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Crítica
25 de Novembro de 2007   Ética

Diálogo sobre a ética kantiana

Luís Veríssimo

João — Estou profundamente desiludido com a teoria de Kant.

Francisca — Pois eu nunca engoli muito bem a ética kantiana. Dá excessiva importância à intenção, mas esquece-se de que na prática só temos acesso às consequências.

Maria — O quê? A mim parece-me uma excelente teoria. Julgo que o imperativo categórico (“Age unicamente de acordo com a máxima que te permita querer a sua transformação em lei universal”) é realmente um princípio ético fundamental e universal. Fundamental porque é dele que brotam todos os nossos juízos morais, e universal porque qualquer agente racional tem de o aceitar.

João — Ora aí está uma coisa que eu não percebo. Porque é que o imperativo categórico é um princípio racional? Porque é que uma pessoa racional não pode rejeitá-lo?

Maria — Hmmm... Uma pessoa racional tem de ser coerente, não é?

João — Sim, e depois?

Maria — Então imagina que alguém diz isto: “Eu posso quebrar as promessas que faço, mas não quero, aliás não posso querer, que todos quebrem as promessas que fazem”. Julgo que quem pensa assim, rejeitando o imperativo categórico, está a ser incoerente, não te parece? Julgo que o imperativo categórico é uma simples exigência de coerência que nos impede, entre outras coisas, de abrir excepções convenientes para nós próprios. Portanto, qualquer pessoa racional tem de aceitá-lo.

João — Talvez tenhas razão... Talvez seja verdade que, como agentes racionais, temos de agir apenas segundo máximas que possamos universalizar. No entanto, este princípio parece-me vazio, uma pura formalidade sem as implicações práticas que Kant pretendia. Não serve, por exemplo, para resolver conflitos entre deveres.

Maria — Como assim?

João — Imagina que um amigo teu está a fugir de um assassino e pede para se esconder em tua casa. Atrás dele vem o assassino e pergunta-te se essa pessoa se escondeu em tua casa. Segundo Kant, devo dizer a verdade em todas as circunstâncias, uma vez que os nossos deveres são categóricos, ou seja absolutos e incondicionais. Mas também temos o dever de ajudar um amigo em necessidade, porque não posso querer consistentemente que toda a gente deixe de ajudar os amigos em necessidade (isso não só me impediria de poder ajudar os meus amigos, como também me deixaria privado de toda a chance de obter ajuda quando precisasse). O que devo fazer nesta situação?

Francisca — O problema é esse, para encontrar um princípio absoluto e universal, Kant parece ter-se esquecido das circunstâncias concretas em que nos encontramos quando agimos. A mim parece-me claro que, neste caso, o mais correcto seria mentir e afastar o assassino do nosso amigo.

Maria — Mas repara que se toda a gente andasse para aí a mentir, a mentira deixaria de fazer sentido, porque toda as pessoas deixariam de acreditar umas nas outras.

Francisca — Acho que existe aqui outro problema!

Maria — Que queres dizer?

Francisca — Suponhamos que estou disposta a aceitar que só devemos executar as acções que tenham origem em máximas que possamos querer ver transformadas em leis universais.

Maria — Sim, é esse tipo de comportamento que Kant espera de agentes morais, racionais.

Francisca — Pois bem, um sado-masoquista poderia querer que a máxima “maltrata o próximo” se transformasse numa lei universal. E, no entanto, esta máxima vai contra aquilo que intuitivamente achamos correcto.

Maria — Hum... Acho que Kant responderia a isso dizendo simplesmente que o sado-masoquista não está a ser um agente moral, racional, dado que se está a deixar guiar por um gosto (ou inclinação) pessoal e subjectivo, em vez de agir por dever.

João — Bem, acho que podemos admitir que o imperativo categórico nos impede de mentir a torto e a direito e de maltratar o próximo. Mas, ainda assim, continuo a achar que a ética kantiana é vazia...

Maria — Como assim?

João — É vazia de emoções. Como podem emoções como a compaixão, a simpatia e o remorso não ter nada a ver com a moral?!

Maria — Estás-te a referir àquela passagem em que Kant nos fala de uma pessoa que seja de tal modo compassiva, que sem nenhum tipo de interesse ou vaidade, se alegra ao espalhar a alegria à sua volta, agindo deste modo não por puro dever mas por inclinação, certo?

João — Sim. Não me conformo com isso, acho que o papel que Kant atribui às emoções assume contornos pouco humanos.

Francisca — E por falar em humanos... O lugar que Kant atribui aos animais não-humanos na sua ética é simplesmente vergonhoso.

Maria — Que queres dizer?

Francisca — Kant apresenta outra formulação do imperativo categórico, que nos diz: age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim em si e nunca apenas como um meio.

Maria — Sim, mas isso só vem salientar o valor intrínseco que temos enquanto seres racionais, a dignidade humana.

Francisca — Pois, o problema é que, além disso, Kant diz coisas como “no que diz respeito aos animais, não temos deveres directos. Os animais [...] existem apenas como meios para um fim. Esse fim é o homem”.

João — Que horror!

Francisca — Nesse aspecto, o utilitarismo veio finalmente propor uma teoria ética que coloca animais humanos e não-humanos na mesma categoria moral. E ainda há mais, o tratamento que Kant prevê na sua ética para os criminosos é desumano.

João — Como assim?

Francisca — A sua teoria é retributivista.

João — O que quer isso dizer?

