John Stuart Mill explica assim, em Sobre a Liberdade (Edições 70, no prelo), o princípio do dano:
“É o princípio de que o único fim para o qual as pessoas têm justificação, individual ou colectivamente, em interferir na liberdade de acção de outro, é a autoprotecção. É o princípio de que o único fim em função do qual o poder pode ser correctamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é o de prevenir dano a outros. O seu próprio bem, quer físico, quer moral, não é justificação suficiente. Uma pessoa não pode correctamente ser forçada a fazer ou a deixar de fazer algo porque será melhor para ela que o faça, porque a fará feliz, ou porque, na opinião de outros, fazê-lo seria sábio, ou até correcto. Estas são boas razões para a criticar, para debater com ela, para a persuadir, ou para a exortar, mas não para a forçar, ou para lhe causar algum mal caso ela aja de outro modo. Para justificar tal coisa, é necessário que se preveja que a conduta de que se deseja demovê-la cause um mal a outra pessoa”.
Se aceitamos o princípio do dano, então o que é importante é discutir se o casamento entre homossexuais ou a adopção por parte de homossexuais causam dano a alguém.
Parecem ser usados fundamentalmente dois argumentos contra a legalização do casamento entre homossexuais, que serão discutidos de seguida. Será também mencionado um terceiro argumento que, embora não seja usado frequentemente, é importante analisar, pois ajuda-nos a entender que conclusões podemos retirar — e que conclusões não podemos retirar — da defesa da legalização.
É preciso notar que nem todas as coisas que são imorais devem ser proibidas por lei (faltar a um encontro com um amigo e não avisar por preguiça é imoral, mas não deve ser proibido por lei); logo, mesmo que a homossexualidade fosse imoral, isso não seria suficiente para proibir as relações homossexuais ou para deixar de legalizar os casamentos entre homossexuais. Se aceitamos o princípio do dano, então o que nos interessa é saber se a legalização dos casamentos entre homossexuais causaria dano a alguém. Discutir-se-á na próxima secção, “O Princípio do Dano e a Instituição do Casamento”, se a legalização causaria dano a alguém.
Note-se, entretanto, uma linha de argumentação bastante estranha, mas comum: há quem argumente que os casamentos entre homossexuais não devem ser legalizados, porque a homossexualidade é imoral, mas ao mesmo tempo não ache que os comportamentos homossexuais em si devam ser proibidos, porque dizem apenas respeito aos próprios! Como se vê, a argumentação aqui é algo confusa. Pensemos nisto:
Pode-se assim ver que esta linha de argumentação não é apenas estranha: é inconsistente. E parece ter por trás uma atitude algo hipócrita: não devemos interferir com as relações homossexuais existentes (desde que sejam secretas, presumivelmente), mas também não devemos oficializá-las legalmente, como sucede com as relações heterossexuais.
Este é um mau argumento porque, de modo a sermos coerentes, se não legalizássemos os casamentos entre homossexuais porque o casamento serve para procriar e os homossexuais não podem procriar, então deveríamos também proibir as pessoas estéreis de se casar. Mas não se deve proibir as pessoas estéreis de se casar. Logo, o simples facto de os homossexuais não poderem procriar não é uma boa razão para que sejam proibidos de se casar.
Segundo outra versão deste argumento, a legalização do casamento entre homossexuais constituiria um ataque à família. Este argumento, cujos contornos não são inteiramente claros, e que, além do mais, parece ter por detrás uma vontade da igreja católica de interferir ilegitimamente na vida de não crentes, parece partir do pressuposto dúbio de que legalizar os casamentos entre homossexuais constituiria um desincentivo à procriação e à formação de relações heterossexuais. Mas os homossexuais não se sentem atraídos por pessoas do sexo oposto, pelo que não legalizar o casamento entre homossexuais não os levará, certamente, a fazer algo que de outro modo não fariam. Dizer que a legalização do casamento entre homossexuais constitui um desincentivo à formação de relações heterossexuais é tão ridículo como dizer que dar gelado de chocolate às pessoas que adoram gelado de chocolate mas detestam patê constitui um desincentivo ao consumo de patê.
