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Crítica
26 de Setembro de 2019   Filosofia da religião

Falso testemunho

Kirsty Jane Falconer
Tradução de Desidério Murcho
A History of the Bible: The Book and its Faiths
de John Barton
Londres: Penguin, 2019, 640pp.

Durante séculos, o entendimento cristão dominante da mensagem do evangelho era a teologia da substituição. Deste ponto de vista, o Novo Testamento é a história em que o ressequido legalismo judaico é conquistado pela fé cristã viva, alegre e plena de graça. A teologia da substituição persiste em alguns círculos, mas é falsa. Uma leitura rápida do Deuteronómio deveria convencer qualquer pessoa de que a importância de cumprir não apenas o dever, mas de cumpri-lo da maneira adequada, está presente no coração da Tora. Uma leitura rápida do Sermão da Montanha deveria confirmar que Jesus se preocupava tanto com a aplicação da lei como qualquer outro professor judeu. E caso se exija mais provas, folhear qualquer livro dos Manuscritos do Mar Morto deveria mostrar para lá de qualquer dúvida que pelo menos outra seita judia do século I acreditava que o juízo final estava iminente, e que a pureza de coração, o anti-materialismo, a vida em comunidade e a correcta interpretação da Escritura seria o que iria de separar as ovelhas das cabras.

Contudo, como John Barton observa frequentemente em A History of the Bible: The Book and its Faiths, é difícil às pessoas ver e reter provas que põem em questão os seus pressupostos. As pessoas sistematizam. Esquecem-se que há duas histórias da criação no início do Génesis; esquecem-se que David matou Golias duas vezes, e que tem então duas biografias, cada uma das quais com diferentes vieses. Esquecem-se que o que consideramos a “história de Jesus” dos evangelhos (um termo que até Barton usa a dado ponto) é na realidade quatro histórias diferentes. Esquecem-se que Paulo diz coisas radicalmente incoerentes sobre a salvação, e que as suas cartas dão por vezes estranhos saltos lógicos. Se acreditam que a Bíblia tem de estar certa em todos os detalhes, podem ver tudo isto e depois deitar-se a forjar desculpas. Se acreditam que está fundamentalmente errada, constituindo-se como um mau guia para pessoas iludidas, podem agarrar-se às dissonâncias como prova. Mas muitas pessoas limitam-se a esquecer. Os nossos cérebros têm horror à incoerência, e tendemos a pressupor que a Bíblia apresenta supostamente uma narrativa única e idónea. Isso faz parte da extraordinária persistência da teologia da substituição nas sociedades culturalmente cristãs: a ideia de que a sequência canónica do “Antigo” e “Novo” Testamento é em si uma história, na qual o aparecimento de Jesus da Nazaré e do seu movimento marca o fim da história, a eleição divina definitiva de um grémio, em detrimento dos outros.

Barton, um padre anglicano que foi Professor Oriel and Laing de Interpretação da Sagrada Escritura em Oxford, não quer que persistamos neste tipo de dualismo. Do seu ponto de vista, uma leitura inteligente, humanitária e defensável da Escritura exige que reconheçamos que a Bíblia é amiúde pouco clara e inconsistente, tanto na sua forma como nas mensagens a que parece dar voz. Esta é uma perspectiva bastante comum no mundo académico, mas o argumento de Barton não é exclusivamente académico. Ler a Bíblia desta maneira deveria ter consequências teológicas muito sérias.

Há versões do cristianismo que afirmam ser simplesmente “bíblicas” (nenhuma versão de judaísmo o faz), mas a verdade é que as estruturas e conteúdo da crença cristã […] se organizam e articulam de maneira diferente das da Bíblia. Isto é mais claro no fundamentalismo cristão, que idolatra a Bíblia apesar de a compreender em grande parte mal […] A descrição da Bíblia que se segue (com defeitos e tudo), será necessariamente uma leitura desconcertante para quem a idolatra, mas irei também mostrar que não é e não pode ser a única fundação do judaísmo, nem do cristianismo.

