o ataque ao conhecimento científico dos efeitos de fumar era também implicitamente um ataque ao conhecimento científico mais em geral. O cepticismo quanto à ciência comum num domínio pode levar ao cepticismo noutros domínios, mas a estratégia do tabaco só atacava as ideias científicas comuns de um deles.

Uma resposta a esta preocupação seria alargar a noção de malevolência epistémica e permitir que mesmo os ataques muitíssimo restritos ao conhecimento contem como casos particulares. Mesmo que a estratégia do tabaco careça da completa generalidade da malevolência epistémica, tal como Baehr a entende, é ainda reconhecidamente uma forma desse vício. Uma resposta diferente à preocupação quanto ao carácter restrito da estratégia do tabaco seria procurar formas menos restritas de malevolência epistémica para ilustrar o fenómeno. Por exemplo, a malevolência epistémica de certos tablóides, assim como de alguns canais noticiosos, parece bastante geral. Fazem erodir o bem-estar epistémico dos seus leitores e telespectadores num sentido mais geral ao apresentar propaganda como notícias e ao promover implicitamente a redução das exigências epistémicas. É como se estes serviços noticiosos estivessem activamente a tentar prejudicar as sensibilidades epistémicas do eleitorado. A exposição prolongada à Fox News ou aos tablóides britânicos não pode ser muito boa seja para quem for, epistemicamente falando.

Qual é a relação entre a malevolência e o descaso epistémicos? São conceptualmente distintos ainda que estejam muitas vezes aliados na prática. A distinção conceptual é entre não ligar a algo e opor-se-lhe activamente. A malevolência epistémica é diferente do descaso epistémico precisamente porque não é uma questão de ser excessivamente descontraído ou indolente quanto ao desafio de encontrar respostas para questões complexas ou de ter tendência para considerar que são menos complexas do que na verdade são. Seja o que for que se possa acusar a indústria do tabaco de ter feito, não foi isso que fez. Ao contrário do descaso epistémico, na malevolência epistémica não se considera o imperativo de encontrar provas em favor das nossas perspectivas uma mera inconveniência. Trata-se antes de activamente fazer erodir o que, em privado, se reconhece que são boas provas em favor das perspectivas que se pretende fazer erodir. É precisamente porque o epistemicamente malévolo se importa com o que as provas mostram ou com o que os factos são que se entrega à subversão das provas ou que avança “factos alternativos”. A indústria do tabaco preocupava-se e muito acerca do que as provas mostravam quanto aos efeitos nocivos de fumar, e muitos executivos da indústria deixaram de fumar quando viram as provas. O que não queriam era que os seus clientes fizessem o mesmo, e isso não é de modo algum o mesmo que não se importar com as provas.

Uma maneira muito natural de captar estas distinções intuitivas é conceber a malevolência epistémica como um posicionamento e não como uma postura. Os posicionamentos não se distinguem pela presença ou ausência de uma qualidade afectiva particular, e pode-se dizer o mesmo em grande parte da malevolência epistémica. A malevolência epistémica é uma atitude, mas não uma atitude afectiva como o descaso epistémico. A estratégia do tabaco mostra claramente que se pode ser epistemicamente malévolo sem descaso epistémico. Baehr sugere a dado ponto que a malevolência envolve um tipo de “hostilidade ou desprezo pelo bem” (2010: 190), e isto pode fazer parecer que esta atitude não é menos “afectiva” do que o descaso epistémico. Contudo, a hostilidade ou desprezo pelo bem epistémico não é essencial para a malevolência epistémica, e a motivação da estratégia do tabaco não era o desprezo pelo conhecimento mas antes o interesse próprio económico. Além disso, a malevolência epistémica da indústria do tabaco, como a malevolência epistémica em geral, era uma questão de política e não uma orientação passiva; a política era espalhar dúvidas sobre os perigos de fumar. A indústria tinha a opção de adoptar ou rejeitar esta política. A malevolência epistémica é voluntária num sentido em que as posturas não o são. Uma pessoa não decide não se importar se os seus pontos de vista são apoiados ou não pelas provas, no mesmo sentido em que decide fazer erodir ou não o conhecimento de outra pessoa ou as provas em que o conhecimento dela se baseia.

