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Crítica
9 de Março de 2006   Epistemologia

“Evidence”

Desidério Murcho

A palavra inglesa “evidence”, tal como é usada nos contextos filosóficos e não só, esconde subtilezas que dificultam a leitura e a tradução de estudantes e professores, assim como do grande público. Em diferentes contextos, pode-se traduzir “evidence” igualmente bem por “provas”, “dados”, “indícios” ou “informação”. Mas a ideia subjacente é sempre a mesma: as provas a favor de algo são as razões que justificam a crença nisso. Nestes contextos, usa-se o termo “prova” no seu sentido não factivo; isto é, ao contrário de uma demonstração, que é efectivamente uma prova definitiva, as provas são derrotáveis.

Diz-se que um termo é factivo quando o que o termo qualifica é verdade. Por exemplo, o termo “saber” é factivo, tal como o termo “ver”, porque “O João sabe que Sócrates era grego” implica que Sócrates era grego, e “O João viu a Maria na praia” implica que a Maria estava na praia. Um termo é não factivo quando não existe esta implicação. O termo “acredita”, tal como “talvez” e “aparente”, é não factivo porque “O João acredita que Kant era grego” não implica que Kant era grego, nem implica que não o era — tal como dizer “Talvez Kant fosse grego” (ou “Aparentemente, Kant era grego”) não implica igualmente que Kant era grego. Também há termos contrafactivos: são termos como “falsa”, ou “ilusório”, que implicam a negação da expressão que qualificam. Por exemplo, uma falsa vitória, ou uma vitória ilusória, não é, de todo em todo, uma vitória.

O termo “prova” é não factivo: do facto de existir uma prova a favor de algo não se segue que isso é verdade. Por exemplo, temos hoje muitas provas a favor da ideia de que a teoria da evolução de Darwin é verdadeira; mas daqui não se segue que a teoria seja realmente verdadeira — novas provas poderão surgir que refutem a teoria. A consciência profunda de que as provas não são factivas é uma das características que distingue a ciência, ou qualquer actividade académica séria, da religião — ou, pelo menos, das manifestações menos sensatas da religião. Pois geralmente a religião encara as suas provas, baseadas na autoridade e na tradição, como factivas (declará-las sagradas é uma forma de evitar que tais provas sejam criticamente avaliadas, para assim se manter a ilusão de que se trata de provas factivas).

As demonstrações da matemática e da lógica são provas factivas: se um dado teorema está demonstrado, então é realmente uma verdade matemática ou lógica. A única maneira de refutar a sua verdade é mostrar que houve um erro na pretensa demonstração (cá está: “pretensa” é um termo não factivo), que afinal não demonstra coisa alguma porque estava pura e simplesmente errada.

À excepção das demonstrações da matemática e da lógica, contudo, as provas não são factivas. Não é preciso mostrar que houve um erro numa dada prova a favor de X para mostrar que X é falso; basta que existam novas provas, mais poderosas, a favor da falsidade de X. Por exemplo, uma impressão digital de João na arma do crime é uma prova a favor da ideia de que João foi o assassino. Mas outras provas poderão surgir que mostrem que foi Fonseca o assassino, ainda que João tenha efectivamente mexido na arma do crime. Assim, para refutar o que uma prova não matemática afirma não é preciso refutar a própria prova; mas para refutar o que uma demonstração matemática afirma é preciso refutar a própria demonstração.

A noção de prova é central em grande parte da epistemologia contemporânea. O verificacionismo do positivismo lógico foi uma tentativa de dar proeminência às provas de carácter observacional, por se julgar de algum modo que isso é mais “científico” do que a argumentação. Contudo, não se desejava apenas que a verificação fosse uma prova como qualquer outra, mas antes uma espécie de prova factiva, semelhante às demonstrações em lógica e matemática. E foi precisamente esse aspecto do verificacionismo que falhou totalmente. As provas de carácter observacional não são factivas. Por mais provada que esteja uma teoria empírica, ela pode sempre ser refutada por outras observações, ainda que não se refutem tais provas; e perante o mesmo corpo de provas observacionais, é sempre possível construir várias teorias incompatíveis entre si, mas compatíveis com tais observações.

Infelizmente, a palavra inglesa “evidence” é fonética e ortograficamente parecida com “evidência” — de modo que as traduções enganadoras não se fizeram esperar. Ainda que um dos significados da palavra portuguesa “evidência” seja o mesmo que “prova”, o termo raramente ou nunca é usado correntemente nesse sentido, e é muitíssimo usado no outro. De forma que o uso de “evidência” no sentido de “prova”, sem quaisquer explicações, é didáctica e pragmaticamente errado pois confunde gravemente as coisas — o sentido primário será aquele que, desavisado, o estudante terá em mente. Primariamente, uma evidência é algo que é evidente; as evidências são as coisas óbvias ou evidentes. Por exemplo, é evidente que a neve é branca, mas não é evidente que a Terra está em movimento; contudo, há provas de que a Terra está em movimento. Nos casos de provas directas observacionais, como olhar e ver que a Maria está com um vestido verde, há provas evidentes: a prova evidente de que a Maria está com um vestido verde é que eu olho e vejo isso imediatamente. Isto significa apenas que a prova de que a Maria tem um vestido verde é o facto óbvio de alguém olhar e ver. O que não acontece com a prova de que a Terra está em movimento, a prova da composição da atmosfera de Júpiter ou a prova de tribunal de que uma dada pessoa roubou outra.

Evidentemente, há muitas complexidades filosóficas no que respeita tanto às provas como às evidências. Contudo, sem uma compreensão clara dos aspectos gerais e consensuais das provas e das evidências, não será possível compreender as discussões especializadas desta área. E, pior, sem uma compreensão clara dos aspectos gerais das provas e das evidências, não se pode ter uma vida intelectual adequadamente estruturada. Isto para não falar na importância que estas noções têm para uma vida pública saudável, que é demasiadas vezes manipulada em desfavor da procura imparcial da verdade — precisamente porque não se compreende a noção de prova e dificilmente se dá valor ao que não se compreende.

Desidério Murcho

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ISSN 1749-8457