Será que as pessoas que se opõem à legalização do casamento entre homossexuais com base na ideia de que o casamento serve para procriar preferem que os homossexuais mantenham casamentos de fachada com heterossexuais apenas com o intuito de procriar? Presume-se que a resposta será “Não”. Por isso, não se vê em que medida a legalização do casamento entre homossexuais constituiria um desincentivo à procriação e à formação de relações heterossexuais e, consequentemente, um suposto ataque à família.
É provável que as pessoas que pensam que o casamento serve para procriar pensem também que o acto sexual serve para procriar. Não posso, por isso, também, deixar de recordar o merecidamente célebre poema de Natália Correia, que ridiculariza eximiamente a ideia de que o acto sexual serve para procriar:
“o acto sexual é para fazer filhos” — disse ele
um poema de Natália Correia
a João Morgado (CDS)
Já que o coito — diz Morgado —
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou — parca ração! —
uma vez. E se a função
faz o órgão — diz o ditado —
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.
De acordo com este argumento da encosta escorregadia (avançado ironicamente por João César das Neves em Maio de 2004, no Diário de Notícias), legalizar o casamento entre homossexuais levaria a que, um dia, se legalizasse os casamentos poligâmicos, incestuosos e os casamentos entre seres humanos e animais não-humanos. Passamos de seguida a analisar, à vez, as três supostas implicações de se legalizar o casamento entre homossexuais.
A forma mais comum de relação poligâmica é a poliginia, na qual um homem tem uma relação com várias mulheres. Há nas sociedades ocidentais uma certa desconfiança em relação à poligamia, porque tende a considerar-se, de um modo geral, que coloca as mulheres numa posição de subordinação em relação ao seu parceiro. No entanto, esta é apenas uma razão contingente para que não nos sintamos confortáveis com a legalização dos casamentos poligâmicos. É preciso salientar, em primeiro lugar, que são também conhecidos casos de mulheres que têm uma relação com vários homens (por exemplo: isso é prática comum na tribo Toda, na Índia); e, em segundo lugar, o facto de as mulheres que estão em relações poligâmicas serem por vezes postas numa posição de subordinação não significa, por si só, que as relações polígamas colidam com o princípio do dano. Não querer legalizar os casamentos poligâmicos só porque há certas relações poligâmicas que inferiorizam as mulheres seria o mesmo que querer proibir o consumo de álcool porque algumas pessoas abusam do álcool. Poderia argumentar-se que uma razão para não legalizar os casamentos poligâmicos seria a de que criar uma criança no seio de uma família polígama causa dano a essa criança, pelo que a legalização dos casamentos poligâmicos colidiria com o princípio do dano. Discordo do argumento por duas razões. Em primeiro lugar, como já se disse, é falso que o casamento sirva para procriar, pelo que as pessoas envolvidas numa relação polígama poderão nem sequer querer ter filhos; em segundo lugar, a ideia de que é mau para as crianças ser educadas no seio de uma família polígama parece um preconceito tão infundado como o de que é mau para as crianças ser educadas por um casal homossexual (como mais abaixo se argumentará). Logo, parece difícil avançar uma justificação para legalizar o casamento entre homossexuais que não leve também à legalização de casamentos poligâmicos.