Mesmo que a malevolência epistémica não implique descaso epistémico, será que este último implica a primeira? Poderá haver razões para pensá-lo, caso se assuma o ponto de vista de que o descaso epistémico implica o desprezo, e que este implica uma forma de malevolência.19 Contudo, o núcleo afectivo do descaso epistémico é a indiferença e não o desprezo, e aquela não é uma forma de malevolência epistémica. Além disso, ainda que se assumisse o ponto de vista de que o descaso epistémico implica afinal desprezo, mesmo assim não se seguiria que implica malevolência epistémica porque o desprezo não é o mesmo que malevolência. O desprezo pelo conhecimento é uma postura e não um posicionamento e, ao contrário da malevolência epistémica, não tem de ter como resultado o enfraquecimento insidioso activo do conhecimento, ou a distorção das provas.

Apesar da distinção conceptual relativamente clara entre o descaso e a malevolência epistémicos, pode ser difícil saber que vício a conduta de uma pessoa exemplifica. É razoavelmente claro que a estratégia do tabaco era epistémica e moralmente malévola, mas o que dizer da maneira como argumentaram alguns partidários da campanha a favor da saída do Reino Unido da UE? Por exemplo, afirmaram que o Reino Unido envia 350 milhões de libras por semana para a UE, e que este montante ficaria disponível para usar no Serviço Nacional de Saúde depois da saída. Contudo, o número de 350 milhões de libras era enganador porque não tinha em consideração o dinheiro pago ao Reino Unido pela UE, e a sugestão de que mais 350 milhões de libras ficaram disponíveis para o Serviço Nacional de Saúde depois do Brexit foi rapidamente rejeitada por um membro da campanha a favor da saída, depois da vitória no referendo de 2017.20 Considerar que a atitude de quem foi responsável por esta estratégia foi um descaso epistémico poderá ser visto como excessivamente generoso. À sua maneira, a difusão de informação enganadora acerca dos benefícios económicos de deixar a UE foi tão epistemicamente malévolo quanto a estratégia do tabaco. A promoção activa da ignorância política e económica foi a política de alguns dirigentes da campanha a favor da saída, e não apenas um reflexo de uma postura epistémica. Contudo, algumas desses mesmos dirigentes revelaram também aquilo a que tenho vindo a chamar descaso epistémico. Onde acaba exactamente o descaso epistémico e começa a malevolência epistémica é difícil dizer, e a atitude de muitos políticos nos sistemas democráticos é uma mistura de ambos. O que se pode fazer quanto a isto, se é que se pode fazer alguma coisa, é uma questão importante, mas não para ser aqui discutida.

IV

Resta a questão: em que sentido o descaso e a malevolência epistémicos são vícios epistémicos? Do ponto de vista do obstrucionismo, os vícios epistémicos são obstruções sistemáticas à aquisição, manutenção e difusão do conhecimento, e há diferentes vícios associados a diferentes dimensões do nosso conhecimento. A arrogância intelectual é uma obstrução à aquisição e difusão do conhecimento. Por exemplo, como Thomas Ricks mostra no seu livro de 2007 acerca da guerra do Iraque (Ricks 2007), a atitude arrogante e desdenhosa dos membros dirigentes da administração de Bush impediu-os de saber quantas tropas seriam necessárias no Iraque depois da invasão dos EUA de 2003. Essa atitude teve esse resultado porque lhes tornou difícil aprender com os militares que sabiam a resposta a essa questão. Do mesmo modo, quem sabia a resposta foi impedido de partilhar o seu conhecimento com a administração. O preconceito é outra atitude que constitui uma obstrução à aquisição e difusão do conhecimento. No exemplo de Fricker, o preconceito dos jurados impediu Tom Robinson de partilhar o seu conhecimento e com isso impediu também os jurados de saber o que aconteceu a Mayella Ewell. Com a malevolência epistémica, o impacto principal é quanto à aquisição e manutenção de conhecimento. Para quem não sabia da ligação entre fumar e o cancro, o objectivo da estratégia do tabaco era impedi-los de passar a saber dela. Com respeito às pessoas que já tinham conhecimento da ligação, o objectivo era privá-las do seu conhecimento. Quanto às consequências epistémicas do descaso epistémico, a falta de preocupação com a verdade torna mais difícil conhecer a verdade, ao passo que a depreciação dos peritos impede-os de partilhar o seu conhecimento connosco. Além disso, as meias-verdades e as falsidades explícitas que são os subprodutos naturais do descaso epistémico torna mais difícil a retenção do conhecimento. Ser sujeito a um fogo cerrado contínuo de afirmações enganadoras acerca de determinado assunto pode despojar uma pessoa do seu conhecimento prévio acerca desse assunto, ao turvar as águas e ao fazer-nos desconfiar do nosso próprio juízo, ainda que este seja de facto sólido.