Os fundamentalistas são muito visíveis e por vezes influentes, mas são uma minoria. Até os cristãos se encontram as mais das vezes em oposição a eles, seja no seio das suas denominações, seja como uma espécie de padrão de medida imaginário ao conversar com uma minoria de ateístas fundamentalistas. De modo que, para os leitores “liberais” (para usar a terminologia de Barton), este tipo de afirmação poderá parecer datada. Claro que a Bíblia não pode ser a única base da religião seja de quem for. Que tolas são pessoas se pensam desse modo! Mas, para Barton, o fundamentalismo é a manifestação extrema de um problema muito mais vasto: a tendência para amaciar as partes difíceis. A sua descrição deveria deixar desconcertada qualquer pessoa que se congratule demasiado pela sua abordagem razoável da Escritura.

A History de Barton apresenta-se em ordem cronológica, da Bíblia hebraica ou Antigo Testamento à recepção escritural depois do Iluminismo, terminando com um capítulo sobre a tradução bíblica. Cada capítulo faz uma abordagem temática, dividindo a narrativa escritural ou historiográfica para mostrar as contradições e tensões latentes, e apresenta uma panorâmica breve e relativamente imparcial dos principais debates académicos. Esta é uma estratégia eficaz. Não só subverte o conhecimento da Bíblia que o leitor pressupõe, como também subverte a expectativa de que uma história deverá ser uma história, uma narrativa claramente linear. Apesar de não ter muito espaço — num só volume que mal ultrapassa as seiscentas páginas, incluindo notas e índice remissivo, até a narrativa hebraica fica com apenas vinte páginas, e os profetas vinte e duas — Barton consegue mesmo assim abordar os principais temas e dar um ideia clara das questões. Convoca também as principais vozes não-canónicas do mundo antigo, como Filo e o historiador Josefo, que viram os dois lados da primeira guerra judaico-cristã, que culminou na destruição do Segundo Templo.

Barton é especialista do Antigo Testamento, e aborda a Escritura judaica com sensibilidade e erudição. É também notavelmente diplomático, quer esteja a tirar à força das mãos do leitor cristão o pressuposto (muitas vezes por examinar) de que todo o messias mencionado na Bíblia hebraica é um protocristo, quer esteja a fazer notar os sangrentos argumentos teológicos e sectários que subjazem a discussões técnicas aparentemente abstrusas, como as que dizem respeito à datação e ordem de composição. Isto não é um feito menor, dado que os estudos bíblicos modernos contêm um espectro extraordinário de abordagens activas, desde aquelas a que se poderia chamar maximalistas-tradicionalistas (baseadas em instrumentos críticos, que até fazem renascer, como a abordagem em quatro estratos ao Antigo Testamento, de Julius Wellhausen, que procura estabelecer factos concretos acerca da forma autêntica do texto) até às pós-modernistas, pós-estruturalistas e pós-críticas. Barton tenta dar uma ideia de todas estas perspectivas e é bem-sucedido nessa tarefa.

Este sucesso tem dois efeitos colaterais, contudo. Um é que tudo acontece a uma velocidade incrível. O outro é que um leitor com algum conhecimento de estudos bíblicos pode facilmente despistar-se ao tentar descobrir o que Barton pensa realmente acerca de Wellhausen ou da datação dos salmos ou do suposto evangelho perdido Q (supostamente a fonte de todo o material comum a Mateus e Lucas, mas ausente de Marcos), um pouco como alguns académicos que andam em busca do Jesus histórico. Felizmente, Barton pára por vezes e apresenta um argumento — e é de regra surpreendente.

