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Crítica
18 de Maio de 2010   Filosofia da linguagem

Introdução à teoria das descrições de Russell

Sagid Salles Ferreira

Usamos cotidianamente um conjunto de expressões para captar, selecionar ou referir uma determinada coisa particular e podermos em seguida dizer algo sobre essa coisa. Expressões desse tipo incluem nomes próprios, como “Platão” ou “João”, descrições definidas, como “o rei da França” ou “o autor da República”, demonstrativos, como “este” ou “isto”, etc. O uso cotidiano de tais expressões pode parecer não envolver problema filosófico algum. Afinal, o que poderia haver de mais banal? Mas, infelizmente (ou felizmente?) há problemas filosóficos dificílimos envolvidos aí. Bertrand Russell notou isso, e desenvolveu uma curiosa análise das expressões do segundo tipo mencionado, estendendo-a, posteriormente, às do primeiro tipo. Russell pensava que se a sua análise estivesse correta, seria capaz de resolver um conjunto de problemas filosóficos que vão da filosofia da linguagem à metafísica. O principal objetivo deste trabalho é propor uma introdução acessível a essa análise, conhecida como Teoria das Descrições, sem esquecer o número gigantesco de críticas e defesas levantadas a favor e contra ela.

Em 1905 Russell publicava um pequeno artigo chamado “On Denoting”, onde apresentou sua famosa teoria das descrições. Esta teoria tornou-se um verdadeiro paradigma da discussão na filosofia contemporânea. Consiste num método de análise de descrições definidas (expressões do tipo “o tal-e-tal”) e indefinidas (expressões do tipo “um tal-e-tal”). Ainda hoje, a teoria das descrições recebe muitas críticas e elogios. Deu origem a novos debates sobre temas como referência, nomes próprios, análise, problemas metafísicos relativos à existência de certas entidades, etc. Não me ocuparei de qualquer destes problemas exaustivamente, embora cada um mereça uma discussão isolada. O meu interesse neste texto é uma questão mais geral: oferecer uma introdução à teoria das descrições e um ligeiro debate sobre o valor do método de análise oferecido por Russell como um todo.

Embora a teoria das descrições se tenha tornado bastante popular e por algum tempo quase imune a críticas (na verdade, foram quarenta e cinco anos sem críticas influentes, o que é um grande feito em filosofia), em 1950 P. F. Strawson publicou uma vasta crítica, que pretendia atacar praticamente toda teoria de Russell. Daí para frente, as críticas não pararam mais, passando por Donnellan, Kripke e muitos outros. Essas críticas podem dividir-se em dois grupos (distinção de Peter Hylton 2003: 228): as que dizem respeito à correção da análise de Russell para descrições definidas e as que dizem respeito à extensão dessa análise para os nomes próprios. Neste texto apresento apenas as primeiras.

Este trabalho está dividido em quatro partes. Na primeira, faço uma pequena explicação de funções proposicionais e quantificadores. As noções de função proposicional e de quantificador são de extrema importância para a compreensão da teoria das descrições. Em “On Denoting” Russell expõe essas noções de modo um tanto complicado. Acabei optando por dedicar a Parte I a uma exposição informal desses conceitos. Penso que isso facilitará a leitura do restante do texto, mas, para aqueles que já têm um conhecimento mínimo desses tópicos, nada será perdido se começarem a leitura diretamente pela segunda parte. Na segunda, exponho os três enigmas que, segundo Russell (e neste ponto tinha razão), uma teoria satisfatória da denotação deve resolver. Nas Partes III e IV exponho respectivamente a teoria das descrições e as suas críticas.

I. Noções fundamentais

As noções que serão explicadas nesta parte são as de função proposicional e de quantificador. O intuito, como já foi dito, é facilitar a compreensão do que vem a seguir, e a exposição será bastante informal. Comecemos por função proposicional.

Em Introdução à Filosofia Matemática Russell afirma que muitos lógicos foram levados a erros por falta do aparato das funções proposicionais1 (Russell 1919: 202). Esse aparato é uma ferramenta importante na tentativa do filósofo de resolver problemas filosóficos com a teoria das descrições. Russell define funções proposicionais da seguinte maneira:

Uma função proposicional, de fato, é uma expressão que contém um ou mais constituintes indeterminados, tais que, quando se atribui valores a esses constituintes a expressão se torna uma proposição. Em outras palavras é uma função cujos valores são proposições. (Russell 1919: 188)

Deste modo, “x é mortal” é uma função proposicional, e quando se atribuir um valor a x, torna-se uma proposição verdadeira ou falsa. Por exemplo, se x for substituído por Sócrates, tornar-se-á uma proposição cujo valor é verdadeiro. Enquanto x permanecer indeterminado, a função não é verdadeira nem falsa. A função “x é mortal” pode ser simbolizada como M(x) onde M simboliza o predicado mortal e x é a variável. Neste contexto, exemplos de funções proposicionais seriam os seguintes:

1) x é mortal, ou M(x)
2) x é bonito, ou B(x)
3) x é uma girafa, ou G(x)

Vimos que em 1 a substituição de x por Sócrates gera uma proposição verdadeira. Mas se substituirmos x por Sócrates em 2 teremos “Sócrates é bonito” e, portanto, uma proposição falsa (todo mundo sabe que ele era feio). Do mesmo modo, se substituirmos x por Sócrates em 3 teremos uma proposição falsa. Visto isso, passemos aos quantificadores.

Mencionei que uma função não é nem verdadeira nem falsa, pois não é uma proposição; contudo, podemos dizer quantas vezes uma função forma uma proposição verdadeira. Para isso usamos quantificadores. Note-se os seguintes exemplos:

1) Todo x é mortal.
2) Nenhum x é mortal.
3) Algum x é mortal.

4 significa que qualquer valor que atribuirmos a x em “x é mortal”, resultará numa proposição verdadeira. 5 significa que as substituições nunca resultarão numa proposição verdadeira, e 6 significa que pelo menos uma vez a substituição resultará numa proposição verdadeira.2 Assim, poderíamos dizer o seguinte:

“4” significa que: “x é mortal” é verdadeira para todo valor de x.3
“5” significa que: “x é mortal” é falsa para todo valor de x.
“6” significa que: “x é mortal” é verdadeira para pelo menos um valor de x.4

Se, como antes, formalizarmos a função “x é mortal” como M(x), e formalizarmos “para todo (valor de) x” como (x) e “para algum (valor de) x” como (∃x). Teremos que:

4: (x) M(x)
6: (∃x) M(x)

A partir daqui, podemos formalizar 5, nenhum x é mortal, como a negação de 6:

5: ~(∃x) M(x)

Portanto, “todo o x é mortal” seria equivalente a “para todo o x, x é mortal”, “algum x é mortal” seria equivalente a “existe um x que é mortal” e “nenhum x é mortal” seria equivalente a “não existe um x que é mortal”. Por agora isto é suficiente.5

II. Três enigmas

Finalmente, podemos passar para os três enigmas. Todos os enigmas que mencionarei surgem de concepções aparentemente legítimas e que não deveriam nos levar a problema algum — mas levam. Em primeiro lugar, há uma classe de termos, chamados termos singulares, que servem de exemplos aparentemente incontroversos de termos que utilizamos para selecionar ou referir coisas no mundo. Dentre esses termos, estão os nomes próprios e as descrições definidas. (Qual é o significado dos nomes próprios e das descrições definidas? O que mais poderia ser se não o objeto referido por eles?). Pode parecer muito plausível alegar, com relação a esses termos, que a única contribuição que fazem para o significado das frases a que pertencem é a introdução de um referente. Desse modo, a única contribuição que o nome “Sócrates” faz para o significado da frase “Sócrates é mortal” é introduzir um objeto (nomeadamente, a própria pessoa Sócrates) no discurso e, em seguida, com o resto da frase, lhe predicamos uma propriedade (obviamente, a propriedade de ser mortal).

O mesmo aconteceria com descrições definidas como “O atual presidente do Brasil”. Se digo “O atual presidente do Brasil gosta de cachaça”, estou selecionando um objeto particular (Lula) e lhe atribuindo uma propriedade (a propriedade de gostar de cachaça). Para ver como isso é plausível à primeira vista, tente encontrar outro significado para essas expressões, que não o objeto selecionado por elas, e provavelmente encontrará bastante dificuldade. À teoria que afirma que a única função semântica de nomes, descrições ou qualquer outro termo singular é introduzir um referente chamarei teoria da referência direta.6

Nem sempre as coisas são tão simples. Como veremos a seguir, essas intuições aparentemente óbvias nos deixam numa situação difícil, colocando três problemas dificílimos de serem resolvidos. Esses problemas foram uma das principais razões para Russell ter recusado que a única função das descrições definidas é introduzir um referente no discurso (posteriormente, alegou o mesmo em relação aos nomes). Vejamos, então, os enigmas.7

Primeiro enigma: o problema da substituibilidade

Russell expõe este problema da seguinte maneira:

“Se “a” é idêntico a “b” o que quer que seja verdadeiro de um é verdadeiro do outro, e até se pode substituir um pelo outro em qualquer proposição sem alteração da verdade ou falsidade dessa proposição. Ora, George IV desejava saber se Scott era o autor de Waverley; e de fato Scott era o autor de Waverley. Conseqüentemente, podemos substituir “o autor de Waverley” por “Scott” e dessa maneira provar que George IV desejava saber se Scott era Scott”.8 (Russell 1905: 35; tradução minha)

Vimos que aparentemente não haveria problema algum em presumir que o significado de uma descrição definida ou um nome próprio é o objeto selecionado ou referido por eles. Conforme sabemos, Lula é o presidente do Brasil, e, portanto, as expressões “Lula” e “o atual presidente do Brasil” selecionam ou referem o mesmo objeto. Ora, uma vez que supomos antes que o significado de uma descrição ou nome é o objeto referido por eles (e o objeto referido por ambas expressões é o mesmo), devemos presumir também que “Lula” e “O atual presidente do Brasil” signifiquem a mesma coisa. Assim, essas expressões seriam semanticamente equivalentes, ou seja, contribuem da mesma forma para o significado das frases que as contêm.

Se isto for assim, então a substituição de um pelo outro não deveria alterar a verdade da proposição. Desse modo, a substituição de “Lula” em “Lula gosta de cachaça” por “o atual presidente do Brasil”, resultaria em “O atual presidente do Brasil gosta de cachaça”. Essa substituição não muda o valor de verdade da proposição. Se a primeira é verdadeira, então a segunda também será, e se a primeira for falsa, então a segunda também será.