Estes impactos das atitudes viciosas no nosso conhecimento tornam-se inteligíveis com a concepção de conhecimento em que só se sabe que P se P for verdadeiro, se está razoavelmente confiante que P, e se tem o direito de estar confiante.21 Deste ponto de vista, que não é de modo algum o único capaz de explicar o impacto dos vícios epistémicos no nosso conhecimento, uma maneira de uma atitude viciosa se atravessar no caminho do conhecimento é tornar menos provável que as nossas crenças sejam verdadeiras. Todos os vícios epistémicos que tenho vindo a descrever têm esse efeito. As provas em favor de uma crença são provas em favor da sua verdade, e as crenças que têm um apoio probatório adequado têm mais probabilidade de ser verdadeiras do que as crenças que não o têm. As atitudes viciosas, como os vícios epistémicos em geral, atravessam-se no caminho do conhecimento tornando menos provável que as crenças se apoiem em provas. Os preconceitos dos jurados em Mataram a Cotovia tiveram como resultado não terem baseado em provas a crença na culpa de Tom Robinson, e em resultado disso acabaram com a crença falsa de que era culpado. Do mesmo modo, não foi apenas azar que tenham sido falsas as crenças da administração de Bush acerca do número de tropas norte-americanas que seriam necessárias no Iraque. Eram falsas porque não se baseavam em provas, e não se baseavam nelas porque a arrogância de Donald Rumsfeld, entre outros, levou-o a ignorá-las. O descaso epistémico em conjunção com a arrogância intelectual tem ainda menos probabilidade de produzir crenças verdadeiras: não se importar com as provas dificilmente conduz à formação de crenças baseadas em provas.

Outra maneira de as atitudes viciosas se atravessarem no caminho do conhecimento é ao fazer erodir a confiança e tornar mais difícil que se mantenha as nossas crenças verdadeiras. Esta é a essência da estratégia do tabaco. A maneira mais segura de eliminar o conhecimento de alguém sobre a conexão entre fumar e o cancro é instilar dúvidas no seu espírito sobre se há realmente uma ligação. Quanto mais se duvida da existência de uma ligação menos confiança se tem de que seja genuína. A partir de certo ponto, esta perda de confiança implica uma perda de crença e, portanto, perda de conhecimento. Contudo, a pessoa que é privada de conhecimento pelo vício da malevolência epistémica não é a pessoa viciosa. A malevolência epistémica neste aspecto é diferente de outros vícios epistémicos, cujo impacto epistémico principal se exerce em quem é vicioso. A malevolência epistémica visa terceiros, e a sua eficácia é uma indicação da relação íntima entre conhecimento, crença e confiança. Instilar dúvidas sobre a ligação entre fumar e o cancro é um meio eficaz de destituir uma pessoa do seu conhecimento desta ligação porque o conhecimento exige confiança.

Vale a pena insistir neste ponto porque a ideia de que a confiança epistémica é uma condição do conhecimento não é incontroversa.22 Tem-se defendido com frequência, correctamente, que o conhecimento não exige certeza, e alguns epistemólogos questionaram até a ideia de que a crença seja uma condição do conhecimento (Radford 1966). Se o conhecimento não exige crença, então destituir alguém da sua crença de que fumar causa o cancro não a destitui necessariamente do conhecimento de que fumar provoca o cancro. Se o conhecimento não requer confiança, então fazer erodir a confiança de que fumar causa o cancro não a destitui necessariamente do conhecimento desse facto. Contudo, é fácil pôr este argumento de pernas para o ar: se a confiança e a crença não são requisitos do conhecimento, então a estratégia do tabaco nem de perto teria sido tão eficaz quanto o foi. O dado é que a estratégia do tabaco é eficaz na destituição de conhecimento, e a melhor explicação deste dado é que sem um grau adequado de confiança nas nossas crenças, não há conhecimento.