Vejamos agora o caso das relações incestuosas (no sentido estrito de relações entre pessoas que partilham laços de consanguinidade). Para facilitar a discussão, podemos estabelecer uma distinção entre relações incestuosas homossexuais e relações incestuosas heterossexuais. Os casamentos incestuosos homossexuais devem ser legalizados com base nos mesmos argumentos que vão no sentido de legalizar os casamentos entre homossexuais, de um modo geral. Mas o caso das relações incestuosas heterossexuais entre indivíduos não estéreis é mais complicado. Isto porque, segundo alguns especialistas a taxa de mortalidade infantil de crianças nascidas de relações incestuosas é mais elevada do que a das outras, para além de que há um risco acrescido de terem certas doenças. A questão que agora surge é esta: será que ter um filho que resulte de uma relação incestuosa e que tenha, por isso, certos problemas de saúde, constitui dano para com esse filho? Isso está longe de ser óbvio, porque não é claro que a criança possa alegar que os seus pais lhe causaram dano ao trazê-la ao mundo. No entanto, uma coisa é certa: se tal constituísse dano, então uma criança que nascesse no seguimento de uma gravidez após os trinta e cinco anos, e que sofresse de problemas de saúde por causa disso, teria também motivo para alegar que a sua mãe lhe havia causado dano — o que parece contra-intuitivo. Já se vê que este não é um problema simples. Logo, embora o princípio do dano favoreça, à partida, a legalização de casamentos entre homossexuais, não é claro que favoreça a legalização de casamentos incestuosos heterossexuais entre indivíduos não estéreis. (Vale a pena acrescentar o seguinte: se defendêssemos a não legalização do casamento por causa deste risco acrescido para a saúde dos filhos nascidos dessa relação, então seria algo hipócrita não defender que essas relações deviam ser simplesmente proibidas — mas proibi-las parece algo excessivo.)
Em último lugar: os argumentos favoráveis à legalização de casamentos homossexuais não levam à legalização de casamentos entre seres humanos e animais não-humanos. Isto porque é impossível perguntar directamente a animais não-humanos se desejam casar-se com seres humanos, tal como é impossível perguntar a comatosos ou a deficientes mentais profundos se desejam casar-se com outras pessoas. Esta é a resposta séria à hipótese retoricamente avançada por César das Neves.
Em conclusão: se, de acordo com o princípio do dano, o ónus da prova está do lado de quem não quer que sejam legalizados os casamentos entre homossexuais, então basta rebater todos os argumentos contra a legalização do casamento entre homossexuais para sermos bem-sucedidos na defesa da legalização. Que foi o que se acabou de fazer (partindo do princípio de que não me escapou qualquer argumento importante).
Mas estará mesmo o ónus da prova do lado de quem não quer legalizar os casamentos entre homossexuais? Uma conversa com José Barros convenceu-me de que esta não é uma questão tão simples como parece à primeira vista.
Aceitar o princípio do dano parece favorável, à partida, à legalização do casamento entre homossexuais, e o ónus da prova parece estar do lado de quem se opõe à legalização. No entanto, José Barros chamou-me a atenção para o facto de que aceitar o princípio do dano parece forçar-nos a discordar da própria existência da instituição do casamento civil, nos moldes em que existe. José Barros argumenta que o casamento civil atribui aos casados vantagens injustificáveis face aos solteiros (por exemplo: os solteiros não gozam das mesmas deduções fiscais dos casados e não têm direito de preferência no caso de arrendamento).
Não me ocorreu inicialmente a linha de argumentação sugerida por José Barros porque estava habituado a pensar na decisão de casar simplesmente como uma escolha feita voluntariamente por adultos em posse das faculdades mentais comuns, e que, por isso, a ninguém mais diz respeito. Vejo agora que estava errado, porque o casamento, nos moldes em que agora existe, causa dano aos solteiros. Fornecer vantagens fiscais aos casados e dar-lhes direito de preferência no caso de arrendamento constitui dano para com os solteiros — constitui uma interferência ilegítima na sua vida, dado que não é motivada pelo objectivo de impedir a inflicção de dano a outrem.