Um exemplo disto é o capítulo sobre S. Paulo. Paulo era um judeu de Tarso, na Ásia Menor, e um autoproclamado antigo fariseu que pregava sobretudo a uma audiência de gentios. Foi o primeiro dos seguidores de Jesus a deixar-nos provas escritas. Barton não lhe dá especial importância, apesar de lhe dedicar vinte e três páginas, em contraste com as vinte e uma dedicadas aos evangelhos. Mas Paulo levanta um conjunto específico de questões. A primeira é que nem todo o “Paulo” é Paulo. A maior parte dos estudiosos bíblicos concordam que algumas das cartas são dele próprio, ao passo que outras são imitações. Esta tese, que é mais que substanciada pelas diferenças estilísticas significativas do corpus paulino, remonta aos anos quarenta do século XIX, e é amplamente aceite entre os leitores informados da Escritura. Não é universalmente aceite, contudo. Barton defende que quem a aceita — mesmo na academia — nem sempre vê todas as suas consequências. Os estudiosos tendem a situar as letras pseudónimas na tradição da pseudo-epigrafia, na qual textos (como os Provérbios) são atribuídos a figuras maiores (como Salomão) como uma maneira de honrar o suposto autor e de dar legitimidade ao texto. Para Barton, isto não se sustenta:

No caso do Antigo Testamento, estamos falando de uma atribuição a uma figura da última ou penúltima geração, atribuição que se pretende seguramente que seja literal. As pessoas na Antiguidade sabiam das falsificações e tinham horror à prática, como se pode ver na própria primeira carta aos Tessalonicenses, na qual “Paulo” diz aos leitores com uma piscadela de olho para não darem importância às cartas que fraudulentamente lhe são atribuídas […] Esta é uma afirmação sem ambiguidades de genuína autoria paulina. Bart Ehrman […] fala claramente de “falsificação” em tais casos, e dificilmente se pode evitar o termo.

Se aceitarmos as provas textuais e históricas, que são significativas, teremos de aceitar também que o Novo Testamento canónico contém escritos que afirmam claramente ser o que não são. É compreensível que muitos leitores evitem esta verdade ou que tentem enfraquecê-la. O argumento da pseudo-epigrafia é uma maneira de o fazer. Ironicamente, a abordagem conservadora comum que Barton descreve — negar toda a pseudonímia em vez de reconhecer que “há falsificações na Bíblia” — parece mais proporcional face à escala da questão.

Entre aqueles que estão preparados para aceitar as provas, a maior parte concorda que Paulo provavelmente escreveu a primeira carta aos Tessalonicenses, a primeira e segunda cartas aos Coríntios, e as cartas aos Gálatas, Romanos, Filipenses e Filémon, provavelmente nessa ordem. Este é um esquema de composição hipotético, baseado em pouquíssimas provas internas de duas fontes (as cartas, e os Actos dos Apóstolos), que diferem em vários pontos cruciais. Em alguns casos, estas diferenças são tão marcadas que não podem ser reconciliadas. Barton dedica parte do seu capítulo a explorar este caso. Mas é impossível descartar completamente as hipóteses. Qualquer coisa que se defenda sobre Paulo, mesmo que do tipo aberto e temático apresentado por Barton, obriga a acabar por tomar posição acerca de algum ponto. Acaba tudo por ser uma acomodação desconfortável.

O segundo grande problema é algo que muitos dos leitores de Barton irão trazer para o texto, conscientemente ou não: a maneira como Paulo é usado no discurso público. Porque as suas instruções pastorais foram imortalizadas no cânone, ele é atraente para quem quer “voltar à fonte” para basear a sua autoridade, ou a da sua comunidade, em alguém próximo de Cristo. Usar Paulo desta maneira pode ser um exercício inócuo — há muito conteúdo nas cartas que é encorajador ou até inspirador — mas ele é um homem do século I com preocupações do século I. Retiradas do seu contexto histórico, e apresentadas como se fossem intemporais, as suas palavras podem fazer doer.