Francisca — É tipo “Olho por olho, dente por dente”: o crime deve ser pago na mesma moeda, o que quer dizer que nos casos de homicídio Kant era a favor da pena de morte.

João — E o que aconteceu ao “trata a humanidade sempre como um fim em si mesma”?

Maria — Calma. Kant explica isso da seguinte maneira: segundo o imperativo categórico, quando decidimos correctamente o que fazer, é porque podemos querer que a máxima subjacente à nossa acção se converta em lei universal, ou seja, se alguém maltrata um ser humano é porque acha que essa é a forma como devemos tratar as pessoas, e por isso é assim que quer ser tratado.

Francisca — Bentham afirmou que “Toda a punição é danosa”. Isto porque punir implica sempre tratar mal as pessoas, e não devemos retribuir o mal feito com outro mal. O retributivismo leva-nos a aumentar, e não a diminuir, a quantidade de sofrimento no mundo.

Maria — E como defende o utilitarismo que devemos tratar os criminosos?

Francisca — Os criminosos não precisam de punição, mas de tratamento. Alguém que viola a lei, mostra não ter respeito pelas normas sociais, e torna-se potencialmente perigoso para a sociedade, por isso deve, antes de mais, ser detido. Mas enquanto está detido, deve ingressar num programa de reabilitação tendo em vista a sua reinserção na vida em sociedade.

Maria — Mas só estás a considerar os aspectos negativos da ética kantiana, não achas que também existem aspectos positivos?

Francisca — Eu acho que a ética kantiana está desactualizada. Não oferece quaisquer regras que permitam orientar-nos na prática. Além disso dá demasiada importância à intenção, e no dia-a-dia lidamos sobretudo com as consequências das nossas acções. Isto significa que idiotas bem-intencionados que acabem, involuntariamente por causar várias mortes em consequência da sua incompetência, podem ser moralmente inocentes à luz da teoria de Kant.

Maria — Isso explica-se porque as consequências das nossas acções escapam muitas vezes ao nosso controlo e, para Kant, dever implica poder, ou seja, só somos responsáveis por aquilo que podemos controlar.

João — Sim, nesse ponto estou de acordo com Kant... mas espera aí! Perguntavas há pouco se não existiriam aspectos positivos na ética kantiana, gostava que me falasses um pouco mais sobre eles.

Maria — Gostaria de destacar essencialmente dois aspectos: a autonomia e a universalizabilidade. O primeiro prende-se com o facto de procurar o fundamento da moral em nós próprios, em particular, na nossa capacidade racional. Quer concordemos na totalidade com a teoria kantiana quer não, temos de reconhecer que os juízos morais têm de se apoiar em boas razões.

João — Que queres dizer?

Maria — Repara, um juízo moral é diferente da expressão de um gosto pessoal.

João — O.K., entendo isso, mas gostava que explicasses melhor.

Maria — Então é assim: se alguém diz “Eu gosto de chocolate”, não necessita de apresentar razões para isso, está apenas a declarar um facto sobre si mesmo, nada mais.

João — Sim, continua...

Maria — Agora suponhamos que alguém diz que eu devo fazer isto ou aquilo (ou que fazer aquilo seria errado). Pode-se legitimamente perguntar por que motivo se deve fazê-lo (ou por que razão seria errado fazê-lo), e se a pessoa não nos puder dar qualquer boa razão podemos rejeitar o conselho como arbitrário ou infundado.

João — Muito bem, já percebi. E em relação ao segundo aspecto, a universali....

Maria — A universalizabilidade. Como vimos, Kant pensava que, para que uma acção fosse moral, a máxima subjacente teria de ser universalizável. Teria de ser uma máxima que se aplicaria de igual modo a todas as pessoas. Este requisito é o garante da imparcialidade exigida por toda e qualquer norma moral. E, aliás, a igualdade de todos os cidadãos face à lei é um pressuposto básico de todas as sociedades democráticas do mundo contemporâneo.

João — Por falar nisso, como achas que se passa do plano moral ao plano legal?

Francisca — Pessoal, já viram as horas? Acho que esta conversa vai ter de esperar ou perdemos a camioneta.

João — Tens razão vamos embora. Até amanhã, Maria!

Maria — Até amanhã.

Luís Veríssimo

Questões de revisão

  1. O que nos diz a 1ª fórmula do Imperativo Categórico de Kant?
  2. Explica em que consiste a terceira objecção à ética kantiana apresentada no texto?
  3. Para Kant em que consiste a dignidade humana?
  4. Qual a diferença entre a posição de Kant e do utilitarismo, em relação aos animais não-humanos?
  5. Em que consiste o retributivismo?
  6. De que forma Kant justifica o retributivismo da sua teoria ética?
  7. Explica em que consiste a objecção dos idiotas bem intencionados.
  8. Explica em que consistem os principais contributos da reflexão moral de Kant.

Questões para discussão

  1. “Faz promessas com a intenção de as quebrares, se isso for necessário para salvar um amigo.” Consideras esta máxima aceitável? Porquê?
  2. Uma das personagens sugere que o Imperativo Categórico é uma pura formalidade. Concordas? Porquê?

Bibliografia

  1. Almeida, Aires e Murcho, Desidério (et. al.), A Arte de Pensar: Filosofia 10º ano, Lisboa, Plátano Editora, 2005, 1ª edição.
  2. Rachels, James, Elementos de Filosofia Moral, Lisboa, Gradiva, 2003.
  3. Warburton, Nigel, Elementos Básicos de Filosofia, Lisboa, Gradiva, 1998, 1ª edição.
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ISSN 1749-8457