Quão fácil exactamente será fazer alguém perder confiança numa crença particular depende, sem dúvida, da natureza da crença e da natureza do indivíduo. Uma pessoa a quem se apresenta bons argumentos para duvidar de P poderá continuar a ter confiança que P, mas a questão em tais casos é se há justificação para essa confiança. Isto aponta para uma terceira maneira de as atitudes viciosas se atravessarem no caminho do conhecimento: destituindo-nos do direito a ter confiança que P, em vez de nos tirar a confiança. Imagine-se uma variação da história de Harper Lee, na qual Tom é culpado mas onde a confiança dos jurados na sua culpa é o resultado de preconceito e não da consideração sóbria das provas. Nesse caso, os jurados não teriam direito a ter confiança na culpa de Tom e não saberiam que ele era culpado, apesar de o ser. Nem sempre é fácil saber com que base alguém tem uma crença particular, mas na medida em que a crença que P de alguém se deve a uma atitude viciosa, ou na verdade a qualquer vício epistémico, o direito dessa pessoa à confiança que P ou à crença que P é posta em questão. Pode acontecer que a crença de alguém seja baseada em provas, mas a sua interpretação destas seja em si inadequadamente influenciada por um ou mais dos seus vícios. Esta é outra maneira de as atitudes viciosas se atravessarem no caminho do conhecimento: ainda que um vício particular não seja a base da crença que P de alguém, pode ser nessa base que ela interpreta as provas que indicam que P. Quando isto acontece, pode não ter direito a ter confiança que P. Do mesmo modo, pode não ter o direito de ter confiança que P se o preconceito, o descaso epistémico ou qualquer outra atitude viciosa é a base a partir da qual rejeita as provas contra P ou a partir da qual as considera enganadoras.

Nada disto é negar que há circunstâncias em que o descaso epistémico e outros vícios epistémicos instigam a aquisição, transmissão ou retenção de conhecimento. A afirmação não é que os vícios epistémicos invariavelmente se atravessam no caminho do conhecimento, mas antes que isso é o que acontece normalmente. No mundo real, os vícios epistémicos atravessam-se sistematicamente no caminho do conhecimento. Se os vícios epistémicos não se atravessassem sistematicamente, ou seja, não-aleatoriamente, no caminho do conhecimento, não haveria razão para lhes chamar vícios epistémicos.23 Não haveria também razão para nos referirmos a eles deste modo se não envolvessem culpa ou se não fossem repreensíveis de algum modo, ou seja, abertos à crítica. Segundo alguns pontos de vista, os vícios são adquiridos voluntariamente. Isto torna-nos totalmente responsáveis e potencialmente culpados pelos nossos vícios, sejam eles epistémicos ou morais. Esta perspectiva não tem grande coisa a seu favor. É claro que é possível cultivar os nossos vícios do mesmo modo que, segundo Aristóteles, cultivamos as nossas virtudes, mas o preconceito, o descaso epistémico e outros vícios epistémicos são muitas vezes passivamente absorvidos e não activamente cultivados.

Uma base mais promissora para considerar que as pessoas são responsáveis pelos seus vícios epistémicos, e potencialmente culpadas, é a ideia de que ainda que não os tenham voluntariamente adquirido é contudo possível que exerçam controlo sobre eles e os mudem. Os executivos epistemicamente malévolos da indústria do tabaco foram responsáveis pela sua malevolência porque não tinham de ser daquele modo. O seu posicionamento malévolo foi voluntário. Somos responsáveis pelos traços de carácter, atitudes ou estilos de pensamento sobre os quais temos controlo, quer o exerçamos quer não. Há controlos de diversos tipos. O controlo que temos sobre as nossas posturas epistémicas não é voluntário mas antes avaliador ou manipulador.24 Não é uma questão de mudar a nossa postura por um acto de vontade, mas a mudança é possível avaliando se a nossa atitude tem fundamento adequado, ou justificação. Por exemplo, concluir que o nosso desprezo epistémico ou descaso se baseia em crenças falsas, ou que não tem qualquer garantia por qualquer outra razão, é potencialmente uma maneira de passar a ter menos desprezo epistémico ou descaso. Algumas das nossas posturas resistem a este tipo de controlo avaliador e este é o ponto em que a possibilidade de exercer controlo manipulador sobre as nossas atitudes ou outros vícios é significativo. O controlo manipulador é exercido levando a cabo estratégias de auto-aperfeiçoamento de diferentes tipos. Se as nossas atitudes são o produto de factores ambientais, então uma maneira eficaz de manipulá-las é manipular o nosso meio ambiente.25

