Desde a década de oitenta que o professor de filosofia Aleksandr Dugin acredita que o destino manifesto da Rússia é um poder cristão ortodoxo e imperial inteiramente diferente do liberalismo ocidental, e completamente na sua contramão. Em pessoa, o rosto estriado e barbudo de Dugin e a sua fogosa autoconfiança, fazem dele uma encarnação moderna de um starets, ou homem sagrado, de um romance de Tolstoi. Contudo, o seu dogmatismo apaixonado — disparando longas citações de Martin Heidegger e de Karl Haushofer, de dedo espetado no peito do interlocutor — é também muito característico da confusão da intelligentsia soviética recente entre informação e conhecimento, factos e verdade. Como muitos pensadores da sua geração, Dugin disfarça um fanatismo e autoconfiança implacáveis com as roupagens do debate intelectual.
A carreira de Dugin é um espelho do percurso ideológico do seu país, que passou do caos intelectual dos últimos dias do império soviético ao revanchismo agressivo da era mais recente de Putin. Filósofo académico de formação, Dugin tornou-se um dissidente anticomunista na década de oitenta. Ao contrário de muitos dissidentes, contudo, rejeitava a ideia de que a Rússia deveria tornar-se uma democracia liberal ao estilo ocidental. Ao invés, advogava a visão de um nacionalismo étnico russo, misturado com uma religiosidade mística, tornando-se o fundamento do seu próprio tipo especial de fascismo russo. Em 1988, Dugin fundou um grupo político ultranacionalista e anti-semita, chamado Pamyat (“Memória”), que postulava que o sagrado Império Russo, estabelecido por Deus, fora sequestrado, comprometido e, em última análise, destruído pelos judeus bolcheviques sem Deus. Na febril mistela ideológica da política pós-soviética, o anti-semitismo aberto de Dugin não o impediu de ajudar a escrever o programa político do recém-reformado Partido Comunista da Federação Russa.
Em 1993, Dugin persuadiu o escritor radical Eduard Limonov a juntar-se a um novo movimento mais activamente revolucionário, a que chamaram “Frente Bolchevique Nacional” (FBN). O símbolo da FBN era uma foice e martelo de cor preta, inscritas num círculo branco, contra um fundo vermelho — a nova suástica do fascismo russo. Quatro anos depois, Dugin publicou dois tratados cruciais. Um foi o Fundamentos de Geopolítica (o título é uma piscadela de olhos a Klaus Haushofer, um pensador nazi euro-asiaticista), que foi depois adoptado como manual na Academia do Generalato das forças armadas russas.1 O outro foi o Fascismo: Sem Fronteiras e Vermelho, que, não tão oficialmente, iria tornar-se o modelo ideológico da fase final do putinismo. Dugin descreveu a Rússia em transição de uma forma de capitalismo liberal ocidental e corrupta para uma forma de “capitalismo nacional”, que por seu turno iria transformar-se num “genuíno, verdadeiro, radicalmente revolucionário e consistente, fascismo fascista”, na Rússia.2
Na visão de Dugin, “o fascismo russo é uma combinação de conservadorismo nacional natural e um desejo apaixonado por verdadeiras mudanças”.
Sem a corrupção imposta pelos liberais ocidentais, a Rússia poderia dedicar-se ao seu verdadeiro destino imperial. “Nós, os conservadores, queremos um estado forte e sólido, queremos ordem e uma família saudável, valores positivos, o reforço da importância da religião e da igreja na sociedade”, escreveu Dugin em 2012, altura em que trabalhava já com o Kremlin. “Queremos uma rádio e televisão patrióticas, queremos especialistas patrióticos, clubes patrióticos. Queremos meios de comunicação que exprimam interesses nacionais”.3 Também invectivava contra a Internet — “um fenómeno que vale a pena proibir, porque não traz seja o que for de bom seja para quem for” — e apelou a “todos os russos ortodoxos […] para se unirem em torno do presidente da Rússia, na última batalha entre o bem e o mal, seguindo o exemplo do Irão e da Coreia do Norte”.4
Dugin idealizava Putin pessoalmente, apesar de se opor às políticas económicas liberais dos tecnocratas do Kremlin que o rodeavam. “Putin está em todo o lado, é tudo, é absoluto e é indispensável”, disse-me Dugin em 2007.5 Antes de inícios de 2012, contudo, e como os outros membros bolcheviques nacionalistas, Dugin considerava que fazia parte da oposição nacionalista radical ao Kremlin. Porém, quando os protestos generalizados abalaram Moscovo e São Petersburgo, na sequência do regresso de Putin para um terceiro termo na presidência, o principal ideólogo do Kremlin, Vladislav Surkov, decidiu que a retórica fervorosa de Dugin deveria passar a desempenhar um papel útil no novo coro ideológico de Putin. Em Fevereiro de 2012, Dugin foi convidado para fazer uma comunicação num comício “antilaranja”6 orquestrado por Surkov, para se opor aos protestos pró-ocidente.