Agora, imagine que João deseja saber se Lula é o atual presidente do Brasil. Podemos expressar o desejo de João dizendo que “João deseja saber se Lula é o atual presidente do Brasil”. Ora, seguindo o que foi dito acima, eu poderia substituir “o atual presidente do Brasil” por “Lula”, nessa frase. E o resultado seria que “João deseja saber se Lula é Lula”. O problema é que nesse caso, diferentemente do caso citado anteriormente, a substituição de um termo singular por outro termo singular co-referencial (ou seja, que refere a mesma coisa) parece ter alterado a verdade da proposição. Afinal, do fato de que João deseja saber se Lula é o presidente do Brasil não podemos concluir que ele deseja saber se Lula é Lula. “Lula é Lula” é uma identidade trivial e, com certeza, não era isso que João queria saber. Assim, alguma coisa parece estar errada com a noção de referência direta.

Segundo enigma: o enigma do terceiro excluído

Pense-se nos seguintes exemplos:

1) Lula é careca.
2) Lula não é careca.

Lembrando que a expressão “Lula” é um termo singular (um nome próprio), o seu significado deveria ser, segundo a teoria da referência direta, o objeto referido por ela. Desse modo, o significado do nome “Lula” é a pessoa Lula. Assim, 1 diz que essa pessoa é careca, e 2 que não é careca. Uma das duas será verdadeira, e a outra falsa. A verdade de uma implica a falsidade da outra. Isso significa dizer que “ou Lula é careca, ou Lula não é careca”, e não há uma terceira opção. Mas agora pense-se em:

3) O atual rei do Brasil é careca.
4) O atual rei do Brasil não é careca.

A expressão “O atual rei do Brasil” também é um termo singular e, assim, o seu significado deveria ser o objeto referido por ela. 3 diz, desse objeto, que é careca. 4 diz que não é careca. Do mesmo modo que no caso anterior, uma dessas duas teria de ser verdadeira. Não há terceira opção. Mas não existe atualmente rei do Brasil, e por isso ele não está nem entre as coisas carecas nem entre as coisas não carecas. Isso contraria a lei do terceiro excluído, que afirma que dada uma frase e sua negação, uma delas é verdadeira.

Poderíamos alegar que estas frases que dizem respeito ao atual rei do Brasil são destituídas de significado, e por isso não possuem valor de verdade. Uma vez que o significado da expressão “O atual rei do Brasil” é o objeto referido por ela, e dado que não há um objeto que essa expressão refira, também não tem significado. E já que essa expressão ocupa o lugar de sujeito gramatical nas frases 3 e 4, essas frases também não têm significado.

Mas isto parece absurdo, pois todos somos capazes de entendê-las perfeitamente. Assim, 3 e 4 devem ser dotadas de significado (pelo menos assim parece), e uma vez que “o atual rei do Brasil” é uma descrição definida, deve seu significado ao fato de selecionar um objeto. Entretanto, se essas frases têm significado, devem possuir valor de verdade e uma delas será verdadeira e a outra falsa. Mas, novamente, não há um atual rei do Brasil nem entre as coisas carecas nem entre as coisas não carecas.

Acabamos entrando no seguinte dilema: ou alegamos que essas frases acerca do atual rei do Brasil não têm significado, e isso seria muito contra-intuitivo. Ou teremos de explicar como uma dessas frases pode expressar uma verdade ou falsidade acerca de um rei que não existe. Em resumo, temos a seguinte pergunta: Como podemos dizer coisas verdadeiras ou mesmo falsas acerca de um ser que não existe?

Terceiro enigma: o problema das existenciais negativas

Pensemos na seguinte frase:

1) O atual rei do Brasil não existe.

Quem está informado sobre a história do Brasil sabe que atualmente não temos um rei. Portanto, o atual rei do Brasil não existe. Por sua vez, se não existe, então 1 expressa uma proposição verdadeira. Mas se 1 é verdadeira, é verdadeira acerca de quem?

Novamente, lembro que estamos supondo que a única contribuição que a descrição “o atual rei do Brasil” faz para o significado de 1 é o seu referente. Mas essa frase afirma justamente que essa descrição não tem referente, e se não tem referente, não pode ter significado. Como é óbvio que 1 é dotada de significado, a expressão “o atual rei do Brasil” deve ter referente. O problema é que se essa expressão tem um referente, então 1 deve ser falsa (e sua negação verdadeira). E assim, o atual rei do Brasil existe. E o tempo todo nós tínhamos um rei, e nem sabíamos.

O problema aqui é que isto acontecerá todas as vezes que tentarmos negar a existência de algo. Logo, é impossível negar a existência de algo sem implicar que existe.

O lógico Alexius Meinong (1904) ofereceu uma polêmica solução para este problema. Segundo ele, as confusões como estas surgem porque não notamos a distinção entre ser, não-ser e o que ele chamou de sosein. Por um lado, tanto eu como você, o Cristo Redentor (a estátua), o planeta Terra, etc., temos ser. Por outro, Pégaso, Papai Noel e o atual rei do Brasil não têm ser. Podemos dividir as coisas em seres e não-seres. Até aí tudo bem.

Mas Meinong acreditava que isso não bastava, pois havia uma coisa que seres e não-seres tinham em comum e, até ele, ninguém havia percebido isso. Todas as coisas (incluindo seres e não-seres) possuiriam sosein. Ou seja, todas elas poderiam possuir propriedades. E isso não vale apenas para Papai Noel ou o atual rei do Brasil, mas também para objetos que consideramos impossíveis, como o quadrado-redondo. Assim, em suas palavras:

o princípio não se aplica somente a objetos que de fato não existem, mas também a objetos que não poderiam existir porque são impossíveis. Não somente a tão solene montanha de ouro é feita de ouro, mas também o quadrado redondo é tão seguramente quadrado como redondo. (Meinong 1904: 82; tradução minha)

O quadrado redondo, a montanha de ouro e o atual rei do Brasil são objetos, assim como o Cristo Redentor, eu ou você, embora sejam objetos irreais.

Esta tese parece um pouco estranha; mas pensemos no seu poder explicativo. De acordo com ela, podemos perfeitamente negar a existência das coisas sem, com isso, implicar que elas existam. Assim, posso dizer que o atual rei do Brasil, ou o quadrado redondo, não existem, e dizer isso significa dizer que não são objetos reais. Entretanto, dizer que são não-seres ou objetos irreais não significa afirmar que não possuam propriedades. O atual rei do Brasil tem a propriedade de ser rei, e o quadrado redondo tem a propriedade de ser quadrado e redondo. O que falta a esses objetos é simplesmente a propriedade de existir. Em resumo, a tese de Meinong é simplesmente esta: todos os objetos têm propriedades, e “todos” inclui aqueles que existem e aqueles que não existem.9

Note-se que esta tese considera que existência é uma propriedade. Por outras palavras, dizer que um objeto existe é como dizer que é branco ou vermelho. Quando digo que uma coisa é branca, digo que tem a propriedade de ser branca e, do mesmo modo, dizer que algo existe é atribuir a propriedade da existência a essa coisa. No caso do atual rei do Brasil, posso dizer que tem a propriedade de ser rei, mas não tem a propriedade de existir.

Russell não ficou satisfeito com a solução de Meinong, alegando que feria o que denominou o nosso “sentido da realidade”, de modo que uma teoria que evitasse essas conseqüências deveria sempre ser preferível.

Vejamos então como Russell lidou com estes enigmas.

III. A teoria das descrições

Nesta parte exponho a teoria das descrições de Russell, e explico como esta teoria permite lidar com os três enigmas mencionados acima.

A teoria das descrições é uma tentativa de explicar tanto descrições indefinidas como descrições definidas. A diferença entre uma descrição definida e uma indefinida é que enquanto a primeira supostamente seleciona um objeto particular determinado, a segunda não. Ou seja, só as descrições definidas são, pelo menos aparentemente, termos singulares; as descrições indefinidas são termos gerais. Assim, “o atual presidente do Brasil” é uma descrição definida, enquanto “algum presidente do Brasil” ou “um presidente do Brasil” são descrições indefinidas. A primeira refere um objeto determinado, Lula, as outras referem qualquer presidente do Brasil. Russell dá muito mais atenção às descrições definidas do que às indefinidas. Isto porque está interessado em resolver os problemas abordados na parte anterior, e estes problemas afetam diretamente as descrições definidas.

Antes, porém, preciso explicar o que são proposições dependentes de objetos e proposições independentes de objetos.10

Proposições dependentes de objetos

Começo por dizer algo sobre o que é uma proposição. É possível compreender o conteúdo de algumas frases ou seqüências de palavras, enquanto outras parecem não ter conteúdo algum. Considere-se a frase “as idéias verdes dormem furiosamente juntas”. Essa seqüência de palavras, embora pareça ter uma estrutura gramatical perfeita, não parece expressar conteúdo algum. O que entendemos quando entendemos tal frase? Um exemplo mais claro seria “iefg xnyrrcn e8yrcb”, se alguém estava relutante em atribuir ou não algum conteúdo a frase anterior que pudesse ser compreendido, com certeza não estará relutante quanto a esta última. Sem dúvida, esta última não expressa coisa alguma. Em contrapartida, é claro que a frase “o gato está à janela” pode ser compreendida por qualquer falante competente da língua portuguesa. O que compreendemos quando compreendemos uma frase como essa é a proposição que a frase expressa.

Há ainda muito debate sobre a natureza de uma proposição ou mesmo se tal coisa é aceitável. Não entrarei em debates desse tipo aqui. Russell pensava que as proposições não podiam ser itens mentais, e sustentou que eram completamente independentes de nós. Na verdade, sustentou que as proposições eram entidades abstratas e que, de algum modo, poderiam conter objetos.11 Tudo isto é disputável e não entrarei nos méritos ou deméritos de Russell nesse ponto. O mais importante para o nosso trabalho é que uma proposição é o conteúdo expresso por uma frase declarativa, como “o gato está na janela” ou “a porta está aberta”, e que só esse conteúdo pode ser verdadeiro ou falso. Ou seja, a própria frase é só uma seqüência de sons (se for dita por alguém) ou de marcas de tinta (se for escrita), que não pode ser verdadeira ou falsa. Mas pode expressar algo, a proposição, que será verdadeira ou falsa.

Ora, o conteúdo de uma frase, a proposição que a frase exprime, pode depender ou não de objetos.

Pensemos no seguinte exemplo. Imagine que está numa aula entediante quando ouve dois garotos (que não sabe onde estão) conversando. Ouve um deles dizer “esta garota é uma beleza”. Você imagina que alguma garota passou por lá no momento em que o rapaz proferiu essa frase, e que o rapaz se referia a ela. Mas uma vez que você não podia ver a garota passar por lá e nem sabe a que garota ele se referiu, não pode saber que proposição foi expressa pela frase proferida pelo garoto.

