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Crítica
28 de Outubro de 2007   Filosofia

Um esboço do lixo intelectual

Bertrand Russell
Tradução de Vítor Guerreiro

O homem é um animal racional — pelo menos foi o que me ensinaram. No decurso de uma vida longa, procurei diligentemente indícios que apoiassem esta afirmação, mas até agora não tive a sorte de os encontrar, embora tenha percorrido vários países em três continentes. Pelo contrário, vi sempre o mundo afundar-se cada vez mais na loucura. Vi grandes nações, outrora líderes de civilização, transviadas por pregadores do disparate altissonante. Vi a crueldade, a perseguição e a superstição ganharem terreno, gradualmente, até quase chegarmos ao ponto em que, por elogiar a racionalidade, uma pessoa é tida por antiquada, como se, para seu infortúnio, tivesse sobrevivido a uma era obsoleta. Tudo isto é deprimente, mas a tristeza é uma emoção inútil. A necessidade de a evitar levou-me a estudar o passado com maior atenção do que antes lhe dedicara, tendo-me apercebido, como Erasmo, de que embora a loucura seja uma constante em todas as épocas, a humanidade sobrevive. Os excessos do nosso próprio tempo tornam-se mais toleráveis quando examinados contra o pano de fundo das loucuras do passado. Talvez o resultado deste esforço nos ajude a perspectivar o nosso próprio tempo, a vê-lo como não muito pior do que outras eras, em que os nossos antepassados viveram sem sucumbir à catástrofe.

Aristóteles foi, tanto quanto sei, o primeiro homem a declarar explicitamente que o ser humano é um animal racional. O seu motivo para defender tal ponto de vista não causa agora grande impressão; não era senão o facto de algumas pessoas serem capazes de fazer somas. Aristóteles pensava que há três tipos de alma: a alma vegetal, partilhada por todos os seres vivos, plantas ou animais, ligada apenas à nutrição e ao crescimento; a alma animal, relacionada com a locomoção e partilhada pelo homem com os animais inferiores; finalmente a alma racional, ou intelecto, que é a mente divina, mas na qual os seres humanos participam em maior ou menor grau, na razão directa da sua sabedoria. É em virtude do intelecto que o homem é um animal racional. O intelecto manifesta-se de várias maneiras embora isso seja mais evidente no domínio da aritmética. O sistema numérico grego era bastante mau, o que tornava a tabela de multiplicação bastante difícil, de modo que só as pessoas mais inteligentes conseguiam fazer cálculos complicados. Hoje em dia, contudo, as máquinas de calcular fazem somas melhor do que as pessoas mais inteligentes e no entanto ninguém argumenta que estes instrumentos tão úteis são imortais ou que funcionam por inspiração divina. À medida que a aritmética se foi tornando mais fácil, tornou-se menos respeitada. O resultado é que, apesar de muitos filósofos continuarem a tentar convencer-nos de como somos uns tipos porreiros, já não o fazem com base nas nossas aptidões aritméticas.

Como o espírito da época já não nos permite exibir as crianças que sabem somar como prova de que o homem é racional e a alma, pelo menos em parte, imortal, procuremos noutros sítios. Onde devemos procurar primeiro? Entre os distintos homens de estado, que tão triunfalmente conduziram o mundo ao estado em que se encontra? Ou devemos eleger os homens de letras? Ou os filósofos? Todos têm as suas pretensões, mas julgo que devemos começar por aqueles a quem todas as pessoas de bom senso reconhecem como os mais sábios, além de os melhores entre os homens, nomeadamente, o clero. Se eles se mostrarem incapazes de racionalidade, que esperança resta a nós, meros mortais? E infelizmente — embora o diga com todo o respeito — momentos houve em que a sua sabedoria não foi muito óbvia e, por estranho que pareça, foi precisamente nesses momentos que o clero teve mais poder.

A idade da fé, que os nossos neo-escolásticos tanto admiram, era o tempo em que o clero de tudo dispunha à sua maneira. A vida quotidiana andava cheia de milagres forjados por santos e feitiços perpetrados por demónios e espíritas. Queimaram-se muitos milhares de bruxas na fogueira. Os pecados humanos eram punidos com a pestilência e a fome, com terramotos, inundações e pelo fogo. E no entanto, por estranho que pareça, os homens eram ainda mais pecaminosos do que são hoje em dia. Muito pouco se sabia do mundo, em termos científicos. Alguns homens de letras conheciam argumentos gregos que defendiam que a terra é redonda, mas na sua maioria as pessoas troçavam da ideia dos antípodas. Era heresia supor que existiam seres humanos nos antípodas. Era letra comum (embora os católicos modernos adoptem um ponto de vista mais moderado) que a maioria dos seres humanos estava condenada. Acreditava-se que em cada esquina espreitavam perigos. Os demónios metiam-se na comida que os monges estavam prestes a ingerir, apoderando-se dos corpos daqueles incautos que se esquecessem de fazer o sinal da cruz antes de cada colherada. As pessoas mais antiquadas têm ainda o hábito de exclamar “Santinho!” quando alguém espirra, mas a razão de tal hábito caiu no esquecimento. Isto devia-se à crença de que a alma das pessoas saía com o espirro e antes que pudesse voltar ao corpo este poderia ser possuído por demónios emboscados; mas se alguém exclamasse “Santinho!”, os demónios assustavam-se.