“O império americano global esforça-se por pôr todos os países do mundo sob o seu controlo”, disse Dugin às multidões pró-Kremlin em 2012, que incluíam muitos dos antigos membros do movimento de Surkov, Nachy.
Eles chegam pela quinta coluna, que pensam que lhes permite tomar para si os recursos naturais e ser senhores de países, povos e continentes. Invadiram o Afeganistão, o Iraque, a Líbia. A Síria e o Irão estão nos planos. Mas o objetivo deles é a Rússia. Nós somos o último obstáculo que se atravessa no seu caminho para construir um império global do mal. Os seus agentes na Praça Bolotnaya [de Moscovo] e no governo estão fazendo tudo para enfraquecer a Rússia e permitir-lhes pôr-nos totalmente sob controlo externo. Para resistir a esta ameaça muito séria, temos de ficar unidos e de estar mobilizados! É preciso não esquecer que somos russos! Que durante milhares de anos protegemos a nossa liberdade e independência. Derramámos mares de sangue, o nosso e o de outros povos, para tornar a Rússia grande. E a Rússia será grande! Ou então não existirá. A Rússia é tudo! Tudo o mais é nada!7
Todas as afirmações que na boca de Dugin pareciam tão radicais em 2012, seriam adotadas em 2021 — mesmo palavra por palavra — pelo próprio Putin.
Em inícios de 2014, Dugin estava profundamente envolvido em política prática, e estava ainda, em grande parte, fora do controlo do Kremlin. O seu maior projeto era levar as suas políticas radicais para os círculos pró-Moscovo da Ucrânia. Oleg Bahtiyarov, um dos membros do movimento “União Juvenil Eurasiática da Rússia”, fundado por Dugin, foi preso pelo Serviços de Segurança da Ucrânia (SBU) em março de 2014, por treinar um grupo anti-Maidan de duzentos membros que planeava tomar o Rada e outros edifícios do governo em Kiev. Chamadas de Skype intercetadas pelo SBU mostravam que Dugin dava instruções aos separatistas do sul e leste da Ucrânia. Dugin não estava ainda em completa sintonia ideológica com o Kremlin. Em julho de 2014, juntou-se a Igor Girkin nas críticas amargas a Putin, por não apoiar os separatistas de Donbas, quando estes recuaram perante os ataques do exército ucraniano regular. Segundo Dugin, o Kremlin fora impedido de levar a cabo uma invasão completa de Donbas por um grupo a que chamou “sexta coluna” — oficiais que rodeavam Putin e que fingiam lealdade, mas que eram de facto “a mesma ralé norte-americana” dos ativistas da oposição, abertamente traidores e pró-americanos: a “quinta coluna”.8,9 Em 2020, Vladislav Surkov — o homem que trouxe Dugin para a corrente dominante da política — deu efetivamente consigo acusado de ser um destes traidores secretos.
Em agosto de 2022, Dugin pagou um preço trágico pelo papel que desempenhou para pôr Rússia em guerra, quando um carro armadilhado lhe matou a única filha, Daria Dugina, que tinha trinta anos. Dugin e a televisão russa culparam o SBU, descrevendo Daria como uma “mártir” que “morrera pela Rússia”.10 Os ucranianos afirmaram que o ataque foi uma operação do SFS a fingir-se do SBU. Mas ninguém teve dúvidas de que Daria pagara com a vida pelas ideias do pai.