É claro que neste momento você poderia alegar que sabe o que o garoto disse: sabe que ele disse, de alguma garota, que ela é uma beleza. Ao dizer isso, você não estará completamente errado, pois conhece as palavras usadas por ele e também sabe usá-las. E sabe que naquele contexto ele se referiu a alguém. Mas note-se que o que ele falou não foi que alguma garota é uma beleza, ele falou que esta garota é uma beleza. Para compreender completamente o que ele disse é necessário conhecer em alguma medida a garota referida por “esta”.

Dizer isto é dizer que “esta garota é uma beleza” exprime uma proposição que depende do objeto. Deste modo, uma proposição dependente do objeto é uma proposição que só podemos compreender se conhecermos ou pudermos identificar que coisa foi referida. (É muito comum que frases que contenham demonstrativos como “esta” ou “isto” expressem proposições desse tipo).

Agora imagine que no caminho para casa você encontra um amigo que lhe diz o seguinte:

1) Uma garota da sua classe me ama.

Nesse caso, não parece necessário conhecer qualquer garota particular para entender o que seu amigo disse. Por outras palavras, pode saber que proposição é expressa por 1 sem precisar de conhecer ou saber identificar uma garota em particular.

Imagine, por exemplo, que na sua classe só há meninos. Acaso isso o impediria de entender o que seu amigo disse? A resposta é que não. Você pode saber que proposição 1 exprime mesmo que não existam garotas na sua classe. Nas palavras de Blackburn (1984: 303) você pode saber que verdade ou falsidade particular a frase comunica. O que 1 afirma é que, dentre as pessoas da sua classe, há uma que é garota e ama o seu amigo. Entender 1 é entender isso, e nada mais.

O mesmo ocorre com as seguintes frases:

2) Todos os rapazes da sua classe são canalhas.
3) Nenhum rapaz da sua classe é fiel.

Tanto 2 como 3 podem ser compreendidas mesmo que a sua classe só tenha meninas. Ou mesmo que você não conheça qualquer rapaz da sua classe. O que 2 afirma é que de todas as pessoas da sua classe, se alguma é um rapaz, então é um canalha. E o que 3 afirma é que de todas as pessoas da sua classe, se alguma é um rapaz, então não é fiel.

Assim, 1, 2 e 3 expressam proposições independentes de objetos. Ou seja, podemos compreender a informação comunicada por elas sem precisar identificar um objeto determinado. Podemos saber em que circunstâncias essas proposições seriam verdadeiras ou falsas sem precisar identificar a coisa referida (na verdade, nem precisa de haver uma “coisa referida”).

Isto é importante porque as proposições dependentes de objetos e as independentes de objetos representam dois modos distintos de a linguagem se relacionar com o mundo. Russell pensava que a tese que afirma que o significado de um termo singular é o objeto referido por ele só faz sentido se a frase que contém o termo expressar uma proposição dependente do objeto. De outro modo essa tese não é possível.

A razão disso é bem simples. Parece perfeitamente legítimo alegar que o significado de “esta” em “esta garota é uma beleza” é a própria pessoa referida. Um indício disso é que para compreendermos a informação comunicada por essa frase precisamos de identificar essa pessoa. Mas não podemos dizer o mesmo de 1, 2 ou 3, pois, como vimos, podemos compreender a informação comunicada por elas mesmo que não haja uma coisa referida (ou que não saibamos qual é). Portanto, nesses casos o significado não pode depender da referência.

As frases que contêm quantificadores como “todos”, “pelo menos um”, “nenhum” podem não exprimir proposições dependentes de objetos.12 1 afirma que, considerando as pessoas da sua classe, existe uma que é menina e ama seu amigo. 2 afirma que, considerando as pessoas da sua classe, se for um menino, então é um canalha. 3 afirma que, considerando as pessoas da sua classe, se for um menino, então não é fiel.

Deve-se observar também que uma proposição pode ser dependente de objetos com respeito a uma coisa, mas não a outras. Por exemplo: “algum homem ama esta garota”. Não precisamos saber quem é o homem para compreender a proposição expressa por essa frase, mas temos que saber quem é a garota referida por “esta”.

Descrições definidas

Anteriormente, mencionei uma perspectiva que considera que as descrições definidas são termos singulares, à semelhança de nomes e demonstrativos. Vimos que esta perspectiva pode parecer bastante natural e não problemática. Mas também vimos que apresenta problemas difíceis, tendo de enfrentar os três enigmas mencionados. Seja como for, se descrições definidas são termos singulares, então as frases que as contém deverão expressar proposições dependentes de objetos. Ora, a principal tese de Russell em “On Denoting” é que as frases da forma “O F é G” não expressam proposições dependentes de objetos, mas, ao contrário, expressam proposições independentes de objetos. Tais frases não são realmente da forma sujeito-predicado: são frases quantificacionais complexas.

Para começar, as descrições definidas são expressões da forma “o tal e tal” ou “a tal e tal”, que se supõe selecionar um objeto determinado. Dessa maneira, as seguintes frases teriam a mesma estrutura:

1) Esta mochila é bonita.
2) O atual presidente do Brasil é baixo.

Estas frases são constituídas de um termo singular, que ocupa a posição de sujeito, e um termo predicado. Ou será que não? Russell argumentou veementemente que esse não é o caso de 2.

É fácil notar a diferença entre 1 e 2. No caso da primeira, só podemos entender a proposição expressa se pudermos identificar a coisa referida por “esta”. No caso da segunda, isso não é necessário. Posso não conhecer o presidente do Brasil e ainda assim entender o que 2 significa. Eu poderia saber o que significa mesmo que não houvesse um presidente do Brasil. Pensemos na frase seguinte:

2) O homem mais alto do mundo tem mais de dois metros.

Todo o lusófono competente entende 3, mas provavelmente a maior parte das pessoas não conhece o referente de “O homem mais alto do mundo”; conhecer a referência dessa expressão não é necessário para entender 3.

Assim, o significado ou conteúdo semântico das descrições definidas não pode ser o objeto referido por elas. Frases da forma “O F é G” não expressam proposições dependentes de objetos. Mas então, qual é a análise correta de tais expressões? Qual é o seu real significado? É aqui que entra a teoria das descrições.

Russell não forneceu uma resposta direta a esta pergunta. Não ofereceu uma definição de descrições no mesmo sentido em que a teoria da referência direta oferece. Esta última, como vimos, afirma que o significado de uma descrição definida é o objeto referido por ela, e ponto final. Ao contrário, Russell alega que explicar o papel semântico dessas expressões é explicar a sua contribuição para o significado das frases que as contêm. Por isso, a definição de Russell é uma definição contextual. As descrições definidas nada significam isoladamente; são símbolos incompletos.

Pensemos novamente em 2: “O atual presidente do Brasil é baixo”. A análise Russelliana interpreta 2 como a conjunção de três afirmações, que são:

2a) Existe atualmente um presidente do Brasil,
2b) existe no máximo um presidente do Brasil,
2c) seja quem for que é presidente do Brasil é baixo.

2b expressa a cláusula de unicidade. Quando dizemos “o presidente”, a presença do artigo definido “o” indica que não há mais do que um. É claro que muitas vezes dizemos coisas do tipo “o filho de João”, mesmo quando João tem mais de um filho. Mas nesses casos o contexto deixa claro de que filho estamos a falar, e a expressão é como se abreviasse “o filho do João de que estamos a falar”. (Como vimos, as descrições definidas diferem das descrições indefinidas. Quando dizemos “um presidente baixo” dizemos apenas que “existe um presidente baixo”.) Em linguagem mais simples, “o atual presidente do Brasil é baixo” expressa a idéia de que “existe um único presidente do Brasil e ele é baixo”. Isso pode ser formalizado como

(∃x) [[(Px(y) (Pyy = x)]Bx]

A cláusula da unicidade é indicada pela fórmula em azul.

Um aspecto muito importante dessa análise é que, após análise, o suposto termo singular desaparece. A expressão “o atual presidente do Brasil” não aparece em “existe no máximo uma pessoa que é atualmente presidente do Brasil, e essa pessoa é baixa”. Não há mais um termo singular aqui sobre o qual possamos dizer que refere diretamente um objeto particular. Isso permitirá Russell resolver o primeiro enigma. Contudo, a solução do segundo e terceiro enigmas depende da distinção entre ocorrência primária e secundária de uma descrição definida. Por isso, falarei primeiro dessa distinção e, em seguida, da solução dos enigmas.

Ocorrência primária e secundária de descrições definidas

Quando a ocorrência de uma descrição definida implica a existência de um objeto que satisfaça a descrição, a ocorrência é primária; quando não o implica, a ocorrência é secundária.13

Podemos interpretar a frase “O João desejava saber se o autor da República era Platão” dos seguintes modos:

1) O João desejava saber se existe um e somente um homem que escreveu a República e se Platão era esse homem.
2) Existe um e somente um homem que escreveu a República e o João desejava saber se Platão era esse homem.

Em 1 a ocorrência é secundária, em 2 é primária. Para entender isso basta notar que 1 não implica a existência de um e somente um homem que tenha escrito a República; afinal, isso é uma das coisas que João deseja saber. Por outro lado, 2 implica a existência de tal homem. Podemos expressar isso dizendo que em 2 o âmbito da descrição “o autor da República” é maior que o do operador “deseja saber que...”, ou que a descrição ocorre antes do operador. No primeiro caso, a descrição ocorre depois do operador. Passemos então à solução dos enigmas.

Solução dos enigmas: substituibilidade

Vimos que a teoria da referência direta tinha dificuldade em explicar como pode a substituição de um termo por outro termo co-referencial, em certos contextos, alterar o valor de verdade de uma frase. Agora já temos uma solução para esse enigma. Voltemos à frase problemática:

1) O João deseja saber se o atual presidente do Brasil é o Lula.

Vimos anteriormente que se dois termos singulares são co-referenciais, então a substituição de um pelo outro não deveria alterar o valor de verdade da proposição. As expressões “Lula” e “o atual presidente do Brasil” são co-referenciais. Portanto, a substituição de “o atual presidente do Brasil” por “Lula”, em 1, não deveria alterar seu valor de verdade. Mas o resultado dessa substituição seria que “O João deseja saber se Lula é Lula”. Nesse caso, parece que a substituição altera o valor de verdade da proposição. Do fato de o João desejar saber se Lula é o presidente do Brasil, não podemos concluir que deseja saber se Lula é Lula.