Talvez dois exemplos ajudem a ilustrar melhor este aspecto. Imaginemos que dois casados e dois irmãos pretendem arrendar uma casa. Dar preferência aos dois casados em detrimento dos dois irmãos é moralmente tão repreensível como dar preferência a dois lisboetas em detrimento de dois portuenses. Imaginemos agora que o Sr. Joaquim gosta de pescar, e que parte dos impostos que o estado cobra ao Sr. António, que gosta de jogar basquetebol, são dados ao Sr. Joaquim, para que não lhe faltem canas de pesca, iscas, e todas as outras coisas necessárias para pescar. Fornecer vantagens fiscais aos casados em relação aos solteiros é moralmente tão repreensível como usar parte dos impostos do Sr. António para financiar as pescarias do Sr. Joaquim.
Se o leitor pensa que as duas analogias que apresentei não são pertinentes, é provável que esteja tacitamente a partir do princípio de que a vida de casado é moralmente superior à de solteiro, ou que as pessoas casadas se realizam mais do que as solteiras, pelo que os casados devem gozar de vantagens especiais. No entanto, eleger o estilo de vida de casado como digno de protecção e incentivo especial é moralmente tão arbitrário e repreensível como eleger o estilo de vida do Sr. Joaquim, o pescador, como mais digno de protecção e incentivo especial do que o estilo de vida do Sr. António, o basquetebolista.
Dado que a instituição do casamento, tal como está, colide com o princípio do dano, levanta-se agora um problema: devemos simplesmente defender uma abolição imediata da instituição do casamento, ou defender que, enquanto isso não aconteça, o casamento entre homossexuais deve ser legalizado? Antes de mais, é importante notar que aceitar o princípio do dano não nos dispensa de pensar sobre como deve ser aplicado — não há um algoritmo para o aplicar. José Barros salienta bem esse ponto, e dá um exemplo útil:
“Não basta a constatação de que o casamento civil, como instituição legal, viola o princípio do dano para que um liberal recuse aos homossexuais a possibilidade de se casarem pelo registo civil. Com efeito, mais importante para um liberal que a rejeição de políticas que atribuam vantagens a alguns membros da sociedade em detrimento de outros é o princípio de que todos os cidadãos são iguais à luz da lei. Exemplifiquemos: o estado decide construir estádios de futebol para a organização de um campeonato da Europa de futebol. Cabe às autarquias financiarem, através do dinheiro dos contribuintes, a construção dos estádios. Para tal, a câmara municipal X abre um concurso público destinado a escolher o empreiteiro que fará a obra. Mas o concurso é limitado a empreiteiros da zona, impedindo a câmara que empreiteiros doutras partes do país possam concorrer. Ora, o exemplo serve para constatar o seguinte: independentemente de um liberal se opor a que o dinheiro dos contribuintes sirva para construir estádios que, ainda por cima, virão a ser utilizados por entidades privadas, os clubes, é claro e notório que não poderá tolerar a discriminação feita pela câmara no acesso ao concurso público, porque tal viola o princípio da igualdade, segundo o qual todos os cidadãos são iguais perante a lei e ninguém pode ser alvo de discriminações arbitrárias. Com efeito, se assim não fosse, o liberal permitiria a ocorrência das maiores discriminações só pelo facto de não concordar com as políticas em relação às quais tal discriminação ocorreria”.
Estou de acordo com José Barros. Ainda que a instituição do casamento, nos moldes em que existe, cause dano aos solteiros, enquanto não for possível aboli-la por completo (ou modificá-la de modo a que deixe de colidir com o princípio do dano), deve-se legalizar o casamento entre homossexuais, para garantir a igualdade dos heterossexuais e dos homossexuais perante a lei. Penso que o mal decorrente de não tratar os homossexuais e os heterossexuais de modo igual perante a lei é moralmente pior do que o dano causado aos solteiros através das vantagens fiscais e da preferência no arrendamento concedida aos casados. Penso, por isso, que, neste caso, a preocupação com a igualdade se deve sobrepor à vontade de prevenir dano a terceiros.
