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Crítica
9 de Janeiro de 2011   Estética

Destruir obras de arte

Aires Almeida

Muitas pessoas encaram a arte como algo sagrado, inquestionável e de valor superlativo. Isso parece tornar intolerável a simples ideia de destruir obras de arte. Mas será tal ideia assim tão disparatada? Penso que não.

Vale a pena começar por sublinhar que a pergunta “Será sempre inaceitável destruir obras de arte?” não é apenas uma questão estética. Envolve também questões de natureza ética e até ontológica.

Por um lado, é preciso começar por ter a noção de que há provavelmente obras de arte cuja destruição física é inconcebível. Se adoptarmos a concepção ontológica — partilhada por muitos filósofos — segundo a qual as obras musicais são entidades universais e abstractas, em vez de particulares concretos, então falar da destruição física de tais obras deixa de fazer qualquer sentido.

Se, por exemplo, Viagem de Inverno de Schubert não for um tipo exemplificado por múltiplos eventos numericamente distintos (as suas múltiplas execuções e gravações), então parece não estar ao nosso alcance destruí-la, ainda que todas as cópias da partitura sejam queimadas, as suas execuções banidas e triturados todos os discos com gravações de execuções dessa obra. E o mesmo se pode dizer das obras de literatura e de praticamente todas as artes performativas. Podemos, por exemplo, queimar todos os exemplares de Os Maias que, ainda assim, não estaremos a destruir a obra de Eça de Queirós. Só é, pois, possível destruir obras de arte que sejam particulares concretos, como pinturas, esculturas ou edifícios, mas não obras musicais e literárias, por exemplo.

Por outro lado, a resposta à pergunta inicial depende também da questão prévia de saber se temos obrigações — e, em caso afirmativo, quais — para com as obras de arte; ou para com os seus criadores; ou para com os seus actuais e futuros apreciadores. A ideia de que alguém pode destruir uma obra de arte apenas porque é o seu único e legítimo proprietário não é, pois, um bom ponto de partida. Isto porque parece totalmente pacífico que nem mesmo o proprietário do Palácio do Buçaco — que é propriedade privada — tem o direito de o destruir, caso assim o entenda.

Isto não significa que as questões sobre a propriedade das obras de arte sejam completamente irrelevantes. Talvez a própria noção de propriedade não se aplique às obras de arte do mesmo modo que a outros bens. Devemos, portanto, evitar uma concepção demasiado restrita do que é ser proprietário de obras de arte. Até porque não é invulgar existirem cláusulas contratuais na transacção e na aquisição de obras de arte, retirando ao comprador a exclusiva titularidade da obra adquirida. Isto acontece, por exemplo, na aquisição de edifícios classificados como “de interesse público”. Em casos assim, os proprietários não só estão legalmente impedidos de os destruir como nem sequer podem alterar as suas características arquitectónicas.

Estas restrições existem porque se considera haver nas obras de arte valores mais importantes que merecem ser preservados. Mas que valores são esses?

Há quem defenda que a arte tem valor intrínseco e, por isso, temos obrigações para com as obras de arte, tornando a sua destruição impermissível. O argumento é, então, o seguinte:

A arte tem valor intrínseco.
Nunca se deve permitir a destruição do que tem valor intrínseco.
Logo, a destruição de obras de arte é impermissível.

Mas este argumento não só não é sólido como, ao contrário do que possa parecer, nem sequer é válido. Não é sólido porque, por um lado, dificilmente se encontra uma justificação não circular a favor da verdade da primeira premissa: não basta declarar que a arte tem valor intrínseco porque o seu valor não é instrumental e que não tem valor instrumental porque tem valor em si. Dizer que a arte tem valor intrínseco é, mais do que uma justificação do seu valor, uma forma de evitar o problema. Não se vê que importância teria a arte para a humanidade, caso não constituísse uma fonte de bem-estar para os seres humanos, quer esse bem-estar consista no prazer, no avanço do conhecimento ou na obtenção de experiências compensadoras. Podemos imaginar um mundo cheio de objectos de arte, mas do qual estranhamente teriam desaparecido para sempre quaisquer seres humanos ou outros seres capazes de os apreciar: certamente tais objectos deixariam de ter o mesmo valor que têm.

Por outro lado, a segunda premissa também não é indisputável, pois não é claro que ter valor intrínseco seja equivalente a ter valor absoluto. Embora haja quem assim pense, isso está muito longe de ser consensual, pois não é de todo incoerente reconhecer valor intrínseco a certas coisas e, contudo, admitir a existência de outras com mais valor do que elas. Imagine-se, por exemplo, que um artista contemporâneo pintou inocentemente a sua mais recente obra por cima de uma velha tela pintada que, por acaso, se veio depois a descobrir ser uma obra-prima de Vermeer que se julgava perdida para sempre. Seria aceitável apagar definitivamente a obra do artista contemporâneo para recuperar a tela original de Vermeer, caso isso fosse tecnicamente possível? Mesmo quem acredita no valor intrínseco da arte provavelmente aceitaria que nos devíamos desembaraçar da pintura contemporânea para trazer novamente à luz a obra-prima de Vermeer. Neste caso, o facto de a obra contemporânea ter valor intrínseco não impediria que houvesse outras obras ainda mais valiosas, pelo que ter valor intrínseco não é o mesmo que ter valor supremo ou absoluto. Uma vez que a premissa de que a destruição do que tem valor intrínseco é impermissível assenta na ideia falsa de que ter valor intrínseco é ter valor supremo, segue-se que tal premissa é injustificada.