Russell argumenta que o enigma surge apenas se considerarmos que as descrições definidas são termos singulares, à semelhança dos nomes próprios. Desse ponto de vista, a única contribuição que uma descrição faz para o significado da frase que a contém é a introdução de um referente. Mas se levarmos em conta a análise russelliana, poderemos parafrasear 1 do seguinte modo:

2) O João desejava saber se existe uma e somente uma entidade que preside atualmente o Brasil e se essa entidade é Lula.14

Agora pergunte-se o seguinte: quantos termos singulares 2 contém, além de “João”? Se prestarmos atenção, veremos que contém apenas um termo singular (nomeadamente, a expressão “Lula”). Após análise, o suposto termo singular “o atual presidente do Brasil” já não ocorre. Por outras palavras, o que parecia um termo singular, já não o parece. Já não há uma expressão na frase que possa, de modo óbvio, ser substituída por “Lula”; e se não há tal expressão, então já não temos o problema da substituição. Assim, o problema da substituibilidade desaparece, e acabou a conversa.15

Se antes parecia haver um problema, foi porque tratamos as descrições definidas como se fossem nomes próprios. Mas descrições não são como nomes. Um nome próprio limita-se a selecionar um objeto, e a única contribuição que faz para o significado das frases que os contêm é a introdução de um referente. Podemos expor essa diferença alegando que o modo como um nome e uma descrição referem é diferente. Uma descrição seleciona um objeto (quando há um) pelo fato de ser o único que satisfaz tal e tal característica. O nome “Paula” refere-se à Paula, mas não porque ela seja a única a possuir tais e tais características. A descrição “a minha namorada” também seleciona a Paula, mas só a seleciona porque ela é a única que tem a propriedade de ser a minha namorada.

Solução dos enigmas: terceiro excluído

Este enigma diz respeito ao modo como podemos formar proposições verdadeiras acerca de entidades que não existem. Vimos que a sua solução dependia da distinção entre ocorrência primária e ocorrência secundária de descrições definidas.

Russell pensava que em casos como “o atual rei do Brasil é careca”, ou seja, casos que envolvem descrições definidas que não têm denotação, quando a descrição tem uma ocorrência primária a proposição onde ela ocorre é falsa, e quando a ocorrência é secundária a proposição pode ser verdadeira.

Na sua ocorrência primária, a frase é analisada como se segue:

3) Existe uma e somente uma entidade que é agora rei do Brasil e esse rei é careca.

Neste caso, considera-se que a descrição eliminada, “o rei do Brasil”, é primária, pois implica a existência de um único rei do Brasil. Ora, sabemos que o Brasil atualmente não tem rei, portanto 3 é falsa.

Quanto à negação da frase com a descrição definida, temos dois casos: um em que é verdadeira e outro em que é falsa. É falsa se significar

4) O atual rei do Brasil não é careca.

Neste caso a ocorrência de “o atual rei do Brasil” é primária. A proposição analisada ficaria: “existe uma e somente uma entidade que é agora rei do Brasil e não é careca”. Visto que a propriedade de ser agora rei do Brasil não pertence a qualquer entidade, 4 é falsa. No entanto a negação é verdadeira se significar

5) É falso que o atual rei do Brasil é careca.

Ou seja, “É falso que existe uma e somente uma entidade que é agora rei do Brasil e é careca”. Neste caso é verdadeira; porém, a ocorrência da descrição é secundária. A descrição não implica aqui a existência de coisa alguma. Pelo contrário, nega-se que a descrição refira algo. Isto porque no segundo caso a negação ocorre antes do quantificador existencial, enquanto no primeiro a negação aparece depois do quantificador (no meio da frase). Por outras palavras, no primeiro caso o âmbito do quantificador é maior do que o da negação, enquanto no segundo o âmbito da negação é maior. Para entendermos isto basta notar como ambas ficariam se fossem totalmente formalizadas. A primeira poderia ser expressa por

(∃x) [[(Bx ∧ (y) (Byx = y)] ∧ ∼Cx];

E a segunda poderia ser expressa por

∼(∃x) [[Bx ∧ (y) (Cyx = y)] ∧ Cx].

Mais uma vez, o problema surgiu por termos confundido descrições com termos singulares. A frase “O atual rei do Brasil é careca” não expressa uma proposição dependente de objetos.16 Para que a frase expresse uma proposição verdadeira ou falsa não é necessário que introduza diretamente um objeto no discurso.

Solução dos enigmas: existenciais negativas

Este enigma diz respeito a como podemos negar consistentemente a existência de algo. Assumir a teoria da referência direta levou ao difícil problema de não poder negar a existência de coisa alguma. Pois ao negarmos a existência de algo, sempre implicávamos que ela existia. E assim, acabamos chegando à conclusão de que o Brasil deverá ter um rei, embora ninguém saiba. A outra alternativa era a de Meinong, que sustentou que, embora o atual rei do Brasil não existisse, era um objeto. Nenhuma dessas alternativas parecia muito agradável. Por um lado, Russell não queria aceitar a conseqüência da teoria da referência direta; por outro, também não estava satisfeito com a idéia de postular objetos irreais.

Se o problema com a tese da referência direta era considerar que as descrições definidas são termos singulares, o problema de Meinong foi considerar que a existência não era senão mais um predicado. Russell argumenta que existência não é um predicado, mas um quantificador. A análise correta de “O atual rei do Brasil não existe” não seria “Existe uma e só uma entidade que é agora rei do Brasil e essa entidade não existe”. Ao contrário, a análise correta seria:

6) É falso que existe uma e só uma entidade que é agora rei do Brasil.

O que é equivalente a:

6') É falso que pelo menos uma, e no máximo uma, entidade é agora rei do Brasil.

Que por sua vez podemos exprimir deste modo:

6'') Nenhuma substituição de x em “x é agora o único rei do Brasil” resultará numa proposição verdadeira.

Desse modo, 6 é verdadeira, e sua verdade não implica a existência de um atual rei do Brasil. Quando dizemos “O atual rei do Brasil não existe” não estamos dizendo que o atual rei do Brasil não tem a propriedade da existência ou que é um objeto irreal. Pelo contrário, estamos dizendo que a função “x é agora o único presidente do Brasil” nunca dá origem a uma proposição verdadeira. E não há contradição alguma nisso.

Mais uma vez, a proposição expressa por 6 é independente de objetos, e não precisa haver referente algum para que seja dotada de significado. Ainda, repare-se que a ocorrência da descrição “O atual rei do Brasil” é secundária, e portanto, 6 pode ser verdadeira, mesmo que não haja um referente. Assim, resolve-se o problema das existenciais negativas.

O resultado final de tudo isto seria uma elegante teoria e nenhum problema. Mas Strawson não pensou assim.

IV. Críticas à teoria das descrições

Strawson

Quarenta e cinco anos depois da publicação de “On Denoting”, Strawson publicava “On Referring”, um pequeno artigo que disputava praticamente todos os pontos da teoria das descrições definidas de Russell.

A intenção principal de Strawson não era disputar se Russell resolveu ou não os enigmas que se propôs resolver. Ao contrário, a sua intenção era oferecer um método alternativo de análise de descrições, que não apresentasse tantas conseqüências indesejáveis e que fizesse justiça ao matizes da linguagem comum. O que está em jogo é saber se Russell realmente fornece uma análise correta das expressões da forma “o tal-e-tal”. Antes de entrarmos nas críticas, é preciso explicar algumas coisas.

Frase, expressão e suas utilizações

A palavra “utilização” é uma palavra-chave para entendermos a crítica de Strawson a Russell. Strawson pensava que “fazer referência”, “ser acerca de” e a verdade e falsidade eram características da utilização de uma expressão ou frase. Para tornar isso mais claro, falarei brevemente sobre essas distinções.

Tomemos como exemplo a frase “o atual presidente do Brasil é sábio”. É natural dizer que esta frase já foi utilizada em diferentes épocas e situações. Alguém que a proferisse hoje parece estar proferindo a mesma frase que alguém que a proferiu durante a presidência de Fernando Henrique. Mas na verdade não é literalmente a mesma frase; é apenas uma frase igual. Por outras palavras, quem profere esta frase hoje e quem a proferia durante a presidência de Fernando Henrique proferia uma frase do mesmo tipo. Neste contexto, uma frase é um tipo.

Se isto não ficou totalmente claro, considere-se o seguinte exemplo. Imagine que você e eu vamos à banca logo de manhã e que cada um de nós compra um exemplar da última edição do jornal Folha de São Paulo. Num certo sentido, ambos temos o mesmo jornal nas mãos: ambos temos a Folha de São Paulo. Mas noutro sentido cada um de nós tem um jornal diferente nas mãos; cada um está com uma cópia ou exemplar diferente da Folha. Por outras palavras, temos exemplares diferentes nas mãos, mas são exemplares do mesmo tipo. Do mesmo modo, se eu proferir hoje a frase “o atual presidente do Brasil é sábio”, estarei proferindo uma frase do mesmo tipo daquele que a proferiu no ano de 1994. Contudo, as frases proferidas por cada um de nós são exemplares ou espécimes diferentes.

Também não é difícil perceber que essa frase pode ser utilizada de diferentes maneiras. Por exemplo, duas pessoas que a proferem, uma durante a presidência de Fernando Henrique e outra durante a presidência de Lula, fizeram utilizações diferentes dela. Mas duas pessoas que a proferem durante a presidência de Lula fizeram a mesma utilização. Isto porque no primeiro caso cada utilização expressa uma proposição diferente, enquanto no segundo as duas utilizações exprimem a mesma proposição. Ou seja, uma pessoa que profere a frase “o atual presidente do Brasil é sábio” durante a presidência de Lula faz uma afirmação diferente daquele que profere a mesma frase durante a presidência de Fernando Henrique. A frase pode expressar uma proposição verdadeira no primeiro caso e falsa no segundo, e é usada para falar acerca de pessoas particulares diferentes em cada caso.

Por fim, afirma Strawson, duas pessoas que proferiram a mesma frase durante a presidência de Lula, embora tenham feito a mesma utilização, fazem elocuções diferentes. Sendo assim, cada elocução é uma elocução diferente. Strawson considerava que se podia fazer distinções análogas entre uma expressão, a sua utilização e a sua elocução. Isto é, uma expressão pode ser utilizada de diferentes maneiras, para mencionar diferentes indivíduos, e duas pessoas que utilizam uma expressão da mesma maneira, como “o presidente do Brasil”, estão, ainda assim, fazendo elocuções diferentes.

Pensemos na conclusão que emerge do que foi dito até aqui. Strawson pensava que uma mesma frase poderia ser falsa ou verdadeira dependendo da utilização que fazemos dela. Uma mesma frase pode, em diferentes utilizações, “ser acerca de” diferentes pessoas. Do mesmo modo, uma mesma expressão pode ser utilizada para mencionar ou fazer referência a diferentes indivíduos, coisas, lugares, etc. Conclui-se daqui que a verdade, a falsidade, o “ser acerca de”, não são funções de uma frase (ou da proposição expressa por ela), tal como mencionar ou fazer referência não são funções de uma expressão. A verdade, a falsidade, o “ser acerca de”, o fazer referência, são funções das utilizações que fazemos de uma frase ou expressão.