Ao longo dos últimos 400 anos, em que o gradual progresso da ciência mostrou aos homens como obter conhecimento dos processos naturais e domínio sobre as forças da natureza, o clero travou uma batalha perdida contra a ciência, na astronomia e na geologia, na anatomia e na fisiologia, na biologia, na psicologia e na sociologia. Desalojados de uma posição, instalavam-se noutra. Depois de sofrer a derrota na astronomia, fizeram o possível para evitar a ascensão da geologia; lutaram contra o darwinismo na biologia e actualmente lutam contra as teorias científicas da psicologia e da educação. Em cada fase, tentam fazer que o público se esqueça do obscurantismo anterior, de maneira que não se reconheça como tal o seu obscurantismo presente. Debrucemo-nos sobre alguns exemplos de irracionalidade entre o clero desde a ascensão da ciência para ver então se o resto da humanidade vai muito melhor.

Quando Benjamin Franklin inventou o pára-raios, o clero, tanto na Inglaterra como na América, com o apoio entusiástico de George III, condenou-o como tentativa ímpia de contrariar a vontade de deus. Pois, como todas as pessoas de bom senso sabiam, os raios eram enviados por deus para punir a impiedade ou qualquer outro pecado grave — os bons nunca são atingidos por raios. Portanto, se deus quer atingir alguém, Benjamin Franklin não devia frustrar tal desígnio; na verdade, fazê-lo é o mesmo que proporcionar a fuga aos criminosos. Mas deus mostrou-se à altura do desafio, a acreditarmos no eminente Dr. Price, um dos teólogos mais destacados de Boston. Tendo as “hastes de ferro inventadas pelo sagaz Dr. Franklin” tornado anódinos os raios, o Massachusetts foi abalado por terramotos, que o Dr. Price entendia serem fruto da ira divina contra as “hastes de ferro”. Durante um sermão sobre o assunto afirmou: “Instalaram-nos mais em Boston do que em qualquer outro lado na Nova Inglaterra, e Boston parece ser mais gravemente afectada. Oh! Não há como fugir ao poderoso punho de deus”. Ao que parece, contudo, a Providência terá desistido de regenerar Boston da sua malvadez, pois, embora os pára-raios se tenham tornado cada vez mais comuns, os terramotos no Massachusetts continuaram raros. Não obstante, o ponto de vista do Dr. Price, ou algo muito semelhante, continua a ser defendido por um dos mais influentes homens vivos. Quando, a dada altura, houve vários terramotos graves na Índia, Mahatma Ghandi avisou solenemente os seus compatriotas de que tais catástrofes eram um castigo pelos seus pecados.

Mesmo na minha ilha natal, tal ponto de vista ainda perdura. Durante a última guerra, o governo britânico esforçou-se por fomentar a produção de alimentos em território nacional. Em 1916, quando as coisas não corriam de todo bem, um clérigo escocês escreveu aos jornais opinando que o fracasso militar se devia a ter-se plantado batatas no Domingo, com a aprovação do governo. Contudo, evitou-se a catástrofe, porque os alemães desobedeciam a todos os dez mandamentos, em vez de apenas a um.

Por vezes, a acreditarmos nos homens de religião, a compaixão divina é curiosamente selectiva. Toplady, o autor de Rock of Ages, mudou-se de uma paróquia para outra; uma semana após a mudança, a residência que ocupou antes incendiou-se, para grande prejuízo do novo vigário. Pouco depois, Toplady agradeceu a deus; mas o que terá feito o novo vigário não sabemos. Borrow, na sua Bible in Spain, relembra como atravessou incólume um desfiladeiro infestado de bandidos. O grupo que viajava atrás deles, contudo, foi emboscado, roubado e alguns dos seus membros assassinados; quando Borrow tomou conhecimento do que sucedera, agradeceu a deus, como fez Toplady.

Embora aprendamos a astronomia coperniciana nos manuais escolares, esta ainda não penetrou no nosso sentido religioso ou moral, e nem sequer conseguiu destruir a crença na astrologia. As pessoas ainda acreditam que o desígnio divino favorece os homens e que uma providência especial não só olha pelos bons, como também castiga os maus. Sinto-me por vezes chocado com as blasfémias daqueles que se julgam piedosos — por exemplo, as freiras que nunca tomam banho sem ter um roupão permanentemente vestido. Quando se lhes pergunta a razão, dado que nenhum homem as pode observar, respondem: “Oh, mas não podemos esquecer o bom deus”. Ao que parece, imaginam deus como um voyeur cuja omnipotência lhe permite ver através das paredes da casa de banho, mas que é frustrado por um roupão. Este modo de ver as coisas deixa-me perplexo.