Mas ainda que as premissas fossem verdadeiras, o argumento é falacioso. Trata-se da conhecida falácia da divisão: do facto de a arte em geral ter valor intrínseco não se segue que cada uma das obras de arte tenha valor intrínseco, ao contrário do que é suposto no argumento. Ou antes, do facto de a arte em geral ter valor (intrínseco ou não) não se segue que toda e cada uma das obras de arte tenha valor, tal como não se segue que todos os actos médicos são benéficos do facto de a medicina ser uma coisa benéfica. O erro subjacente a este tipo de argumento é confundir o valor da arte em geral com o valor de cada uma das obras de arte particulares e aceitar irreflectidamente a ideia de que todas as obras de arte têm o mesmo valor. Ora, isso equivale a dizer que não há más obras de arte, o que é esmagadoramente contrariado pela própria crítica de arte.

Mas há, ainda assim, outros argumentos contra a destruição de toda e qualquer obra de arte que não se apoiam na ideia de que a arte tem valor intrínseco. Um deles é que o artista tem direitos sobre as suas obras, independentemente do seu maior ou menor valor artístico. Assim, destruir obras de arte sem o consentimento dos seus criadores seria o mesmo que violar os direitos dos artistas. De certo modo, isto equivale a dizer que o criador de uma obra de arte nunca deixa completamente de ser proprietário da sua criação. Contudo, a não ser que se esteja disposto a reconhecer tais direitos também aos mortos, este argumento só funciona se estivermos a falar de artistas vivos. Seja como for, teria de haver uma boa razão para justificar a premissa de que o artista goza desse tipo de direitos — ao contrário do que se passa, por exemplo, com os artesãos.

Invocar o caso dos direitos de autor de nada serve, pois não é exactamente isso que está aqui em causa. Até porque os próprios direitos de autor se extinguem legalmente ao fim de um certo período de tempo. Qual poderá ser, então, a razão que nos leva a reconhecer tais direitos aos artistas? Esta é uma pergunta para a qual parece não haver resposta satisfatória. Além disso, poucos admitiriam que é errado destruir as obras de Da Vinci, Miguel Ângelo e Rafael devido aos direitos dos seus criadores.

Um último argumento, de carácter consequencialista, diz que é errado destruir obras de arte porque isso simplesmente nos priva de algo que contribui para o bem-estar dos seres humanos, não apenas das gerações actuais como também das futuras gerações. Contudo, este argumento só funcionaria admitindo que todas as obras de arte têm o mesmo valor e, portanto, que todas contribuem de igual modo para o bem-estar dos seres humanos. Ora, dado que há boas e más obras de arte, também há obras de arte que contribuem muito e outras que contribuem pouco — ou mesmo nada — para o nosso bem-estar. Mais uma vez, é importante não confundir o valor da arte em geral com obras de arte particulares.

O que incomoda algumas pessoas ao pensarem na destruição de obras de arte é pensarem apenas nas grandes obras da história da arte. Mas, num mundo onde as obras de arte se atrapalham umas às outras, disputando a nossa atenção, há algumas que são perfeitamente dispensáveis, sobretudo se, ao dispensá-las, contribuirmos para preservar outras coisas mais importantes. E nem é preciso invocar a velha história do barco carregado de obras de arte que, no meio da tormenta, está prestes a afundar-se por excesso de carga, tendo o capitão de escolher entre atirar borda fora algumas obras mais pesadas ou, em alternativa, oferecer aos tubarões os elementos mais anafados da tripulação. Um dos grandes problemas com que muitos museus e galerias actualmente se debatem é o do armazenamento e manutenção da incrível quantidade de obras de arte contemporânea adquiridas e que raramente são exibidas ao público. Numa época em que virtualmente tudo pode ser arte, amontoam-se em armazéns com temperaturas dispendiosamente controladas milhares de objectos artísticos que nenhum bem-estar geram, uma vez que dificilmente virão a ser apreciados. Por sua vez, isso impede muitas dessas instituições de investir de uma forma mais criteriosa em outras obras artisticamente mais valiosas.

Algumas pessoas poderão ser tentadas a responder que mesmo as más obras de arte merecem ser preservadas, alegando que têm valor documental para as gerações futuras, permitindo-lhes compreender melhor a arte que agora se faz, o que não sucederia se apenas as boas obras de arte chegassem até elas. Mas este argumento é facilmente descartável, pois isso não implica preservar todas as más obras de arte. Algumas bastariam para estabelecer o contraste. Além disso, se tudo o que tem valor documental devesse ser preservado, então rigorosamente tudo devia ser preservado, pois tudo pode vir a ter valor documental.

Chegados aqui, poder-se-ia perguntar: e como decidir quais as obras de arte dispensáveis e quais não o são? Mas essa é outra questão; uma questão que não é assim tão difícil.

Aires Almeida

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