Strawson acusa Russell de confundir uma frase ou expressão com as suas utilizações. Ao fazer as distinções de que falei, Strawson pretende distinguir entre o que podemos dizer acerca de frases e expressões e o que podemos dizer acerca de utilizações das mesmas. Russell, afirma Strawson, não atentou no fato de que fazer referência, dizer verdades e falsidades, são funções da utilização de uma frase ou expressão. Veremos que, ao sustentar isto, Strawson chega a concepções consideravelmente opostas às de Russell no que diz respeito a muitos pontos importantes. Segundo Strawson, Russell teria ignorado as diferentes maneiras de se utilizar uma frase ou expressão e, com isto, chegou a uma noção equivocada de significado, confundindo o significado de uma frase com uma utilização num contexto particular.

Subjacente a todas as críticas de Strawson está uma concepção radicalmente diferente de significado.17 Vimos que Russell pensava que o significado de uma frase era a proposição expressa por ela e que as proposições eram entidades abstratas e independentes de nós. Se Russell queria analisar o significado de uma frase, então bastava ver que proposição ela expressava. Também vimos que, no caso de proposições independentes de objetos, não era necessário identificar objeto algum para compreendê-la. Em exemplos como “O atual presidente do Brasil é sábio”, a proposição expressa por essa frase acaba por ter uma forma completamente diferente da frase original. A frase original tem uma estrutura sujeito-predicado e aparentemente contém um termo singular. Mas, depois da análise, percebemos que o que é dito por essa frase é que “existe uma e no máximo uma entidade que é agora presidente do Brasil e ele é sábio”. Russell considerava que a análise revelava a verdadeira forma lógica da frase. Nesse caso, a forma real da proposição seria a forma lógica e não a forma gramatical. Gramaticalmente, é uma frase sujeito-predicado; mas sua forma real é uma afirmação existencial complexa. Com isso, Russell conseguiu evitar vários problemas.

Quando uma frase expressa uma proposição dependente de objeto, algum tipo de conhecimento acerca do objeto é necessário para compreendê-la, e assim, o contexto da elocução desempenha um papel mais importante. Vimos que para compreender “esta menina é uma beleza” temos que saber que menina foi referida, quem passou por lá no momento da elocução. Por outro lado, quando uma frase expressa uma proposição independente de objetos, podemos conhecer o significado dessa frase sem prestar muita atenção ao contexto da elocução. Strawson pensava que essa desatenção de Russell no que diz respeito ao contexto era um erro. Como vimos, Strawson pensava que falar acerca de coisas, fazer referência, etc., são ações humanas; somos nós que referimos as coisas e não as expressões. Não podemos simplesmente encarar o significado de uma frase ou expressão como uma abstração. Se prestarmos mais atenção às circunstâncias em que as pessoas proferem frases e referem coisas, veremos que a análise de Russell é, em muitos pontos, insuficiente. Vejamos então as críticas que emergem dessa concepção.

Crítica à análise das descrições

Depois de fazer estas distinções básicas entre expressão e frase e suas utilizações, Strawson começa a sua crítica a Russell. Critica vários aspectos da noção russelliana de descrições definidas. As críticas mais importantes dizem respeito a) à noção russelliana de significado, b) ao valor de verdade das proposições que contêm estas descrições no lugar de sujeito gramatical, e c) à afirmação de Russell de que as pessoas que utilizam tais frases afirmam ou implicam logicamente a existência de uma e somente uma entidade que obedece à descrição. Discutirei cada um destes pontos por ordem.

a) A noção russelliana de significado

Voltemos à frase

1) Esta menina é uma beleza.

É claro que para compreender o que alguém, ao proferir 1, está dizendo, temos de saber a que pessoa “esta” se refere. Mas isso, argumenta Strawson, não significa que o significado de “esta” seja a pessoa referida. Para o compreender, basta notar que se uma criança pergunta à sua mãe qual é o significado de “esta”, a mãe não vai apontar para um ou outro objeto. Ao contrário, vai ensinar a criança a usar essa expressão corretamente. Saber o significado de “esta” é saber como usar essa expressão em vários contextos, e não saber a que coisa particular a expressão refere num contexto particular. Do mesmo modo, saber o significado de “o atual presidente do Brasil é sábio” é saber usar essa frase em vários contextos que, como foi mencionado, podem originar usos bem diferentes (por exemplo, usada no ano de 1994 e usada em 2009). Mesmo Russell teria de aceitar que a frase “O atual presidente do Brasil é sábio” poderia expressar diferentes proposições em diferentes contextos. E Strawson argumenta que conhecer uma dessas proposições não é saber o significado dessa frase. Contra Russell, afirma:

“Se falo a respeito do meu lenço, posso, talvez, tirar do meu bolso o objeto ao qual me refiro. Mas não posso tirar do meu bolso o significado da expressão “o meu lenço””. (1950: 45).

Esta crítica de Strawson é um erro. Conforme o próprio Russell menciona no artigo “Mr. Strawson on Referring” (1957), esta crítica só funciona porque Strawson escolhe muito bem os exemplos que utiliza. O que faz Strawson pensar que o problema depende das diferentes circunstâncias em que podemos usar frases ou expressões é o fato de oferecer exemplos envolvendo expressões indexicais, como “atual”, “meu” ou “isto”. O significado destas expressões muda facilmente com o contexto. Por exemplo, “atual” pode significar diferentes momentos do tempo dependendo da época em que é utilizada. Embora o próprio Russell tenha dado exemplos que envolvem essas expressões, poderia tê-los modificado. Ao invés de “o atual presidente do Brasil” poderíamos ter falado de “o presidente do Brasil em 2009”. Voltando ao exemplo 1, Russell não pretendia dar uma explicação semântica de “esta” naquele contexto, mas apenas notar que entender o que é dito nesse contexto envolve a identificação de uma coisa referida. E isso até Strawson poderia aceitar. Voltaremos depois a debates que envolvem contextos.

b) Valor de verdade

Vimos que Russell considerava que qualquer pessoa que proferisse agora a frase “o atual rei do Brasil é careca” estaria expressando uma proposição verdadeira ou falsa. Strawson disputará fortemente essa afirmação, argumentando que em casos como esses a questão de saber se o que foi dito é verdadeiro ou falso simplesmente não se coloca.

Para responder à pergunta “como podemos formar proposições verdadeiras acerca de entidades que não existem?” Russell se valeu de sua distinção entre ocorrência primária e ocorrência secundária de descrições definidas. Argumenta que, em casos como “o atual rei do Brasil é careca”, a proposição é falsa se a ocorrência da descrição for primária, podendo ser verdadeira se a ocorrência for secundária. Em todo caso, quem profere essa frase sempre expressa uma proposição verdadeira ou falsa. Contudo, Strawson argumenta que embora Russell acerte ao afirmar que qualquer um que proferisse agora essa frase estaria proferindo uma frase dotada de significado, erra ao concluir que qualquer um que a proferisse agora estaria dizendo algo verdadeiro ou falso.

Strawson pensa que se alguém proferir agora a frase mencionada, não estaria dizendo algo verdadeiro ou falso. Pergunta o que responderíamos a uma pessoa que proferisse, com ar de seriedade, a frase “o atual rei do Brasil é careca”. Provavelmente, afirma, não diríamos “não é verdade”. Mas e se essa pessoa nos perguntasse se o que ela acaba de dizer é verdadeiro ou falso? Diríamos que é falso ou diríamos que é verdadeiro? A resposta de Strawson: “nenhuma das duas; que a questão de saber se a sua afirmação é verdadeira ou falsa simplesmente não surge” (1950: 46).

O que Strawson quer dizer é que seria de algum modo estranho afirmar que, nesse caso, a frase proferida expressa uma proposição verdadeira ou falsa. Num caso como o exposto, não diríamos que a pessoa disse algo verdadeiro ou falso, mas apenas que está equivocada, ou seja, que o Brasil não é uma monarquia. Por outro lado, essa frase não é destituída de significado; o fato de que poderia ser utilizada para dizer algo verdadeiro ou falso mostra que é dotada de significado. Uma frase, como vimos, é um tipo, e esta mesma frase poderia ser utilizada noutras circunstâncias para dizer coisas verdadeiras ou falsas. Mais uma vez, se Russell não percebeu isso, foi porque não prestou atenção suficiente nos diferentes contextos de uso de uma determinada frase ou expressão.

Contudo, esta crítica de Strawson tem um ponto fraco. Strawson só mostra que algumas vezes as pessoas hesitam em dizer que uma frase é verdadeira ou falsa; mas daí não se segue que não é verdadeira nem falsa. Além disso, Strawson é ambíguo em relação à sua tese. É difícil saber se o que pretende sustentar é que as frases contendo descrições vazias no lugar do sujeito gramatical não têm valor de verdade; ou se pretende que essas frases têm um terceiro valor de verdade, a que chama nem verdadeiro nem falso. Se optar pela primeira, então poderia dizer que nesse caso a pessoa simplesmente não faz uma afirmação, e, por isso, não pode dizer que o que disse é verdadeiro ou falso. Se optar pela segunda, então terá de aceitar que, embora a pessoa tenha feito uma afirmação, esta não é verdadeira nem falsa.

Ambigüidades à parte, não é óbvio que em casos onde uma descrição vazia é usada, não dizemos algo verdadeiro ou falso. Pensemos no seguinte exemplo:

2) O atual rei do Brasil é careca.

Segundo Strawson, 2, se proferida hoje, não é nem verdadeira nem falsa. Segundo Russell, é falsa. Strawson pensa que os usos cotidianos da linguagem favorecem a sua tese (afinal, ninguém diria que 2 expressa uma proposição verdadeira ou falsa). Mas agora considere-se o seguinte:

3) É falso que o atual rei do Brasil é careca.

Strawson alegaria que 3 também não seria nem verdadeira nem falsa, pois não existe atualmente um rei do Brasil — a descrição é vazia. Mas o que dizer de 4?

4) Se não há qualquer rei do Brasil, então é falso que “o atual Rei do Brasil é careca”.

Neste caso, as nossas intuições já não estão do lado de Strawson. É legítimo supor que a maior parte das pessoas diriam que 4 é verdadeira. Mas Strawson teria de admitir que não é verdadeira nem falsa, pois “o atual rei do Brasil” é uma descrição vazia. Note-se que para que a teoria das descrições esteja correta, basta que 4 seja verdadeira. Pois o que 4 mostra é justamente que o fato de não existir atualmente um rei do Brasil é suficiente para tornar falsa a proposição expressa por “o atual rei do Brasil é careca”. E isso é exatamente o que Russell queria. Considere-se também o seguinte exemplo:

A minha namorada traiu-me com o atual rei do Brasil.