Todo o conceito de “pecado” me parece deveras intrigante, sem dúvida por causa da minha natureza pecaminosa. Se o “pecado” consistisse em provocar sofrimento desnecessário, podia compreendê-lo; mas, pelo contrário, o pecado consiste normalmente em evitar o sofrimento desnecessário. Há alguns anos, na Câmara dos Lordes em Inglaterra, introduziu-se uma moção para legalizar a eutanásia em casos de doença incurável e dolorosa. Seria necessário o consentimento do paciente, assim como de vários certificados médicos. Para mim, na minha ingenuidade, parece natural exigir o consentimento do paciente, mas o antigo Arcebispo de Cantuária, especialista oficial em pecado na Inglaterra, explicou a incorrecção desse ponto de vista. O consentimento do paciente transforma a eutanásia em suicídio e o suicídio é pecado. Suas Senhorias escutaram a voz da autoridade e rejeitaram a moção. Consequentemente, para agradar ao Arcebispo e ao seu deus, a acreditarmos nas suas palavras — as vítimas de cancro têm ainda de suportar meses de agonia perfeitamente inútil, a menos que os seus médicos ou enfermeiros se mostrem suficientemente humanos a ponto de arriscarem uma acusação de homicídio. Considero problemática a ideia de um deus que retira prazer da contemplação de tais tormentos; e caso houvesse um deus capaz de tal crueldade gratuita, seguramente que não o consideraria digno de qualquer veneração. Mas isso apenas mostra a que ponto fui corrompido pela depravação moral.

Intrigam-me igualmente as coisas que se considera ou não ser pecado. Quando a Associação Protectora dos Animais solicitou ao papa o seu apoio, este recusou-o, sob o pretexto de que os seres humanos não têm quaisquer obrigações para com os animais inferiores e que a crueldade para com os animais não é pecado. Isto dever-se-ia ao facto de os animais não terem alma. Por outro lado, é pecado casar com a irmã da esposa defunta — pelo menos é o que ensina a igreja — por muito que ambos desejem casar. Isto não se deve a qualquer infelicidade que daí resulte, mas a certas passagens na Bíblia.

A ressurreição do corpo, um artigo de fé dos apóstolos, é um dogma com várias consequências curiosas. Havia um autor, há não muitos anos, que tinha um engenhoso método de calcular a data do fim do mundo. Argumentava que tem de haver ingredientes necessários ao corpo humano em quantidade suficiente para garantir a presença de todos no dia do juízo. Calculando cuidadosamente a matéria-prima disponível, concluiu que a dada altura toda esta teria sido já consumida. Quando tal data chegar, o mundo tem de acabar, pois de outro modo a ressurreição do corpo seria impossível. Infelizmente esqueci-me da data, mas creio que não falta assim tanto.

S. Tomás de Aquino, o filósofo oficial da igreja católica, discutiu em profundidade um problema bastante sério, o qual receio que os teólogos modernos subestimem indevidamente. Imagina um canibal, que nunca comeu outra coisa que não carne humana e cujos pais tinham tendências similares. Cada partícula do seu corpo pertence por direito a outra pessoa. Não é razoável supor que todos os que foram devorados por canibais tenham de minguar por toda a eternidade. Mas, se assim for, o que restará ao canibal? Como será devidamente assado no inferno se todo o seu corpo for devolvido aos legítimos donos? Esta é uma questão intrigante, como o santo justamente percebe.

No que respeita a este assunto, a ortodoxia tem uma curiosa objecção à cremação, o que parece denunciar uma compreensão insuficiente da omnipotência divina. Presume-se que deus terá mais dificuldade em regenerar um corpo que foi cremado do que um corpo enterrado e convertido em vermes. Sem dúvida que recolher as partículas do ar e reverter todo o processo químico da combustão seria bastante trabalhoso, mas é seguramente blasfemo supor que tal tarefa é impossível para a divindade. Concluo que a objecção à cremação implica uma grave heresia. Mas duvido que a minha opinião tenha grande peso entre os ortodoxos.

Foi só muito lenta e relutantemente que a igreja aceitou a dissecação de cadáveres associada ao estudo da medicina. O pioneiro da dissecação foi Vesalius, médico da corte do Imperador Carlos V. A sua perícia médica fez o imperador protegê-lo, mas depois da morte do imperador ficou em apuros. Espalhou-se o rumor de que um cadáver que Vesalius dissecava mostrou sinais de vida sob o escalpelo e acusaram-no de homicídio. O Rei Filipe II solicitou à inquisição que agisse com tolerância, condenando-o apenas a uma peregrinação à terra santa. De regresso a casa sofreu um naufrágio e morreu de exaustão. Séculos depois, os estudantes de medicina na Universidade Papal de Roma só podiam operar manequins, dos quais se omitiam os órgãos sexuais.

O carácter sagrado dos cadáveres é uma crença comum. Foi levada ao extremo pelos egípcios, entre os quais resultou na prática da mumificação. Ainda existe em força na China. Um cirurgião francês, contratado pelos chineses para ensinar medicina ocidental, relata que o seu pedido de cadáveres para dissecar foi recebido com grande horror, embora lhe assegurassem que podia receber, ao invés, um fornecimento ilimitado de criminosos vivos. A sua objecção a esta alternativa era completamente ininteligível para os seus patrões chineses.