Há muito mais a dizer acerca da questão da responsabilidade mas a intuição de que alguns dos políticos que descrevi de início são responsáveis pelo seu descaso epistémico é a intuição de que não têm de ser assim. Podem e devem fazer melhor e podem e devem mudar a sua atitude. É preciso reconhecer, contudo, que as atitudes que em princípio são susceptíveis de ser revistas poderão não o ser na prática devido à maneira como são sustentadas por factores ambientais sobre os quais temos pouco controlo.26 Um desses factores é a classe social. Na sua obra, José Medina oferece um análise de classe do vício epistémico.27 Ele identifica um agregado de atitudes epistémicas que considera vícios epistémicos dos privilegiados, ou seja, vícios associados ao privilégio social. Estas atitudes corrompidas incluem a arrogância epistémica, a preguiça epistémica e a tacanhez. Apesar de a arrogância epistémica não estar sempre presente na psicologia dos poderosos e dos privilegiados, Medina sustenta que “quem está em posição de poder tem certamente mais riscos de desenvolver este defeito” (2013: 31).28 Do mesmo modo, há aspectos inteiros da vida que quem está em posição de privilégio não precisa de conhecer. Os exemplos incluem a pobreza e a opressão. Esta “falta de curiosidade socialmente produzida e cuidadosamente orquestrada” (2013: 31) é o que Medina quer dizer com “preguiça epistémica”. Apesar de Medina não mencionar o descaso epistémico, é possível considerar que esta postura é outro vício epistémico dos privilegiados. Estar em posição de poder e privilégio pode resultar em confiança intelectual excessiva ou num complexo de superioridade cognitiva, e estes defeitos podem encontrar expressão na indiferença que está no coração do descaso epistémico.29 O descaso epistémico e a treta não são, é claro, exclusivos dos privilegiados mas pode apesar disso ser sustentado pelo poder e pelo privilégio.

Se isto tem alguma plausibilidade, então rever a nossa atitude corrompida manipulando ou alterando o nosso meio ambiente não é fácil. Não é como se pudéssemos mudar a nossa classe social ou formação escolar. Dependendo do ponto de vista que se tem sobre as condições para ser culpado isto pode diminuir ou não a culpa de indivíduos privilegiados pelas suas atitudes corrompidas. Contudo, os vícios epistémicos não precisam de ser dignos de censura.30 A culpa é uma coisa e a crítica outra. Como Julia Driver observa, “por vezes, e na verdade muitas vezes, fazemos comentários críticos acerca do intelecto de alguém sem o culpar” (2000: 132). Ainda que os jurados de Tom Robinson não pudessem realmente ter feito fosse o que fosse para mudar as suas atitudes racistas e não tenham sido estritamente culpados, seria bizarro supor nesta base que as próprias atitudes, e e os jurados individuais que as tinham, eram imunes à crítica. As atitudes racistas dos jurados foram chocantes e repreensíveis quer tenham ou não sido responsáveis por elas em algum sentido último. Do mesmo modo, ainda que talvez não na mesma medida, o descaso epistémico dos privilegiados está aberto à crítica e é neste sentido repreensível. O que é exactamente preciso para que uma atitude seja repreensível sem culpa não é uma questão que possa ser abordada aqui. Os pontos importantes para os propósitos em mãos são que a distinção de Driver é boa e que o descaso epistémico é repreensível ainda que não haja culpa. Isto é suficiente para que seja um vício epistémico dado atravessar-se no caminho do conhecimento.

