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4 de Setembro de 2016   Filosofia

O que é uma pergunta filosófica?

Michael Dummett
Tradução de José Gusmão

Sobre o que é, então, a filosofia? Para Quine e alguns outros filósofos americanos contemporâneos, a filosofia é simplesmente a parte mais abstracta da ciência. Não faz, de facto, qualquer observação nem conduz quaisquer experiências próprias; mas pode, e deve, incorporar as descobertas das ciências para construir uma teoria naturalizada do conhecimento e da mente. Propriamente falando, pois, deve ser classificada com as ciências naturais.

Wittgenstein era da opinião exactamente oposta. Para ele, a filosofia encontra-se em completo contraste com a ciência: os seus métodos divergem completamente dos da ciência e o seu objectivo diverge em igual grau. Provavelmente a maior parte dos filósofos activos de hoje concordaria com isto e acrescentaria que os resultados da filosofia divergem totalmente dos da ciência. Wittgenstein era mais radical. Ele não pensava que a filosofia tem quaisquer resultados, na forma de proposições enunciáveis que se descobriu serem verdadeiras; a filosofia meramente lança luz naquilo que já conhecemos de outras fontes, permitindo-nos vê-lo com olhos que não estejam enevoados por confusão intelectual.

A melhor maneira de resolver esta disputa, e dizer sobre o que é a filosofia e por que meios procede, é considerar uma amostra de um problema filosófico. Pelas razões explicadas no capítulo anterior, só a partir do século XIX começou a fazer sentido pedir um exemplo de problema filosófico que fosse diferente de outros tipos de problemas; mesmo hoje é fácil haver disputas sobre se um problema é genuinamente filosófico ou não. Mas há casos paradigmáticos de problemas que toda a gente pode concordar que são filosóficos por natureza. Um seria este: O tempo realmente passa? Há quem diga que evidentemente o faz: o mundo muda quando ocorrem novos eventos; estes eventos anteriormente permaneciam no futuro e vão, no tempo devido, acabar e retroceder para o passado. Mas outros negam que o tempo passe neste sentido. Existem relações temporais entre eventos – certos eventos temporalmente precedem outros – mas isto é tudo o que o tempo é: uma dimensão em que os eventos têm diferentes localizações.

Este é claramente um desacordo filosófico. É de facto, um desacordo metafísico: é sobre a natureza, não da mente ou do comportamento humanos, mas da realidade externa. Face a esse desacordo, como deve um filósofo proceder? Pode começar por perguntar aos defensores da passagem do tempo para clarificar a sua tese. O que pensam eles que existe, pode ele perguntar. Uns podem responder que o que ainda não é não existe, e que o que deixou de ser também não existe: tudo o que existe é o que existe agora. Significa isto, pergunta ele então, que as asserções sobre o que vai acontecer ou sobre como as coisas anteriormente eram não são verdadeiras nem falsas? Porque, insiste o filósofo, uma asserção só pode ser verdadeira se houver algo em virtude do qual seja verdadeira: portanto, se tudo o que é, é o que existe agora, nenhuma asserção sobre o futuro ou sobre o passado pode ser verdadeira. Talvez haja quem concorde entusiasticamente. A realidade, dirá essa pessoa, está em constante mudança. As únicas asserções verdadeiras são as que representam a realidade como é, ou seja, como é agora; não pode haver verdades sobre o que vai ser ou sobre o que foi.

Outros crentes na passagem do tempo podem dar uma resposta mais moderada. Podem insistir que o filósofo se está a esquecer que o verbo “ser” tem modos temporais. Se nos perguntam o que é, no modo presente, a resposta deve restringir-se ao momento presente; mas também há respostas às perguntas sobre o que será e sobre o que já foi. O princípio de que uma asserção só pode ser verdadeira se existir algo em virtude do qual é verdadeira não dá conta da natureza flectida do verbo “ser”: uma asserção só deve ser verdadeira “se há, vai haver, ou houve algo em virtude do qual é verdadeira”. O que diferencia, então, esta posição de quem nega a passagem do tempo?, pergunta o filósofo. Essas pessoas não incluem na sua descrição da realidade um facto essencial, respondem-lhe, nomeadamente, que certos eventos ordenados numa sequência temporal estão a ocorrer agora.

O céptico responde que a pergunta “Que evento está a acontecer agora?” pergunta meramente que evento é simultâneo com o acto de fazer a pergunta, que é ele próprio outro evento. Não, responde o seu oponente. Quando uma experiência dolorosa cessa e eu exclamo, “Graças a Deus que isto acabou”, não estou a regozijar-me por uma mera relação de precedência temporal, afirma, pois eu já sabia antecipadamente que diria “Graças a Deus que isto acabou” e que di-lo-ia só depois de a experiência ter chegado ao fim. Tudo o que isto significa, responde o oponente da passagem do tempo, é que o teu sentimento de alívio seguiu-se, em vez de preceder, o fim da experiência dolorosa; é ainda apenas uma questão de sequência temporal.