Embora haja muitas formas de pecado, sendo sete mortais, o campo mais fértil para os artifícios de Satã é o sexo. A doutrina católica ortodoxa a este respeito encontra-se em S. Paulo, Santo Agostinho e S. Tomás de Aquino. O melhor é ser celibatário, mas aqueles que não têm o dom da continência podem casar. O acto sexual no casamento não é pecado, desde que causado pelo desejo de procriar. Todo o acto sexual fora do casamento é pecado, assim como o acto sexual no casamento se se usar qualquer método contraceptivo. A interrupção da gravidez é pecado, mesmo se, em termos médicos, for a única maneira de salvar a vida da mãe; visto que a opinião médica é falível e deus poderá sempre salvar uma vida por milagre, se assim o entender. (Este ponto de vista tem expressão na lei do Connecticut.) As doenças venéreas são castigo divino pelo pecado. É verdade que, por meio de um marido culpado, este castigo pode recair sobre uma mulher inocente e os seus filhos, mas neste caso trata-se de uma misteriosa excepção da providência, que seria ímpio questionar. Não devemos igualmente perguntar por que razão as doenças venéreas não foram instituídas por decreto divino antes do tempo de Colombo. Dado tratar-se do castigo oficial para o pecado, todas as medidas tomadas para o evitar são igualmente pecado — à excepção, como é óbvio, de uma vida virtuosa. O casamento é nominalmente indissolúvel, embora muita gente que pareça casada não o seja de facto. No caso de católicos influentes, pode-se frequentemente encontrar razões para uma anulação, mas para os pobres não há tal escapatória, excepto talvez em casos de impotência. As pessoas que se divorciam e voltam a casar são culpadas de adultério aos olhos de deus.

A expressão “aos olhos de deus” intriga-me. Seria de supor que deus vê tudo, mas aparentemente não é assim. Ele não vê Reno, pois não se pode ser divorciado aos olhos de deus. Os ofícios públicos são testemunho duvidoso. Tenho reparado que as pessoas respeitáveis, que jamais visitariam alguém que viva abertamente em pecado, se dispõem a visitar pessoas que se casaram apenas pelo registo civil; de maneira que aparentemente deus vê os ofícios públicos.

Alguns homens importantes acham mesmo que a doutrina da igreja católica é lamentavelmente permissiva, no que diz respeito ao sexo. Tolstoy e Mahatma Ghandi, na velhice, afirmaram que todo o acto sexual é perverso, mesmo dentro do casamento e com o intuito de procriar. Os maniqueístas pensavam da mesma maneira, seguros de que a perversidade natural dos homens lhes renovaria constantemente as fileiras de discípulos. Esta doutrina, contudo, é herética, embora seja igualmente herético defender que o casamento é tão louvável como o celibato. Tolstoy acha que o tabaco é quase tão mau como o sexo; num dos seus romances, um homem que pensa cometer um assassínio fuma primeiro um cigarro, de modo a gerar a necessária fúria homicida. O tabaco, contudo, não é proibido pelas escrituras, ainda que, como Samuel Butler observa, S. Paulo o tivesse seguramente condenado, caso soubesse da sua existência.

É estranho que nem a igreja nem a opinião pública moderna condenem as carícias, desde que parem a dada altura. A partir de que momento começa o pecado é assunto a respeito do qual os casuístas discordam. Um eminente teólogo católico conservador afirmou que um confessor pode acariciar os seios de uma freira, desde que o faça sem perversidade. Mas duvido que as autoridades contemporâneas concordem com ele neste ponto.

A moral moderna é uma mistura de dois elementos: preceitos racionais sobre a coexistência pacífica em sociedade, por um lado, e tabus tradicionais que vêm de superstições antigas, por outro, mas mais próximas dos livros sagrados, cristãos, islâmicos, hindus ou budistas. Até certo ponto, ambos são compatíveis; a proibição do homicídio e do roubo, por exemplo, tem fundamento quer na razão humana quer no mandamento divino. Mas a proibição de comer carne de porco tem apenas a sustentação da autoridade teológica e ainda assim apenas em algumas religiões. É estranho que os homens modernos, conscientes do que a ciência tem feito no sentido de produzir novos conhecimentos e alterar as condições da vida social, se disponham ainda a aceitar a autoridade de textos que dão voz às opiniões de sociedades tribais, pastorais ou agrícolas, bastante antigas e ignorantes. É desanimador que muitos dos preceitos cujo carácter sagrado é assim tão acriticamente aceite sejam de uma natureza tal que infligem grande quantidade de sofrimento absolutamente desnecessário. Se os impulsos altruístas do homem fossem mais fortes, este encontraria maneira de explicar que não se deve tomar à letra tais preceitos, como não se toma à letra o mandamento que diz “vende tudo o que tens e dá-o aos pobres”.