Intuitivamente esta frase é falsa, e é difícil supor que as pessoas diriam que não é falsa. Mas novamente, Strawson teria de admitir que não é verdadeira nem falsa. São possíveis muitos outros exemplos (ver Kempson 1977: 139–158; Ludlow 2004; Neale 1990: 15-47), mas como o próprio Strawson admite (1964: 313), isso pode apenas significar que há exemplos que favorecem os dois lados. Deste modo, seria preferível que fosse possível explicar por que hesitamos em dizer que 3 é falsa.

Russell poderia esboçar uma resposta aqui do seguinte modo: É verdade que se alguém dissesse agora que o atual rei do Brasil é careca, não diríamos que é falso. Mas quando uma pessoa afirma “o atual rei do Brasil é careca” e nós replicamos que está enganada, que o Brasil não é uma monarquia, o que estamos fazendo é justamente negar a frase proferida. O que ocorre neste caso é aquela ambigüidade quanto à negação referida anteriormente. (Vimos que a negação de 3 tanto pode ser “é falso que existe um único rei do Brasil e ele é careca” como “existe um único rei do Brasil e é falso que seja careca”.) Neste exemplo, a negação seria verdadeira, pois a ocorrência da expressão “o atual rei do Brasil” é secundária. Portanto, o que estaríamos dizendo de fato é que “é falso que existe uma e somente uma entidade que é agora rei do Brasil e é careca”. Se hesitamos em dizer que 3 é verdadeira ou falsa é justamente porque essa ambigüidade não está clara na nossa linguagem comum. Ao afirmarmos que 3 é falsa, o nosso interlocutor poderia entender que estaríamos afirmando a existência de um atual rei do Brasil que, no entanto, não é careca. Por outras palavras, as pessoas poderiam ter a impressão que ao afirmar que “o atual rei do Brasil é careca” é falsa, estaríamos afirmando que “o atual rei do Brasil não é careca”. É justamente por haver essa ambigüidade na negação de 3 que as pessoas hesitam. A teoria das descrições não só explica perfeitamente essa hesitação como também justifica o fato de ser natural que ocorra em alguns contextos.

No entanto, as críticas de Strawson não param aí.

c) Uma só entidade

Como vimos, Russell pensava que alguém que proferisse a frase “o atual rei do Brasil é careca” estaria implicando logicamente que “existe uma e somente uma entidade que é agora rei do Brasil”. Strawson contestará tanto a cláusula da existência como a cláusula da unicidade.

Strawson argumenta que quem profere agora a frase “o atual rei do Brasil é careca” não está afirmando a existência de um atual rei do Brasil. Ao contrário, quem profere tal frase está pressupondo isso. Se eu digo que o atual rei do Brasil é careca, é porque acredito que existe um atual rei do Brasil, mas a existência não é afirmada na minha elocução.

Embora inicialmente essa objeção pareça plausível, dissolve-se mal vemos que Russell não precisa alegar que quem profere “o atual rei do Brasil é careca” está afirmando que exista um atual rei do Brasil. A única coisa que Russell precisa alegar é que quem profere essa frase implica logicamente a existência de um rei. Como Lycan (2000: 30) observa, implicar não é o mesmo que afirmar. A frase “Toninho tem um metro e setenta” implica que Toninho tem menos de trinta metros, mas não afirma isso. Se Strawson pretende sustentar que implicar é o mesmo que afirmar, então o ônus da prova é dele.

Além disso, há um certo mistério envolvido na noção de Strawson de pressuposição. O que é uma pressuposição? Será um fenômeno pragmático (ou seja, algo que as pessoas fazem)? Ou será um fenômeno semântico (algo que as frases ou as expressões fazem)? Strawson parece optar pelo segundo.18 A pressuposição seria uma relação lógica, de modo que P pressupõe P' se, e só se, P' é uma precondição tanto para verdade como para falsidade de P. Por exemplo, vimos que Strawson pensava que se alguém proferisse 2 (“o atual rei do Brasil é careca”) não estaria dizendo algo nem verdadeiro nem falso, porque a descrição “o atual rei do Brasil” é vazia. Nesse caso, a existência de um atual rei do Brasil é uma precondição tanto para a verdade como para a falsidade de 2. Em casos onde o atual rei do Brasil não existe, 2 não é nem verdadeira nem falsa. Isso leva de volta à discussão acerca do valor de verdade; se as críticas de Strawson não funcionam quanto aquele ponto, não funcionarão aqui também.

Outro ponto disputado por Strawson é a cláusula de unicidade. Essa parece a crítica mais poderosa. Russell pensava que a presença do artigo definido indica unicidade. Deste modo, quando dizemos que x é o atual presidente do Brasil, não estamos dizendo apenas que x preside atualmente ao Brasil, mas também que x é o único presidente do Brasil. Strawson argumenta que há casos em que isto é manifestadamente falso. Por exemplo, quando alguém diz:

6) A mesa está coberta de livros.

A expressão “a mesa” é, sem dúvida, uma descrição definida. Todavia, é evidentemente falso que a expressão “a mesa” só tenha aplicação no caso de existir uma e não mais que uma mesa no universo. O que é indicado pela presença do artigo definido em questão é que há uma mesa, e não mais que uma, que está sendo referida; e não que há uma e apenas uma mesa em todo universo. A teoria das descrições parece comprometer-nos com a alegação de que quem profere a frase acima está implicando que há uma única mesa no universo, e isso é um absurdo. E não é nem um pouco difícil pensar noutros exemplos onde isso ocorra (“o gato está à janela”, “a panela está destapada”, etc.).

O problema aqui é o seguinte: A descrição definida “a mesa” parece ter uma aplicação perfeitamente legítima nesse caso, mesmo que não exista somente uma mesa no universo. Existem vários objetos que satisfazem essa descrição, mas ainda assim em vários contextos podemos usá-la para referir uma e somente uma coisa. Essas descrições, que podem ser aplicadas com sucesso mesmo quando mais de uma coisa as satisfaz, são denominadas descrições incompletas. Ao problema envolvendo essas descrições chamarei problema das descrições incompletas.

Em primeiro lugar, note-se que não é um problema que diga respeito particularmente ao caso das descrições definidas. Ocorre para praticamente qualquer quantificador19 (ver Neale 1990: 94-98 e Soames: 2005: 394-396). Imagine o leitor que acaba de chegar de um jantar e alguém lhe pergunta como foi; em resposta, você diz:

7) Estava todo o mundo doente.

Obviamente “todo o mundo” não quer dizer todas as pessoas do mundo; quem afirma 7 nem tem a intenção de que assim fosse. Portanto, o problema aparece aqui também.

É aqui que Strawson parece ter mais força; nesses casos, o contexto parece desempenhar um papel importantíssimo. De algum modo, o contexto parece permitir-nos restringir o domínio de quantificação. O que garante que eu consiga referir uma e só uma mesa com 6 é um fator contextual, e a teoria das descrições não abarcaria isso.

Num primeiro momento, alguém poderia pensar que o que ocorre nestes casos é que todos envolvem situações onde podemos identificar um determinado objeto e, por este motivo, as proposições aí expressas são dependentes, e não independentes, de objetos.20 Assim, nesses exemplos, as descrições definidas ocorrem na verdade como termos singulares. Por exemplo, todos os contextos onde é natural proferir 6 são contextos em que há uma mesa diante de nós e que supomos que nosso interlocutor será capaz de compreendê-la. A expressão “a mesa” poderia, ou até deveria, ser substituída por “aquela mesa”. Uma vez que os casos com os quais Russell está preocupado são aqueles em que a frase contendo a descrição expressa uma proposição independente de objetos (frases cuja compreensão do significado não envolvem a identificação de um objeto), esses exemplos não seriam problemáticos para ele. Mas infelizmente essa estratégia não funciona. Pensemos noutro exemplo:

8) O assassino deve ser insano.

Imagine-se que alguém profere 8 ao ver um corpo de um bom rapaz que foi violentamente assassinado. Ora, não há um assassino identificado neste caso; ainda assim, é uma descrição incompleta. A expressão “o assassino”, em 8, não indica que há um e só um assassino no universo. E assim, o problema permanece.

Outra estratégia para escapar deste problema é a estratégia da elipse. Essa estratégia alega que o contexto da elocução fornece o material para completar a descrição incompleta, que abreviaria esse material. Grice (1981: 277), por exemplo, argumenta que a descrição “a mesa” em 6 poderia ser só uma abreviatura de “a mesa nesta sala”, e esta última seria univocamente satisfeita (ou seja, só haveria um objeto que a satisfizesse). No caso de 8, poderíamos supor que a descrição “O assassino” abrevia a descrição “o assassino da pessoa tal e tal”, e assim por diante.

Esta estratégia entra em alguns apuros no que diz respeito à forma lógica. Se a descrição “a mesa”, em 6, abrevia uma descrição maior, então a forma lógica da proposição expressa por ela não é “existe uma e somente uma mesa que está cheia de livros” e sim “existe uma e somente uma mesa, nesta sala, que está cheia de livros”. E o mesmo ocorreria com 8. Assim, a análise russelliana será enormemente relativizada a contextos, pois diferentes contextos podem fornecer diferentes materiais para serem abreviados. A forma lógica de 6 e 8 dependeria desses contextos.

Outra estratégia ainda seria alegar que Russell realmente forneceu a análise correta acerca do que é realmente dito com 6 e 8, mas que essas frases podem gerar proposições pragmaticamente enriquecidas; que seriam o que o falante realmente tencionaria comunicar. Essa é a estratégia de Soames (2005: 377-399). Há muitos pontos a explicar aqui, pois a estratégia dele é complicada. Grosso modo, é o seguinte. O conteúdo semântico ou significado de 8 é realmente como se segue:

8') Existe um e só um assassino e ele é insano.

Mas esse conteúdo, combinado com um dado contexto de elocução, o contexto já mencionado, pode gerar uma proposição totalmente diferente que nem sequer implique 8'. Se supomos que estamos à frente da vítima e em posição de identificá-la, essa proposição pragmaticamente enriquecida pode ser:

8'') Existe um e só um assassino dessa pessoa e esse assassino é insano [onde “dessa pessoa” se refere à vítima].

Uma vez que 8'' não implica 8', a segunda nem sequer foi afirmada em qualquer sentido que seja.21 Na verdade, a combinação da elocução com o contexto gerou uma proposição completamente diferente.

Esta solução é diferente da elipse porque não considera que a descrição “o assassino” (em 8) abrevia uma descrição maior; considera que a descrição “o assassino” nem sequer ocorre na proposição pragmaticamente enriquecida. Não se dá o caso de a forma lógica de 8 ser diferente em cada contexto; ao contrário, a forma lógica é sempre a mesma. A forma lógica de 8 é sempre 8', mas a proposição expressa em 8' não é a proposição expressa no contexto considerado. Contudo, Soames não diz muito sobre como 8'' é um enriquecimento pragmático de 8'. Uma vez que muito raramente usamos frases como “o assassino é insano” para expressar uma proposição que contenha a forma lógica russelliana, ainda fica a dúvida de saber como os outros usos podem ser meros enriquecimentos de “existe um e somente um assassino”.