Isto seria assim mesmo que todas as cartas duvidosas fossem excluídas do cânone. As diatribes de Paulo na Carta aos Romanos sobre a “justificação pela fé” — a ideia de que as pessoas são redimidas em função das suas crenças e não pelo que fazem — seriam ainda postas ao serviço dos preconceitos anti-judaicos e anti-católicos. As mulheres que procuram ser ordenadas teriam ainda de enfrentar a passagem da 1.ª Carta aos Coríntios 14, na qual lhes diz, essencialmente, para se sentar e calar o bico. Há quem defenda que isto é uma inserção posterior, e Barton concorda; mas mesmo assim, está no texto. Os cristãos LGBTQ enfrentariam ainda o facto de Paulo condenar fortemente a homosexualidade, introduzindo um termo — arsenokoitai — para os homens que têm relações sexuais com outros homens, só para poder incluí-los na lista dos que são proibidos de entrar no Reino de Deus. Estas passagens são lidas dos púlpitos, surgem em cartazes, e há quem as considere materiais irrecusavelmente prioritários na discussão teológica. O uso e abuso de Paulo na vida quotidiana é uma ilustração viva do que Barton quer dizer quando afirma que “os fundamentalistas veneram uma Bíblia que não existe realmente, um texto perfeito que reflecte perfeitamente as suas crenças”. A palavra-chave aqui é “veneram” e, com respeito a Paulo, não são só os fundamentalistas que o fazem: pergunte-se a qualquer pessoa que viva na linha divisória da Reforma.

O destaque que Barton dá à incoerência, ambiguidade e falta de autenticidade é um poderoso antídoto à veneração. Com Paulo, como com qualquer outra voz que fale da Escritura, Barton confronta-nos com as coisas que não podem ser reconciliadas. Considere-se o tratamento que Paulo dá à ressurreição na 1.ª Carta aos Coríntios 15:58, omitindo qualquer menção às mulheres junto ao túmulo (uma constante nos quatro evangelhos), mas que descreve uma teofania colossal: o aparecimento a quinhentas pessoas do Cristo reerguido, acontecimento que não tem qualquer outro testemunho. Ou a sua cristologia, que parece descrever Jesus como um co-existente eterno em igualdade com Deus (Filipenses 2:6–11), escolhido por Deus (Romanos 1:1–4) e também como um subordinado de Deus (1.ª Carta aos Coríntios 15:28). Ou a tensão entre as suas declarações de que os crentes são justificados pela fé e a sua ansiedade evidente de que os seus seguidores façam as coisas que ele acredita que irá mantê-los no caminho da salvação.

Neste ponto, deverá ser claro que não se deve dar a Paulo a última palavra acerca seja do que for. Ele revela-se um homem completamente convencido de uma verdade grandiosa e transcendente, esforçando-se arduamente para transmiti-la aos outros antes de ficarem perdidos. Ele não está a fazer teologia sistemática; está demasiado ocupado a apagar fogos. Lê-lo sistematicamente é uma empresa condenada ao fracasso, ainda que pudéssemos saber com certeza quais das cartas foram realmente escritas por ele — coisa que não podemos saber.

O que está em causa com Paulo diz respeito simultaneamente a toda a Escritura — as questões da autoridade bíblica e da religião “bíblica” — e a questões específicas das epístolas do Novo Testamento, que incluem também cartas atribuídas a Pedro, Tiago e João. O que diz respeito a toda a Escritura é de facto o menos preocupante. A maior parte dos crentes actuais não estão comprometidos com uma ideia particularmente estrita de inerrância escritural, ainda que pensem que a Bíblia pode falar-lhes directamente acerca da fé. Aceitam de bom grado que David não escreveu os salmos, ou que os três grandes códigos de leis da Bíblia hebraica (Êxodo, Deuteronómio, Levítico) são instantâneos de um sistema em evolução de normas societais. Não é uma novidade chocante que diferentes relatos da vida de Jesus possam conter materiais de diferentes tradições orais, ou que os evangelistas tenham ajeitado o material aos seus propósitos narrativos. Podem não saber estas coisas, ou podem inclinar-se a esquecê-las. Mas chamar a atenção para elas não faz certamente mal.

Como Barton insiste, contudo — e aqui, na minha limitada experiência, ele está algo fora do consenso pragmático quotidiano dos estudos bíblicos —, a presença de cartas forjadas no seio do cânone deveria afectar muito mais a nossa leitura da Bíblia. Perante uma questão fundamental de autenticidade no próprio núcleo do Novo Testamento, até as abordagens “liberais” historizadoras e contextualizadoras podem cair numa rotina explicativa reconfortante e sistematizadora. E é este tipo de conforto doentio, mais até do que o fundamentalismo, que a abordagem de Barton compromete consistente e incisivamente.