A ideia de pecado levanta algumas dificuldades lógicas. Dizem-nos que o pecado consiste na desobediência aos mandamentos de deus, mas também que deus é omnipotente. Se o é, nada que fosse contrário à sua vontade poderia acontecer; portanto, se o pecador desobedece às suas ordens, deus tem de ter pretendido que tal acontecesse. Santo Agostinho aceita arrojadamente este ponto de vista e defende que os homens são levados a pecar por força de uma cegueira com que deus os aflige. Mas, na sua maior parte, os teólogos hoje em dia sentem que, se deus leva o homem a pecar, não é justo mandá-lo para o inferno por algo que ele não pode evitar. Dizem-nos que pecar é agir contra a vontade de deus. Isto, contudo, não afasta a dificuldade. Aqueles que, como Espinosa, levam a sério a omnipotência divina, deduzem que não pode existir algo como o pecado. Isto leva a consequências terríveis. “Quê!” Exclamaram os contemporâneos de Espinosa, não foi Nero perverso ao assassinar a mãe? Não foi Adão perverso ao comer a maçã? Será que qualquer acção é tão boa como qualquer outra? Espinosa retraiu-se, mas não encontrou uma resposta satisfatória. Se tudo acontece de acordo com a vontade divina, deus tem de ter pretendido que Nero assassinasse a mãe; portanto, como deus é bom, o homicídio teve de ser uma coisa boa. Não há como fugir a este argumento.

Por outro lado, os que estão mais convictos de que o pecado é a desobediência a deus sentem-se forçados a afirmar que deus não é omnipotente. Esta solução evita todos os puzzles lógicos e é o ponto de vista adoptado por uma certa escola de teólogos liberais. Tem, contudo, as suas próprias dificuldades. Como podemos saber o que é realmente a vontade de deus? Se as forças do mal têm algum poder, podem levar-nos a aceitar como escritura aquilo que é na verdade obra sua. Era este o ponto de vista dos gnósticos, que consideravam o antigo testamento produto de um espírito maligno.

Assim que abandonamos a nossa própria racionalidade e nos contentamos com a autoridade, as nossas atribulações não têm fim. Autoridade de quem? Do antigo testamento? Do novo testamento? Do Corão? Na prática, as pessoas escolhem o livro que é tido como sagrado pela comunidade em que nascem, escolhendo desse livro as partes que lhes agradam, ignorando outras. A dada altura, o texto mais influente da bíblia era: “Não tolerarás que uma bruxa sobreviva” (Êxodo 22,18). Hoje em dia, as pessoas ignoram esta passagem, em silêncio se possível; se não, com uma desculpa. Assim, mesmo quando temos um livro sagrado, continuamos a eleger como verdade seja o que for que convenha aos nossos próprios preconceitos. Nenhum católico, por exemplo, leva a sério o texto que afirma que o bispo deve ser marido de uma esposa.

As crenças das pessoas são causadas por várias coisas. Uma delas é haver um fundamento para a crença em questão. Aplicamos esta regra a questões de facto, como “qual é o número de telefone de fulano?” ou “quem ganhou o campeonato de basebol?” Mas mal passamos a assuntos mais controversos, o fundamento das crenças torna-se menos defensável. Acreditamos, sobretudo, naquilo que nos faz sentir bem connosco próprios. Sr. Fulano, se não sofre do estômago e tem um bom rendimento, pensa para consigo como é mais sensível que o vizinho Sr. Sicrano, que casou com uma mulher caprichosa e perde dinheiro constantemente. Pensa como a sua cidade é superior à cidade vizinha, a 50 milhas de distância: tem uma câmara de comércio mais ampla, uma Fundação Rotária mais empreendedora, além de que o seu presidente da câmara nunca esteve preso. Pensa como o seu país supera tão indiscutivelmente os demais. Se é inglês, pensará em Shakespeare e Milton, em Newton ou Darwin, em Nelson ou Wellington, conforme o seu temperamento. Se é francês, rejubilar-se-á com o facto de durante séculos a França ter liderado o mundo no que diz respeito à cultura, à moda e à culinária. Se é russo, reflectirá em como pertence ao único estado é verdadeiramente internacional. Se é jugoslavo, gabar-se-á da suinicultura nacional; se vive no principado do Mónaco, gabar-se-á de liderar o mundo no que respeita a casinos.

Mas estes não são os seus únicos motivos de orgulho. Não pertence ele à espécie dos homo sapiens? Os únicos seres do reino animal que têm almas imortais, além de racionalidade; sabe distinguir entre o bem e o mal e aprendeu a tabela da multiplicação. Não é verdade que deus o criou à sua imagem? Não foi tudo criado para o conforto do homem? O sol foi criado para iluminar os dias, a lua para iluminar a noite — embora a lua, devido a algum lapso, apenas ilumine durante metade da noite. Os frutos da terra existem para a subsistência humana. Até as caudas brancas dos coelhos, segundo alguns teólogos, têm um propósito, nomeadamente, tornar mais fácil a sua detecção pelos que praticam o desporto da caça. Há, de facto, alguns inconvenientes: os leões e os tigres são ferozes, o Verão é muito quente, o Inverno demasiado frio. Mas tais coisas só começaram depois de Adão ter comido a maçã; antes disso, todos os animais eram vegetarianos, a Primavera durava todo o ano. Se ao menos Adão se tivesse contentado com pêssegos e nectarinas, uvas, peras e ananases, tais bênçãos ainda seriam nossas.