Isto completa o argumento principal deste artigo. Contudo, há mais uma questão que gostaria de enfrentar antes de fechar a discussão. Foi aqui dada ênfase às atitudes viciosas. Isto contrasta com as perspectivas “responsabilistas" dos vícios e das virtudes epistémicos que os consideram traços de carácter. O obstrucionismo tem uma concepção mais eclética, segundo a qual os vícios epistémicos podem ser atitudes, traços de carácter ou até maneiras de pensar, ou estilos. A tacanhez é um traço de carácter epistemicamente vicioso e o pensamento mágico (wishful thinking) é uma maneira epistemicamente viciosa de pensar. Qual é a relação entre atitudes viciosas, vícios de carácter e vícios nas maneiras de pensar? Será absolutamente claro que o descaso epistémico é uma atitude viciosa? Quando se fala de descaso epistémico no caso de uma pessoa como Boris Johnson, isto pode ser interpretado como um comentário acerca do seu carácter ou da sua atitude. Contudo, há esta assimetria entre as duas leituras: não faz sentido supor que o carácter de uma pessoa inclui o descaso epistémico sem ao mesmo tempo supor que tem uma atitude de descaso epistémico perante a tarefa de encontrar respostas para questões complexas. Isto reflecte o facto de os nossos traços de carácter serem de uma certa maneira uma função das nossas atitudes, mas as nossas atitudes não são uma função dos nossos traços de carácter.31 Faz perfeito sentido supor que uma pessoa poderia exibir uma atitude particular em resposta a uma questão particular ainda que não tivesse o traço de carácter correspondente; a sua atitude neste caso poderia estar em contradição consigo mesma. Uma atitude de descaso epistémico num dado caso pode explicar-se sem referência ao descaso epistémico como traço de carácter, mas o traço de carácter não pode ser explicado sem referência à atitude.

A relação entre as atitudes e os modos de pensar é menos clara mas é defensável que as posturas epistémicas são em parte um reflexo ou função de como se pensa. Uma pessoa com uma atitude de descaso epistémico tem de estar disposta a pensar de maneiras características. As atitudes não são apenas modos de pensar mas envolvem o pensamento, ou estar disposto a pensar, de maneiras particulares. Ao mesmo tempo, estes modos de pensar não podem ser explicados ou entendidos sem referência às atitudes que manifestam. Nesse caso, nem a atitude é mais básica que a maneira de pensar nem vice-versa, ainda que ambas sejam mais básicas que os traços de carácter a que correspondem. Tem de se dizer, contudo, que apesar de ser de interesse filosófico as questões acerca do que é mais básico entre dois tipos de vícios, ou qual é a prioridade explicativa, o interesse prático é limitado. Para os propósitos em mãos, o ponto importante não é que as atitudes viciosas sejam mais ou menos básicas do que os vícios de carácter ou vícios da maneira de pensar, mas que as atitudes viciosas existem como um tipo distinto de vício epistémico. Este ponto parece bastante óbvio quando é formulado, e é difícil entender a negligência a que as atitudes foram votadas nos tratamentos filosóficos do vício epistémico.32

Não deveria ser de modo algum surpreendente que há atitudes que propiciam a aquisição, difusão e manutenção do conhecimento e atitudes que têm o efeito oposto. O desafio ao pensar acerca destes temas de um ponto de vista filosófico é não pressupor que são “atitudes proposicionais”. As atitudes viciosas são “atitudes” num sentido mais comum, o sentido em que o desprezo e a indiferença são atitudes mas a crença não. É a dimensão afectiva das atitudes comuns que sublinhei porque é tão fácil não a ter em conta. Mais em geral, vale a pena ter em mente a importância da postura na nossa vida intelectual ou cognitiva, tal como na vida física. A importância da postura física no trabalho manual é amplamente reconhecida. A importância da postura epistémica no trabalho epistémico não o é. Uma má postura física provoca vários tipos de problemas físicos, e uma má postura epistémica provoca vários tipos de problemas intelectuais. De modo que o melhor conselho perante o descaso epistémico e a arrogância intelectual é este: melhore a sua postura.33

Quassim Cassam
Journal of Philosophical Research, vol. 43 (2018), pp. 1–20.