O que se há-de então fazer com a Bíblia? Esta pergunta afecta qualquer pessoa que viva numa sociedade na qual a religião “bíblica” afirme a sua autoridade moral ou política na esfera pública. O fundamentalismo é o vilão da History de Barton não só por ser criticamente insustentável, mas também porque é importante. E porque é importante, pode ser tentador passar em claro os enleios e contradições mais suaves mas mais disseminados que surgem e se reproduzem sempre que as pessoas tentam ler os textos bíblicos como se fossem eternamente aplicáveis: o que Barton chama “leituras forçadas”.

Estas podem parecer inteiramente benignas, sobretudo quando surgem em oposição a teses fundamentalistas. Em comparação com a insistência de que se deve ensinar às crianças o criacionismo da Terra jovem, o que poderia haver de errado na defesa de uma leitura metafórica da criação em seis dias do Génesis? Em termos imediatos, nada. De facto, é uma jogada extremamente útil. Confronta os fundamentalistas nos seus próprios termos, ao argumentar com base na Escritura; oferece uma salvação àqueles cristãos que vivem em contextos dominados por evangélicos e que, apanhados numa guerra cultural, poderão ter dificuldade em reconciliar o que consideram que são as exigências rivais da fé e da ciência; assinala a quem possa ter dúvidas que o orador não é um crente “desses”, e por isso anula mil refregas equívocas. À luz de todas estas vantagens, poderá ser difícil ver o problema. E contudo, faz notar Barton, e precisamente com respeito ao Génesis, o problema persiste. Tudo o que acontece quando mudamos de uma leitura “literal” para uma “metafórica” é que mudamos o tipo de verdade que exigimos do texto. Não consideramos que “o autor original estava a tentar descrever a maneira como o mundo veio a ser, por outras palavras, que o autor pretendia que texto fosse literal” — ou talvez fujamos dessa ideia. Uma vez mais, como no caso das cartas pseudonímicas, a explicação confortável e apelativa ainda reforça a ideia de que a Escritura tem sempre de ser, em algum nível, verdadeira: configurada pela intencionalidade divina que ela exprime, sem conter coisa alguma que não tenha simplesmente qualquer significado ou que seja irrelevante. A presença de um fragmento datado de cosmologia sem qualquer significado mais profundo é desconcertante para quem acredita que a Escritura é, pelo menos num certo grau, de inspiração divina. E deve ser desconcertante.

Barton tem algumas ideias acerca de como os cristãos em particular podem recalibrar a sua relação com a Bíblia de maneira a tratá-la como “um documento crucial mas não infalível da fé cristã” — a sua formulação ideal. As suas ideias baseiam-se fortemente na tradição anglicana, e podem por vezes parecer desconfortavelmente paroquiais. Mas, aos meus olhos, a sugestão capital é esta: se é difícil considerar a presença na Escritura de algo falso, em qualquer sentido da palavra, ao mesmo tempo que se acredita que a Escritura foi inspirada por Deus, então “talvez seja melhor não fazer a afirmação elevada de que foi inspirada — ou, pelo menos, talvez seja melhor entender a inspiração de maneira diferente”. A primeira opção pode parecer mais chocante aos crentes (aos descrentes a questão não se põe); mas a segunda é mais difícil. Dado o ónus da expectativa posta na Bíblia como fonte da verdade revelada, é impossível imaginar que se chegue a um novo conceito de inspiração que não constitua, inevitavelmente, apenas mais uma leitura forçada do texto: uma maneira de reter o seu significado divino ao mesmo tempo que se evita os elementos “indesejáveis”, ainda que estes pudessem ser objecto de consenso universal. A única resposta poderá ser abandoná-la: tratar esta imensa e decrépita antologia polifónica como qualquer outro texto antigo, deixá-la falar-nos tal como está sem tentar controlar a conversa e (se necessário) aceitar que qualquer plano divino digno desse nome nos seria em qualquer caso inacessível.

Kirsty Jane Falconer
The Times Literary Supplement, 17 de Setembro de 2019.
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ISSN 1749-8457