O orgulho, individual ou colectivo, é a raiz da maior parte das nossas crenças religiosas. Até o pecado é um conceito derivado do orgulho. Borrow conta-nos como encontrou um pregador galês que estava sempre triste. Ao ser amigavelmente questionado acabou por revelar a causa da sua tristeza: que com a idade de sete anos cometera um pecado contra o espírito santo. “Meu caro amigo”, exclamou Borrow, “não se deixe perturbar por isso; conheço dezenas de pessoas na mesma situação. Não pense que tal coisa o distingue do resto da humanidade; se perguntar, encontrará multidões de pessoas que sofrem da mesma infelicidade”. Desse momento em diante, o homem ficou curado. Ser-se único é uma coisa, mas pertencer a um rebanho de pecadores não tem piada. A maior parte dos pecadores são muito autocentrados; mas os teólogos gostam sem dúvida de sentir que o homem é objecto peculiar da fúria divina, bem como do seu amor. Depois da queda — segundo Milton — “O sol recebeu primeiramente ordens para se mover e brilhar de modo a afligir a Terra com frio e calor quase intoleráveis, para invocar do norte o decrépito Inverno, do sul o solsticial calor de Verão”.

Por muito desagradáveis que fossem as consequências, Adão não podia deixar de se sentir algo lisonjeado com o facto de se causar acontecimentos astronómicos de tal amplitude só para lhe ensinar uma lição. Toda a teologia, tanto no que diz respeito ao inferno como ao céu, pressupõe que o homem é a mais importante das criaturas no universo. Visto que todos os teólogos são humanos, tal postulado não tem sofrido muitas objecções.

Desde que o evolucionismo entrou na moda, a glorificação do homem ganhou nova expressão. Dizem-nos que a evolução foi orientada por um grande desígnio: ao longo dos milhões de anos em que apenas havia lama e trilobitas, ao longo da era dos dinossauros e fetos gigantes, das abelhas e flores silvestres, deus preparava o grande clímax. Por fim, chegado o momento, criou o homem, inclusive espécimes como Nero e Calígula, Hitler e Mussolini, cuja glória transcendente justifica o longo e doloroso processo. A meu ver, até a condenação eterna parece menos incrível e seguramente menos ridícula, do que esta conclusão inepta e vazia que nos convidam a admirar como maior feito da omnipotência. Mas se deus é de facto omnipotente, por que não produziu o glorioso resultado sem um prólogo tão extenso e monótono?

Para lá da questão de saber se o homem é tão glorioso como os teólogos da evolução afirmam, temos a dificuldade adicional de que a vida neste planeta é quase seguramente temporária. A Terra esfriará, a atmosfera desaparecerá, haverá escassez de água ou, como Sir James Jeans genialmente profetiza, o sol explodirá e os planetas transformar-se-ão em gás. O que acontecerá primeiro, ninguém sabe; mas em todo o caso a humanidade acabará por perecer. Como é óbvio, tal acontecimento é de somenos importância do ponto de vista da teologia ortodoxa, visto que os homens são imortais e continuarão a existir no céu e no inferno quando já ninguém restar ao cimo da terra. Mas, nesse caso, porquê preocupar-se com o curso dos acontecimentos terrestres? Os que sublinham a lenta progressão que vai do lodo primordial ao homem atribuem um valor a esta esfera mundana, o que os devia afastar da conclusão de que toda a vida na terra é apenas um breve interlúdio que separa a névoa do gelo eterno, ou talvez uma névoa de outra. A importância do homem, a qual constitui o único dogma indispensável dos teólogos, não tem qualquer fundamento à luz de uma visão científica sobre o futuro do sistema solar.

Há muitas outras fontes de crenças falsas além do orgulho. Uma delas é a atracção pelo maravilhoso. Conheci em tempos um prestidigitador imbuído de espírito científico, que tinha o hábito de executar os seus truques diante de uma pequena audiência, e que mais tarde fazia cada um deles, individualmente, escrever o que tinha visto acontecer. Escreviam quase sempre algo mais impressionante do que aquilo que realmente acontecera e, normalmente, algo que nenhum prestidigitador seria capaz de fazer; no entanto todos supunham relatar de modo fidedigno o que tinham testemunhado com os próprios olhos. Este tipo de falsificação é ainda mais comum no que diz respeito a boatos. A diz a B ter visto o Sr. X, eminente defensor da lei seca, na noite anterior, ligeiramente tocado pelo álcool; B diz a C que A viu o pobre homem a cair de bêbado, C diz a D que o senhor foi retirado inconsciente de uma sarjeta, D diz a E que o indivíduo tem fama de desmaiar todas as noites. Aqui, de facto, entra em jogo outro motivo, nomeadamente a malícia. Gostamos de pensar mal dos nossos vizinhos, e estamos preparados para acreditar no pior com base nos indícios mais frágeis. Mas mesmo quando não há tal motivo, o maravilhoso é sempre objecto de fé a menos que contrarie um preconceito arreigado. Toda a historiografia até ao século XVIII está cheia de prodígios e maravilhas que os historiadores modernos ignoram, não porque relativamente a outros factos aceites pelos historiadores, careçam de testemunho, mas porque hoje em dia o gosto académico é mais sensível às entidades que a ciência considera prováveis. Shakespeare relata como na noite anterior ao homicídio de César “um vulgar escravo — conhecem-no bem de vista — levantou a mão esquerda, que se incendiou e ardeu como vinte tochas juntas; e contudo a sua mão, insensível ao fogo, permaneceu ilesa. Além disso — desde então que não ergo a minha espada — contra o Capitólio avistei um leão, que me fitou e passou por mim, mal-humorado, sem me molestar; e cem mulheres horríveis se juntaram, tão transtornadas pelo medo, que juravam ter visto homens em chamas rua acima e rua abaixo”.