Ao discutir este assunto com José Barros, ocorreu-me que, se isso é verdade, então talvez tenhamos aqui um possível contra-exemplo ao princípio do dano. Recordemo-nos de que, de acordo com o princípio do dano, só é legítimo interferir na liberdade individual para evitar dano a outros. No entanto, neste caso parece legítimo causar dano por outra razão: para assegurar a igualdade dos cidadãos perante a lei. Esta linha de argumentação, se fosse mais exaustivamente desenvolvida, talvez pudesse vir a constituir uma objecção de peso ao princípio do dano. Mas fazê-lo está para lá do âmbito deste artigo.
Podemos resumir do seguinte modo a linha de argumentação mais comum contra a adopção por parte de homossexuais:
Ainda que os casamentos entre homossexuais devam ser legalizados, porque a intimidade das pessoas só a elas diz respeito, não lhes deve ser permitido adoptar crianças, porque:
Passamos agora a analisar estes argumentos à vez.
Este é um mau argumento por duas razões. Em primeiro lugar, parece falso que o facto de ter pais homossexuais possa levar uma criança a tornar-se homossexual. Afinal, a maior parte dos homossexuais são filhos de casais heterossexuais, mas não se tornaram por isso heterossexuais. Que razão temos, então, para pensar que o facto de crianças heterossexuais serem educadas por casais homossexuais as levaria a tornar-se homossexuais?
Em segundo lugar, suponhamos que, contra todas as aparências, por mais improvável que pareça, serem educadas por um casal homossexual leva as crianças a tornar-se homossexuais. E daí? Ser educada por um casal rabugento, ou que goste de música pimba, pode levar uma a criança a tornar-se rabugenta ou a gostar de música pimba. Será essa uma razão para impedir que pessoas rabugentas ou que gostem de música pimba adoptem crianças? É óbvio que não. Do mesmo modo, mesmo que ser educada por um casal homossexual levasse a que uma criança se tornasse homossexual — o que, como disse, é altamente improvável — essa não seria uma boa razão para impedir a adopção por parte de casais homossexuais. Só pode pensar o contrário quem estiver a partir do princípio de que o estado deve tomar posição sobre que estilos de vida considera melhores, favorecendo-os em detrimento de outros. Mas o estado não deve fazê-lo.
Este é um mau argumento porque, de modo a sermos coerentes, se não permitíssemos que um casal homossexual adoptasse uma criança porque as crianças devem ser educadas por um pai e por uma mãe, então deveríamos retirar a custódia dos filhos aos divorciados, aos viúvos e aos pais solteiros. Como é óbvio, não devemos fazê-lo. Logo, o argumento não funciona.
Mas vejamos, ainda assim, a razão mais frequentemente avançada a favor deste argumento: é anti-natural casais homossexuais adoptarem crianças: nunca se viu focas ou elefantes homossexuais a adoptar crias órfãs, por exemplo. Esta foi a posição defendida por Miguel Sousa Tavares em vários artigos para o Público, pelos quais foi justamente ridicularizado por Ricardo Araújo Pereira no blog Gato Fedorento em 15 de Março de 2004, que observou que os cães comem o próprio vómito, mas isso não é razão para o fazermos nós.
Vale a pena desenvolver pormenorizadamente esta resposta a Miguel Sousa Tavares. O seu argumento padece do seguinte problema: procurar orientação no comportamento de outras espécies não é boa ideia porque certas práticas de outras espécies são más, e certas práticas que são apenas dos seres humanos são boas. E é inconsistente procurar orientação no comportamento de outras espécies para umas práticas, mas não para outras; logo não devemos procurar orientação no comportamento de outras espécies. Dou de seguida alguns exemplos. Abandonar os velhos e doentes à sua sorte é prática comum entre animais não-humanos: é frequente as manadas de herbívoros deixarem para trás esses elementos, não atrasando assim a sua marcha, o que traria um risco acrescido de cair nas garras de predadores. Mas consideraríamos imoral abandonar seres humanos velhos ou doentes à sua sorte. Por outro lado, fazer transplantes de coração para salvar vidas é uma prática exclusiva dos seres humanos — não há outra espécie que o faça; mas é moral. Logo, o facto de uma certa prática ser ou não adoptada por animais não-humanos é irrelevante para determinar se os seres humanos devem adoptá-la.