Quem acredita na passagem do tempo pode agora objectar que o seu oponente está a espacializar o tempo, tratando-o como apenas mais uma dimensão a acrescentar às três do espaço. Isso, afirma, elimina o tempo, já que não permite a realidade da mudança, que é a essência do tempo. O seu oponente responde que reconhece a mudança: existe mudança quando uma proposição verdadeira é convertida numa falsa substituindo uma especificação temporal ocorrente nela por uma diferente. “É precisamente isso que estou a dizer”, exclama talvez o defensor da passagem do tempo: “poderias definir “mudança espacial” substituindo “especificação de lugar” por “especificação temporal”; mas do facto de haver relva neste lugar e nenhuma a um quilómetro de distância não implica que alguma mudança ocorreu ou está a ocorrer”. “Isso é contrário à maneira como falamos”, pode-se responder: dizemos coisas como “O terreno muda a leste do local”. “Só porque nos imaginamos a viajar nessa direcção”, responde o outro.

Não precisamos de ir mais longe no debate desta disputa bem conhecida; levada só até aqui ilustra adequadamente o carácter da discussão filosófica. A disputa certamente diz respeito à realidade: segundo a posição adoptada, iremos conceber o mundo de uma maneira ou de outra. Mas o assunto não pode ser resolvido por meios empíricos: as teorias científicas podem ter importância – por exemplo, é relevante que, segundo a relatividade especial, a simultaneidade seja relativa a um sistema de referência. Mas a ciência não pode resolver a questão: nenhuma observação pode estabelecer que um dos lados ou o outro está certo. Um filósofo vai procurar mostrar que um dos lados está certo ou errado, talvez com alguma clarificação dos dois lados, ou então dissolver a disputa mostrando que ambos são vítimas de alguma confusão conceptual. A filosofia, de facto, está preocupada com a realidade, mas não para descobrir novos factos sobre ela: procura melhorar o nosso entendimento do que já sabemos. Não procura observar mais, mas clarificar a visão do que já vemos. O seu objectivo é, na expressão de Wittgenstein, ajudar-nos a ver o mundo correctamente.

Quer o filósofo declare ter resolvido um problema quer declare tê-lo dissolvido como um pseudoproblema, procederá por argumentação racional. A filosofia partilha com a matemática a peculiaridade de não apelar a novas fontes de investigação, mas repousa somente em raciocínios que tenham por base o que já sabemos. Difere da matemática na medida em que prefere territórios obscuros. Os matemáticos já se têm às vezes envolvido em análise conceptual, procurando definições de conceitos como equivalência numérica, continuidade e dimensão. Mas os seus objectivos divergem dos dos filósofos. Pouco se preocupam se as definições a que chegam captam o conceito como nós implicitamente o entendemos na vida quotidiana: estão apenas preocupados em formular um conceito preciso de maneira a que se possa razoavelmente dizer que abrange determinadamente todos os casos ou não. Tendo-o feito, a sua argumentação procederá dentro dos limites das definições adoptadas. O raciocínio do filósofo ocorre na base do nosso entendimento implícito prévio; apela a esse entendimento e logo não é executado, como o do matemático, num enquadramento de conceitos previamente delimitados.

Assim, o único recurso do filósofo é a análise dos conceitos que já tem, mas sobre o qual está confuso; procura remover essa confusão. Se procura fazer isso por meio de uma análise das expressões da nossa linguagem ou por qualquer outro meio, depende da sua metodologia filosófica; as diferenças metodológicas podem ser profundas, mas o objectivo é o mesmo. Na amostra de disputa filosófica que examinámos, o filósofo não pode argumentar a partir da apreensão da sucessão temporal que pode ser atribuída a uma criança. A questão que estava em disputa só pode surgir para um adulto para quem as nossas maneiras de falar sobre o tempo sejam conhecidas. É pois estéril perguntar se a filosofia é sobre a realidade, sobre os conceitos em termos dos quais pensamos a realidade, ou sobre os meios linguísticos que usamos para expressar esses conceitos. É sobre a realidade ao procurar clarificar os conceitos em termos dos quais a concebemos e, logo, as expressões linguísticas por meio da qual formulamos a nossa concepção.

Michael Dummett
The Nature and Future of Philosophy (Columbia University Press, 2010), cap. 2, pp. 7–11. Revisão da tradução de Desidério Murcho.
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ISSN 1749-8457