Seja como for, parece que num ponto Strawson tem razão: qualquer que seja a saída para a sua objeção, terá de ser mais sensível aos contextos de elocução do que Russell gostaria. Mas, novamente, esta não é uma objeção exclusiva à teoria das descrições.

Donnellan

Vimos que Russell e Strawson discordam quanto ao que seria correto sobre o valor de verdade de frases como “o atual rei do Brasil é careca”. Enquanto para o primeiro essa frase expressa uma proposição falsa, o segundo alega que não é falsa nem verdadeira. Mas Donnellan (1966, 1968), pelo menos num caso específico, discorda de ambos.

Donnellan pensa que nenhum dos dois foi capaz de perceber a diferença entre o que denomina uso atributivo e uso referencial de uma descrição definida. Donnellan alega que se existem dois usos distintos de descrições definidas, pode ser que o valor de verdade seja diferente em cada caso. No caso do uso referencial, uma frase contendo uma descrição definida pode expressar uma proposição verdadeira mesmo quando nada obedece à descrição. Vejamos exemplos de cada caso:

  1. Uso atributivo: Suponhamos um caso em que uma pessoa chamada “João” foi injustamente assassinada. Suponhamos também que costumava ser uma pessoa boa e que aparentemente não tinha inimigos. Devido à maneira que o crime foi cometido, alguém pode afirmar “o assassino de João é insano”. Se a pessoa que profere essa frase não tem idéia de quem seja o assassino e apenas acusa de insanidade quem quer que seja o autor do crime, então está fazendo o uso atributivo de uma descrição definida. Neste contexto, uma pessoa usa uma descrição definida atributivamente para declarar algo sobre quem quer ou o que quer que satisfaça univocamente a descrição.
  2. Uso referencial: Suponhamos que Pedro foi acusado de assassinar João e esteja sentado na cadeira do réu num julgamento. Imaginemos também que começou a exaltar-se e a comportar-se de maneira indevida. O promotor, aproveitando-se da situação, diz que “o assassino de João é insano”. As pessoas que assistem ao julgamento não teriam dificuldade de entender que o promotor, ao dizer isso, referiu-se a Pedro. Este seria um exemplo de uso referencial de uma descrição definida. Neste contexto, um falante usa uma descrição definida referencialmente numa afirmação para a audiência captar de quem ou de que coisa está falando, declarando então algo sobre a pessoa ou coisa referida.

Donnellan pretendia mostrar que as conseqüências da descoberta de que o João não foi afinal assassinado são diferentes em cada caso. Suponhamos que o João faleceu por outro motivo qualquer e que tudo não passou de um engano. Russell deveria dizer que no primeiro exemplo (uso atributivo) a frase “o assassino de João é insano” expressa uma proposição falsa — porque não há qualquer assassino. Strawson, por sua vez, deveria dizer que não é falsa nem verdadeira, já que nada obedece à descrição. Portanto, retornaríamos ao antigo ponto de divergência.

Contudo, Donnellan argumenta que o segundo exemplo (uso referencial) seria problemático para ambos filósofos. No segundo exemplo, ainda que o Pedro não tenha assassinado o João, o promotor estava falando dele, do seu comportamento. Poderíamos imaginar perfeitamente que a platéia entendeu a quem o promotor se referia, ou que o Pedro poderia acusar o promotor de dizer falsidades sobre ele. O caso é que Donnellan argumenta que a frase proferida (ou a proposição expressa) pelo promotor pode ser tanto verdadeira (no caso de o Pedro ser realmente insano) como falsa (no caso de não ser). Por um lado, isso seria problemático para Strawson, que deveria afirmar que não é verdadeira nem falsa. Por outro, Russell deveria afirmar que nunca poderia ser verdadeira, já que nada satisfaz a descrição “o assassino de João”.

A importância disso é que, ao contrário do que Russell e Strawson pensaram, Donnellan considera que no uso referencial essa frase poderia expressar uma proposição verdadeira, mesmo que nada satisfizesse univocamente a descrição usada. E a moral da história é que existem dois usos das descrições e não um. A teoria das descrições não reconhece essa ambigüidade, e conduz a suposições falsas acerca do valor de verdade das proposições contendo descrições usadas referencialmente.

Donnellan cita outros exemplos. Imagine-se que você está numa festa e, ao ver um homem com uma taça com um líquido transparente, diz ao seu amigo:

1) O homem bebendo Martini é muito elegante.

Agora imagine-se que este homem não estava bebendo Martini; que o líquido na sua taça era água mineral, embora você não o soubesse. Teria isso tornado 1 falsa? Parece que não. O seu amigo seria perfeitamente capaz de entender de quem você estava falando, mesmo que a pessoa referida não se encaixasse na descrição “o homem bebendo Martini”. E se esse homem realmente fosse elegante, então 1 seria verdadeira. E assim por diante.

Evans (1982: 52) esboça uma resposta não muito satisfatória a essa objeção. Alega que as objeções de Donnellan não são relevantes para a teoria das descrições. Considera que Russell estava preocupado com o que Evans denomina usos puros de descrições definidas, onde não se põe a questão de invocar conhecimento identificativo. Se prestarmos atenção aos exemplos de usos referenciais de descrições mencionados acima, vemos que envolvem situações onde o ouvinte pode identificar a pessoa ou coisa referida (na verdade, os ouvintes podem mesmo ver ou apontar para a coisa referida). A teoria das descrições ocupa-se principalmente de casos onde este tipo de conhecimento identificativo não existe.

Devitt (1981: 36-42), embora tenha objetivos bem diferentes de Evans, também aceita que os casos de usos referenciais envolvem um tipo especial de relação com o objeto referido. Alega que, em todos esses casos, temos uma conexão causal com o objeto referido. Essa conexão causal só ocorre quando temos alguma experiência do objeto. Nesse caso, o promotor usou a descrição “o assassino de João” referencialmente, pois estava em condições de ver o objeto ao qual se referiu (podia ver o Pedro).

O problema destes pontos de vista é que Donnellan poderia perfeitamente recorrer a exemplos onde este tipo de conhecimento identificativo, ou experiência do objeto, não existe. Imagine-se que o seu país é uma monarquia e que todos sabem (embora tenham medo de dizer) que o rei foi enganado por um usurpador, que finge ser o rei enquanto mantêm o verdadeiro rei sob prisão. Como você é uma pessoa da classe mais abastada, foi convidado (pelo usurpador) para uma festa no castelo. Ao chegar lá, encontra dois guardas em frente ao portão principal e diz-lhes o seguinte:

2) O rei convidou-me.

Ora, podemos perfeitamente supor que os guardas entendem que você está falando do usurpador, mesmo que não obedeça à descrição “o rei”. E, neste caso, 2 parece verdadeira, ainda que seja o usurpador que o tenha convidado. Mas aqui não estamos em posição de apontar ou ter qualquer conhecimento identificativo do usurpador. Podemos imaginar também que nem você nem os guardas o tenham visto alguma vez, ou tido qualquer experiência desse tipo.22

Entretanto, embora estes exemplos levantem uma dificuldade à teoria das descrições, talvez seja um exagero supor que a explicação correta do que ocorre é haver uma ambigüidade no uso de descrições.23 Kripke (1977), com base numa distinção feita por Grice (1975) argumentou nessa direção. Comecemos pela distinção de Grice. Pense-se na seguinte frase:

3) Paula é uma linda garota.

3 parece significar nada mais nada menos que Paula é uma linda garota. É isto que é literalmente dito pela frase. Mas agora suponha-se que alguém profere 3 com um tom de voz inequivocamente sarcástico ou irônico. Ainda diríamos que esse é o significado de 3? Nesse contexto, 3 parece implicar justamente o contrário, que Paula não é uma linda garota, ou até mesmo que é uma garota muito feia.

É aqui que entra a distinção de Grice. Se não conhecêssemos o contexto particular onde 3 foi proferida, não teríamos pudor em dizer que significa literalmente que Paula é uma linda garota. Mas não foi isso que a pessoa do exemplo quis dizer ao proferi-la; esta não tinha a intenção de comunicar o significado literal da frase. Grice expressou isso dizendo que nesses casos o significado literal é diferente do significado do locutor (ou significado de quem fala). Chama-se significado literal ao conteúdo literal ou semântico da frase. Ou seja, aquilo que a frase significa por si. E chama-se significado do locutor ou do falante ao que o falante tenciona dizer com a frase.

Note-se que esta diferença acontece devido a aspectos pragmáticos, que dizem respeito aos contextos de elocução e ao modo como as elocuções são feitas. No primeiro exemplo, a pessoa poderia ter proferido 3 com um tom de voz irônico ou mesmo ter feito uma careta. É isso que lhe permite comunicar, proferindo 3, algo diferente do seu significado literal. Obviamente, aceitar que esse tipo de fenômeno ocorre não implica que a nossa análise do significado literal, ou conteúdo semântico, de 3 esteja equivocada.

Kripke considera que algo de muito semelhante ocorre com os exemplos de usos referenciais de descrições. Donnellan não teria percebido que a mesma diferenciação pode ser feita no que diz respeito à referência de uma descrição. Assim, Kripke distingue entre referência semântica e referência de quem fala. A referência semântica de uma descrição é o objeto (se existir) que univocamente a satisfaz. A referência de quem fala é o objeto que o falante deseja referir, o objeto para o qual tenciona chamar a atenção dos interlocutores.24

Voltemos ao exemplo de uso referencial de uma descrição. No exemplo do tribunal, onde o promotor diz “O assassino do João é insano”, a referência semântica de “o assassino do João” é quem quer que seja aquela única pessoa que satisfaz essa descrição, e neste ponto Russell tinha razão. Mas, por outro lado, o promotor tinha a intenção de referir o Pedro e, por isso, a referência de quem fala era o Pedro.

Por uma razão ou outra, podemos ser bem-sucedidos ao fazer os nossos ouvintes conhecer as nossas intenções, de modo que possam saber a quem temos a intenção de referir ou de quem queremos falar. Porém, parece que mais uma vez serão fatores contextuais que o determinarão. No exemplo do tribunal, como Evans mencionou, podemos supor que os ouvintes podem identificar o Pedro e entender que o promotor fala dele. No exemplo do rei, poderíamos supor que os guardas sabiam que era mais apropriado dizer “o rei” do que “o usurpador”, para evitar sofrer retaliações. Seja como for, o uso referencial de uma descrição parece ser mais um fenômeno pragmático do que semântico, em nada mudando a análise de Russell.