Bibliografia

Notas

  1. Traduz-se aqui stance por “posicionamento” e posture por “postura”, por razões que se tornam claras no decorrer do texto, apesar de noutros textos se usar “postura” para stance (a “postura intencional” de Dennett, por exemplo). N. do T.↩︎
  2. Veja-se a reportagem sobre a entrevista no Financial Times de 3 de Junho de 2016.↩︎
  3. Segundo a reportagem do The Independent.↩︎
  4. Os dois artigos foram publicados em apêndice em Shipman 2017. Shipman põe em questão a perspectiva de que Johnson era “um apoiante dedicado da permanência na UE que decidiu apoiar a saída pelo motivo simples e cínico de fazer avançar a sua carreira” (2017: 171).↩︎
  5. “Postura epistémica” é de Jackson 2015.↩︎
  6. É aproximadamente assim que os psicólogos concebem as atitudes. Na psicologia, “a maior parte dos teorizadores das atitudes argumentariam que a avaliação é o aspecto predominante do conceito de atitude. Por outras palavras, ter uma atitude envolve tomar uma decisão de gostar em vez de não gostar, ou de favorecer em vez de não favorecer uma questão particular, objecto ou pessoa” (2015: 4).↩︎
  7. Nas palavras de Mason, “ao considerar o desprezo uma forma de consideração pretendo justificar — em última análise, justificar moralmente — um certo posicionamento afectivo perante outra pessoa, e não (ou não apenas) a adopção de uma certa crença acerca dela (e.g., que é desprezível)” (2003: 239).↩︎
  8. Será plausível que a arrogância intelectual tenha uma qualidade afectiva? Haverá realmente um “sentimento de superioridade” e será essencial para a arrogância intelectual? Quanto à primeira destas questões, não há mais razão para duvidar da possibilidade de uma pessoa se sentir superior do que para duvidar da possibilidade de ela se sentir presunçosa ou confiante. Talvez todos estes usos de “sentimento” sejam metafóricos, mas penso que não há razão para não aceitar as coisas como parece à primeira vista que são e para não aceitar que a superioridade, como a presunção e a confiança, é algo que se pode sentir. Tanesini 2016 é uma discussão iluminante da arrogância intelectual.↩︎
  9. Considere-se a futilidade de alguém que atravessa uma crise de autoconfiança intelectual e que decide sentir-se intelectualmente superior.↩︎
  10. Trata-se de orações subordinadas substantivas objectivas directas, introduzidas pela conjunção subordinativa integrante “que”. Dada a inexistência de uma designação sensata na gramática portuguesa, optou-se por manter a tradução literal do inglês, “that” clause, para evitar a verbosidade. N. do T.↩︎
  11. Wittgenstein traçou o contraste entre atitudes e crenças na defesa célebre de que a atitude perante outra pessoa é perante uma alma e que não se tem a opinião de que ela tem uma alma.↩︎
  12. Dito isto, consegue-se talvez imaginar alguém que tem orgulho no seu descaso epistémico e que cultiva activamente essa atitude. Foi-me sugerido que o presidente Trump poderá ser assim. Contudo, ainda que seja concebível que uma pessoa tome medidas para alimentar o seu próprio descaso epistémico, suponho que não será o caso normal.↩︎
  13. Battaly mencionou este aspecto acerca dos mandriões numa versão anterior deste artigo. Veja-se Battaly (2015: 99–100) para o conceito de mandrião. Ser um mandrião, no sentido de Battaly, significa não ter interesse no que é bom ou mau e não desenvolver uma concepção do que é bom ou mau. Não é claro, contudo, que Johnson não tenha concepção do que é epistemicamente bom ou mau. Neste caso, e eu defenderia o mesmo no caso geral dos mandriões intelectuais, o ponto crucial não é que careçam de uma compreensão da distinção entre provas fortes e fracas, mas antes que não se interessam o suficiente pela ideia de basear os seus pontos de vista em boas provas.↩︎
  14. “Uma posição filosófica pode consistir num posicionamento (atitude, compromisso, abordagem, um agregado dos quais inclui também possivelmente algumas atitudes proposicionais, como as crenças). Tal posicionamento pode é claro ser expresso, e pode envolver ou pressupor também algumas crenças, mas não pode ser simplesmente equacionado às crença que se tem ou às asserções que se faz sobre o que há” (van Fraassen 2002: 47).↩︎