Shakespeare não inventou tais prodígios; encontrou-os em respeitados historiadores, que se contam entre aqueles de quem depende o conhecimento que temos de Júlio César. Era normal acontecer este tipo de coisas quando morria um grande homem ou quando se iniciava uma guerra importante. Mesmo há tão pouco tempo como em 1914 os “anjos de Mons” encorajaram as tropas britânicas. O testemunho de tais acontecimentos raramente é dado em primeira mão e os historiadores modernos recusam aceitá-los, excepto, claro, quando o acontecimento tem importância religiosa.

Todas as emoções poderosas tendem a gerar mitos. Quando a emoção é característica de um indivíduo, este é considerado mais ou menos louco conforme acredite nas suas próprias fantasias. Mas quando uma emoção é colectiva, como no caso da guerra, não há quem critique os mitos que vão surgindo naturalmente. Daqui resulta que em todas as épocas de grande excitação colectiva, os rumores sem fundamento são objecto de fé em larga escala. Em Setembro de 1914, quase toda a gente em Inglaterra acreditava que as tropas russas tinham passado por Inglaterra a caminho da frente ocidental. Toda a gente conhecia alguém que os vira, embora ninguém os tivesse visto por si próprio.

A capacidade de produzir mitos associa-se normalmente à crueldade. Desde a idade média que os judeus são acusados de praticar homicídios rituais. Esta acusação não tem o mínimo de fundamento, e ninguém no seu perfeito juízo que tenha investigado o assunto acredita nisso. Não obstante, a crença persiste ainda. Conheci russos brancos convencidos da verdade de tal ideia, que é também acriticamente aceite por muitos nazis. Tais mitos dão uma desculpa para se infligir sofrimento e a fé cega nesses mitos atesta o desejo inconsciente de encontrar uma vítima a quem perseguir.

Até ao fim do século XVIII havia uma teoria segundo a qual a loucura resulta de possessão demoníaca. Concluía-se que qualquer dor sofrida pelo paciente era também sofrida pelos demónios, de modo que a cura mais eficaz era fazer o paciente sofrer de tal modo que os demónios decidissem abandoná-lo. À luz desta teoria, espancava-se brutalmente os doentes mentais. Quando enlouqueceu, o Rei Jorge III foi submetido ao mesmo tratamento, sem sucesso. É um facto curioso e infeliz que quase todos os tratamentos fúteis em que se acreditava durante a longa história da palermice na medicina tenham a característica de provocar grande sofrimento nos doentes. Quando se descobriu os anestésicos, as pessoas religiosas consideravam-nos uma tentativa de fugir à vontade divina. No entanto, sublinhava-se que deus, quando extraiu uma costela a Adão, o fez cair num sono profundo. Isto provava que as anestesia é aceitável no caso dos homens; as mulheres, contudo, tinham de sofrer, devido à maldição de Eva. No ocidente, os direitos das mulheres mostraram a falsidade de tal doutrina, mas no Japão, até aos dias de hoje, não se dá qualquer alívio através de anestésicos às mulheres em trabalho de parto. Como os japoneses não acreditam no Génesis, este tipo de sadismo tem de ter outra justificação qualquer.

As falácias acerca do “sangue” e da “raça”, que sempre foram populares e às quais os nazis deram expressão no seu credo oficial, não têm qualquer justificação objectiva; só são objecto de crença por satisfazerem o orgulho e a tendência para a crueldade. De uma ou outra maneira, tais crenças são tão antigas quanto a civilização; embora mudem de forma, a sua essência permanece. Heródoto relata-nos como Ciro foi criado por camponeses, ignorando por completo a sua ascendência real; com a idade de doze anos, a sua atitude monárquica para com os outros rapazes denunciou a verdade. Esta é a variante de uma velha história presente em todas as nações indo-europeias. Mesmo na actualidade as pessoas têm o hábito de dizer que “o sangue fala mais alto”. É indiferente que a psicologia científica assegure ao mundo não haver qualquer diferença entre o sangue de um negro e o sangue de um branco. A Cruz Vermelha norte-americana, em conformidade com os preconceitos populares, a princípio, quando os Estados Unidos se viram envolvidos na actual guerra, decretou que não se devia usar o sangue dos negros para transfusões. Na sequência de protestos, consentiu-se no uso de sangue de negros, mas apenas em pacientes negros. De igual modo, na Alemanha, o soldado ariano que precise de uma transfusão sanguínea é zelosamente protegido da contaminação com sangue judeu.