Segundo este argumento, ao adoptar uma criança, um casal homossexual está a causar-lhe dano porque a expõe à crueldade das outras crianças. Para ver que este é um mau argumento, basta pensar no seguinte: uma criança branca que fosse adoptada por pais negros na América ou na África do Sul, quando ainda havia segregação racial, seria gozada pelas outras crianças. Seria essa uma razão para impedir que pais negros adoptassem uma criança branca? É óbvio que não.
Nem seria preciso dar um exemplo tão extremo. Basta pensar nisto: as crianças podem ser muito cruéis, e provocam-se frequentemente por razões mesquinhas e lamentáveis. Não é difícil imaginar crianças a gozar outras crianças por terem pais numa cadeira de rodas ou cegos. No entanto, obviamente, essa não é uma boa razão para impedir que pessoas cegas ou que estejam numa cadeira de rodas adoptem crianças.
Não devemos estar reféns da crueldade inevitável das crianças ou da existência de preconceitos arreigados.
Em jeito de conclusão, é bom notar que os defensores da adopção por parte de homossexuais não precisam de defender que é tão bom para uma criança estar com um casal heterossexual como com um casal homossexual; precisam apenas de defender que é melhor para uma criança estar com um casal homossexual do que numa casa de acolhimento — o que parece óbvio. Porém, Luís Villas-boas, um dos responsáveis pela actual lei da adopção e director do refúgio para menores Aboim Ascensão, declarou, em Março de 2004, no Público, que é preferível que uma criança passe toda a vida numa instituição ou em famílias de acolhimento do que sofrer a “infelicidade de ser educada por homossexuais”. Resta saber se Villas-Boas consegue provar que crianças que sejam adoptadas por homossexuais são infelizes. Até hoje não o fez. As suas declarações parecem pura e simplesmente baseadas em preconceitos infundados — nomeadamente o preconceito de que o estilo de vida de um casal heterossexual é moralmente superior ao estilo de vida de um casal homossexual. Para constatá-lo, basta vermos um comunicado de imprensa divulgado em 2002 pela Associação Americana de Psiquiatria, em que se pode ler que
“A investigação realizada ao longo dos últimos 30 anos mostrou consistentemente que as crianças educadas por homossexuais ou lésbicas demonstram o mesmo nível de desempenho emocional, cognitivo e social do que as crianças educadas por heterossexuais. A investigação indica também que o desenvolvimento ideal das crianças não se baseia na orientação sexual dos pais, mas sim em laços estáveis com adultos dedicados e carinhosos”. (Ver aqui)
A vontade de impedir a legalização do casamento entre homossexuais e da adopção por parte de homossexuais deriva, em grande medida, de uma tendência lamentável para tentar impor aos outros o estilo de vida que consideramos melhor — uma tendência infelizmente entranhada na sociedade portuguesa. Gostaria de terminar com uma citação de Mill, que sintetiza o espírito por detrás da defesa da legalização do casamento entre homossexuais e da adopção por parte de homossexuais:
“A única liberdade que merece o nome, é a liberdade de procurar o nosso próprio bem à nossa própria maneira, desde que não tentemos privar os outros do seu bem, ou colocar obstáculos aos seus esforços para o alcançar. Cada qual é o justo guardião da sua própria saúde, tanto física, como mental e espiritual. As pessoas têm mais a ganhar em deixar que cada um viva como lhe parece bem a si, do que forçando cada um a viver como parece bem aos outros”.
Pedro Madeira