Deste modo, quando o promotor disse que “o assassino do João é insano”, o que literalmente disse foi que “existe uma e só uma pessoa que matou o João e ela é insana”. Se o João não foi assassinado, então o que o promotor disse é literalmente falso. Contudo, esta não era a intenção do promotor; o que ele queria dizer era que o Pedro é insano. Por fatores deste gênero, os ouvintes poderiam perfeitamente entender o que o promotor queria dizer, mas isso em nada muda a análise do significado literal ou semântico de “o assassino do João é insano”. Há apenas uma análise semântica correta das descrições, e essa seria a de Russell. Não há aí ambigüidades. Há muito a ser explicado, temos de explicar como os interlocutores podem conhecer as nossas intenções, como o contexto o permite fazer, etc. Mas esse é o papel da pragmática.25

Espero ter conseguido oferecer uma introdução acessível e relevante ao problema das descrições definidas. Mas devo notar que muitos pontos não foram apresentados. As descrições definidas podem ser usadas para explicar o significado ou a referência dos nomes próprios, mas não o mencionei nem expliquei como isso se faz, pois trata-se de um debate autônomo. Também não mencionei os debates sobre a ficção, que envolve descrições como “o detective mais famoso de Baker Street”, que é uma personagem de ficção. O problema das descrições é hoje central em filosofia da linguagem, extravasando para outras áreas; é utilizada, por exemplo, nas discussões ontológicas sobre o que há (Quine: 1953) e nas discussões em filosofia da arte sobre a razão pela qual nos emocionamos com obras de ficção (Chisholm: 1972).26

Sagid Salles Ferreira

Notas

  1. Russell refere-se aqui sem dúvida a Meinong (1904), cuja tese veremos na Parte II.
  2. Note-se que “algum” quer dizer “pelo menos um”; assim, “algum x é mortal” é equivalente a “existe pelo menos um x que é mortal”. Não há problema se existir apenas um, ou mais do que um.
  3. O que é o mesmo que dizer que qualquer substituição de x resultará numa proposição verdadeira.
  4. Que é o mesmo que dizer que pelo menos uma substituição de x resultará numa proposição verdadeira. Quem ler o “On Denoting” encontrará uma notação muito mais complicada, porque Russell (por motivos que não nos dizem respeito aqui — mas ver Hylton 2003) define a noção de “sempre verdadeira” ou “verdadeiro para qualquer valor de x” como fundamental e indefinível e, em seguida, define as outras com base nela.
  5. Em Haack (1978: 71–90), Blackburn (1984: 303-306) e Inwagen (2000) encontra-se explicações bem claras e completas dos quantificadores.
  6. Embora a teoria da referência direta envolva, à primeira vista, os problemas mencionados em seguida, há muitas tentativas de torná-la imune. A teoria da referência direta não precisa sustentar que todos os termos que estou chamando aqui de termos singulares funcionam da mesma maneira. Pode-se argumentar, e de fato é isso que é feito hoje, que embora descrições definidas não sejam diretamente referenciais, os nomes próprios e demonstrativos são. Ver, por exemplo, Nathan Salmon (1998) e David Braun (1993).
  7. Na verdade, existem quatro, e não três, enigmas a que hoje se supõe ser possível responder recorrendo à teoria de Russell das descrições. Mas Russell, em “On Denoting”, preocupou-se apenas com três. Não trabalharei aqui esse outro enigma, conhecido como “quebra-cabeças de Frege”, apresentando por Frege em seu “Über Sinn und Bedeutung” (1892).
  8. Russell, Bertrand (1905) “On Denoting”. In Analytic Philosophy: An Anthology. Edited by Martinich, A. P. and Sosa, David. University of Texas at Austin: Blackwell. 2006. PP. 35 (tradução minha).
  9. É comum interpretar a tese de Meinong erroneamente. Lycan (2000: 19) interpreta Meinong como se afirmasse que existem coisas que não existem. Isso é um erro; como vimos, o que Meinong alega é que tanto o que existe como o que não existe possuem sosein, ou seja, podem possuir propriedades. Na verdade, parece que o próprio Russell o interpretou erroneamente. Uma boa defesa e exposição da tese meinongiana encontram-se em Chisholm (1972).
  10. Na verdade, é possível expor a teoria das descrições sem falar de proposições dependentes e independentes. Contudo, isso implicaria ocultar muito do que Russell pensou sobre a relação entre a linguagem, o pensamento e o mundo. Em qualquer caso, esta não é a razão principal pela qual decidi expor as coisas deste modo. Algumas discussões irão depender em alguma medida do que será dito aqui. A mesma estratégia que adoto aqui foi adotada por Stephen Neale (1990) e por Blackburn (1984). O segundo desenvolve uma ampla discussão sobre proposições dependentes e independentes.
  11. Para críticas à noção russelliana de que uma proposição pode conter objetos como constituintes ver Plantinga (1983) e M. Davidson (2007). A melhor exposição que conheço da tese de Russell está em Wettstein (2004). Wettstein não trata especificamente a tese de Russell das proposições, mas desenvolve muitos pontos importantes acerca do modo como Russell viu a relação entre linguagem e mundo.
  12. É importante frisar o “podem”, pois, como menciono no parágrafo seguinte, também é possível que uma frase contendo um quantificador expresse uma proposição dependente de objetos. Encontrar condições necessárias e suficientes que uma proposição deve satisfazer para depender ou não de objetos pode ser mais difícil do que parece. Até agora, notei apenas que a compreensão de uma proposição dependente de objetos exige a identificação de um objeto, enquanto a compreensão de uma proposição independente não o exige. Ou ainda, saber que verdade particular é expressa por uma proposição dependente de objetos requer a identificação de um objeto. Por exemplo, para saber que verdade particular “esta menina é uma beleza” expressa, tenho de conhecer a referência de “esta menina”. Mas outras coisas poderiam ser ditas. Não me arriscarei indo muito além. Para os nossos propósitos, isto é suficiente.
  13. Numa apresentação deste texto no Grupo de Estudos em Filosofia Analítica da UFOP pude notar, pelas perguntas que me foram feitas, que o modo como Lycan (2000: 25) e Salmon (1998: 876) expõem essa distinção pode gerar confusão. Pode parecer (embora essa não seja a intenção desses autores) que a distinção entre ocorrência primária e secundária é uma distinção que apenas se aplica ao âmbito da negação (discuto isso depois), mas isto é falso. O primeiro exemplo de Russell para explicar essa distinção é de duas frases que não contêm o operador de negação. Ver Russell (1905: 37). Ver também Donnellan (1966).
  14. Alguém poderia perguntar por que não interpretar essa frase de modo que a ocorrência da descrição fosse primária e não secundária. Contudo, em ambas as interpretações a descrição “o atual presidente do Brasil” desaparece após análise. Assim, em nenhuma das interpretações o enigma apareceria. Mas há outros problemas relacionados com essa interpretação alternativa; ver Blackburn (1972).
  15. Contudo, Russell enfrenta aqui um problema curioso. Uma vez que, devido a problemas que não tratarei aqui, Russell acaba por considerar que os nomes próprios são, na maior parte das vezes, equivalentes a descrições, o problema da substituibilidade volta com toda força. Imaginemos que o nome “Lula” é equivalente à descrição “o atual presidente do Brasil”. Se isso for assim, então poderemos substituir “Lula” em 2 por “o atual presidente do Brasil”, e assim, provar que “João desejava saber se o atual presidente do Brasil era o atual presidente do Brasil”. É claro que não é isso que João desejava saber. Mas essa é outra história, e não é meu objetivo tratar aqui da tese de Russell acerca dos nomes.
  16. Claro que “Brasil” é um termo singular, e a frase expressa uma proposição dependente de objetos com respeito ao Brasil, mas não com respeito ao homem que atualmente reina no Brasil. E isso é o que nos interessa aqui. Não precisamos conhecer ou identificar qualquer rei para compreender a frase.
  17. Sobre isso ver Grayling (1982: 109).
  18. Alguns autores sugerem que Strawson tinha em mente uma noção semântica de pressuposição. Ver, por exemplo, Haack (1978: 106) e Neale (1990: 54). Haack cita Strawson (1964) como indício; porém, não consigo ver tal indício no texto de Strawson. Dummett (1960) tem também uma interessante discussão sobre o tema.
  19. Mas, é claro, é bem provável que Strawson ficasse feliz com isso, e isso de modo algum transforma o problema num pseudoproblema ou algo do tipo.
  20. Donnellan (1968: 204) pensou algo bem próximo disso. Segundo ele, o problema das descrições incompletas só ocorria para o que denominou “usos referenciais de descrições”. Veremos o que Donnellan queria dizer por “usos referenciais de uma descrição” na próxima secção.
  21. Se não ficou claro por que 8'' não implica 8', note-se que de “existe um e só um assassino dessa pessoa” não se segue que “existe um e só um assassino em todo universo”.
  22. Para outro exemplo desse tipo ver Searle (1979: 216).
  23. Note-se que ocorrem casos semelhantes com os nomes próprios, e nem por isso postulamos dois usos dos nomes. Suponha-se que vejo alguém à distância e penso que é Jorge e digo “Jorge está vindo”. Mas na verdade acabo descobrindo que era Marcos, e não Jorge, que estava vindo em minha direção. Parece que eu disse algo verdadeiro acerca de Marcos, mesmo que tenha usado o nome “Jorge”. O exemplo é de Kripke (1977: 395).
  24. Kripke (1977: 399) define a referência de quem fala como o objeto que quem fala deseja referir e que essa pessoa pensa preencher as condições para ser o referente semântico. A parte em itálico gera um problema. Não é necessário que quem fala acredite que o objeto satisfaz as condições do referente semântico. Por exemplo: podemos imaginar que o promotor nem acreditava que o Pedro era o assassino do João (e, portanto, o referente semântico de “o assassino do João”), tendo usado “o assassino do João” como um mero artifício retórico.
  25. Para mais discussões sobre usos referenciais de descrições, ver Lycan (2000: 32–37), Searle (1979: 213-250), MacKay (1968), Soames (1994: 360–376) e (2005: 392–394) e Loar (1976: 496-516). Soames, como era de esperar, apresenta a mesma solução que apresentou para descrições incompletas, defendendo que no uso referencial o que temos é o gerar de uma proposição pragmaticamente enriquecida.
  26. Gostaria de agradecer a algumas pessoas. Ao professor Sérgio Miranda, por intermináveis discussões em filosofia da linguagem e por ler uma primeira versão desse trabalho e criticá-lo completamente. A todos os integrantes do Grupo de Estudos em Filosofia Analítica da UFOP (GEFA) por discutirem várias vezes as minhas interpretações e cada argumento apresentado aqui. Ao professor Desidério Murcho por me dar a oportunidade de terminar esse trabalho, e ler, corrigir e fazer mais críticas. À Paula Akemy que sempre tem a paciência de ler e criticar tudo que escrevo.

Referências

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