  15. É nesta base que Lipton (2004: 147) correctamente considera que van Fraassen propõe uma forma de voluntarismo epistemológico.↩︎
  16. Este é pelo menos um dos sentidos em que, como diz van Fraassen, “ter ou adoptar um posicionamento é ter ou adoptar um agregado de atitudes, incluindo várias atitudes proposicionais, que em geral incluirão algumas crenças” (2004: 175).↩︎
  17. Este é o meu ponto de vista acerca da malevolência, e não o de Baehr.↩︎
  18. Citado por Oreskes e Conway 2010: 34.↩︎
  19. Agradeço a Heather Battaly esta sugestão.↩︎
  20. A história do desastre do Brexit é contada em Shipman 2017 e Ball 2017, capítulo 1. Ball considera que o sucesso da campanha do Brexit é o triunfo da treta, mas grande parte do que descreve é epistemicamente malévolo e não mera treta. Em harmonia com o que tenho vindo a defender, e com a perspectiva de Frankfurt, Ball considera que a treta envolve “uma atitude descontraída quanto à verdade” (2017: 13).↩︎
  21. Ayer insiste que para saber que P tem de se ter completa certeza que P e ter o “direito de ter a certeza” (1956: 31). Isto é demasiado forte. Pode-se saber que P sem ter a certeza de que P, mas não sem se estar razoavelmente confiante que P (veja-se Williamson 2000: 97).↩︎
  22. Timothy Williamson objecta que “as pessoas modestas sabem muitas coisas sem que tenham especial confiança nelas” (2009: 297). Como Miranda Fricker faz notar, “muitas concepções de conhecimento seleccionam um género qualquer de condição de confiança como uma condição do conhecimento” (2007: 49). É o caso da minha concepção.↩︎
  23. Compare-se Driver (2001: 82): “uma virtude é um traço de carácter que produz sistematicamente mais bem (efectivamente) do que o contrário”.↩︎
  24. Sobre a noção de controlo voluntário veja-se Adams 1985: 8. A distinção entre controlo “avaliador” e “manipulador” (a que ela chama também “controlo de gerência”) deve-se a Pamela Hieronymi. Do ponto de vista dela, temos controlo avaliador sobre as nossas crenças: controlamo-las “avaliando o que é verdadeiro” (2006: 53). Temos controlo manipulador “quando manipulamos um objecto comum para se adaptar aos nossos pensamentos acerca dele” (2006: 53). Por exemplo, tenho controlo manipulador sobre a disposição da mobília do meu gabinete: posso mudar a configuração mudando as coisas.↩︎
  25. Veja-se Dasgupta e Greenwald 2001 e Holroyd e Kelly 2016.↩︎
  26. Veja-se Battaly 2016.↩︎
  27. Para Medina, os vícios epistémicos “são compostos de estruturas atitudinais que permeiam toda a nossa vida cognitiva: envolvem atitudes para connosco mesmos e para com os outros em trocas testemunhais, atitudes perante as provas disponíveis e a nossa avaliação delas, e assim por diante” (2013: 31). Uma questão central é: “quais são os vícios epistémicos que quem está melhor na sociedade pode (ou até tende a) desenvolver?” (2013: 30).↩︎
  28. Por que há-de ser assim? Porque o privilégio de presumir sempre que se sabe “estraga por vezes as pessoas” (Medina 2013: 30).↩︎
  29. Para um tratamento da confiança excessiva veja-se Cassam 2017.↩︎
  30. Como Heather Battaly defende, “parece possível ter virtudes e vícios mas não ser culpado nem digno de elogio por os ter” (2016: 106).↩︎
  31. Para Medina, os traços de carácter são compostos de atitudes, e um vício epistémico é “um conjunto de atitudes e disposições corrompidas que se atravessam no caminho do conhecimento” (2013: 30).↩︎
  32. Uma pessoa que não é culpada de negligenciar as atitudes na sua obra sobre as virtudes e vícios epistémicos é Alessandra Tanesini. Veja-se, por exemplo, Tanesini 2016.↩︎
  33. Agradeço a Mark Alfano, Heather Battaly, Jonathan Freedland, Fleur Jongepier, Ian James Kidd, Fabienne Peter e Alessandra Tanesini as discussões proveitosas e os comentários a uma versão anterior deste artigo.↩︎
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ISSN 1749-8457