No que diz respeito à raça, diversas sociedades têm crenças diferentes. Onde a monarquia se encontra firmemente estabelecida, os reis pertencem a uma raça superior à dos seus súbditos. Até há muito pouco tempo, acreditava-se universalmente que os homens eram por natureza superiores em inteligência às mulheres; até mesmo um homem tão esclarecido como Espinosa era contrário ao voto feminino com base em tal ideia. Entre os homens brancos, acredita-se que os homens brancos são por natureza superiores aos homens de outras cores, particularmente aos negros; no Japão, pelo contrário, pensa-se que o amarelo é a melhor das cores. No Haiti, quando se esculpem figuras de Cristo e de Satã, fazem-se Cristos negros e Satãs brancos. Aristóteles e Platão consideravam os gregos tão naturalmente superiores aos bárbaros que a escravatura era justificada desde que o senhor fosse grego e o escravo bárbaro. Os nazis e os legisladores norte-americanos que fizeram as leis de imigração consideram os nórdicos superiores aos eslavos, latinos ou quaisquer outros homens brancos. Mas os nazis, sob o esforço da guerra, chegaram à conclusão que quase não existem verdadeiros nórdicos fora da Alemanha; os noruegueses, excepto Quisling e os seus poucos seguidores, foram corrompidos pela miscigenação com os finlandeses, lapónios e outros que tais. Assim, a política denuncia a ascendência. O nórdico biologicamente puro adora Hitler, e quem não adora Hitler é porque tem o sangue contaminado.

Tudo isto é, obviamente, um disparate pegado, e como tal reconhecido por qualquer estudioso da matéria. Nas escolas americanas, as crianças das mais diversas origens são submetidas ao mesmo sistema educativo, e aqueles a quem cabe medir os quocientes de inteligência e de qualquer outro modo avaliar a capacidade inata dos estudantes, são incapazes de fazer essas distinções raciais tal como os teorizadores da raça as postulam. Em todos os grupos nacionais ou raciais há crianças inteligentes e crianças estúpidas. Não é provável que nos Estados Unidos as crianças negras se desenvolvam tão integralmente como as crianças brancas, devido ao estigma da inferioridade social; mas na medida em que podemos diferenciar a capacidade inata da influência do meio, não há fronteiras nítidas entre os vários grupos. O próprio conceito de raça superior é apenas um mito produzido pela megalomania de quem exerce o poder. Talvez um dia possamos dispor de melhores dados empíricos; talvez, com o tempo, os educadores possam provar (por exemplo) que os judeus são em média mais inteligentes do que os gentios. Mas por enquanto não há tal informação e todo o discurso sobre raças superiores deve ser posto de parte como disparate.

Há algo de particularmente absurdo na tentativa de aplicar teorias raciais às diversas populações da Europa. Nada há na Europa que se assemelhe a uma raça pura. Os russos têm uma percentagem de sangue tártaro, os germanos são em grande parte eslavos, a França é uma mistura de celtas, germanos e povos do Mediterrâneo, a Itália a mesma coisa, com a adição de escravos importados pelos romanos. Os ingleses são talvez o povo mais miscigenado de todos. Não há quaisquer provas de que a pertença a uma raça superior seria uma vantagem. As raças mais puras que actualmente existem são os pigmeus, os hotentotes e os aborígenes australianos; os nativos da Tasmânia, que talvez fossem ainda mais puros, extinguiram-se. Não foram portadores de uma cultura brilhante. Os antigos gregos, por outro lado, emergiram de uma amálgama de bárbaros nórdicos e populações indígenas; os atenienses e os jónios, que eram os mais civilizados, eram também os mais misturados. Os supostos méritos da pureza racial são, ao que parece, totalmente imaginários.

As superstições relacionadas com o sangue têm muitas formas que nada têm a ver com a raça. A objecção ao homicídio parece ter tido origem na poluição ritual provocada pelo sangue da vítima. deus disse a Caim: “A voz do sangue do teu irmão chegou-me aos ouvidos a partir do solo”. De acordo com alguns antropólogos, a marca de Caim era um disfarce para impedir que o sangue de Abel o encontrasse; esta parece ser também a razão original para usar luto. Em algumas culturas antigas não se distinguia entre o homicídio e o homicídio involuntário; em qualquer caso era necessária a ablução ritual. O sentimento de que o sangue polui ainda persiste, por exemplo, na acção de graças das mulheres que acabam de dar à luz e nos tabus ligados à menstruação. A ideia de que uma criança é do “sangue” do pai tem a mesma origem supersticiosa. No que diz respeito a sangue, materialmente falando, o da mãe entra na criança, mas não o do pai. Se o sangue fosse tão importante como se imagina, o matriarcado seria a única forma adequada de traçar a descendência.

Na Rússia, onde, sob a influência de Karl Marx, desde a revolução se classifica as pessoas segundo a sua origem económica, surgiram dificuldades semelhantes àquelas que os teorizadores germânicos da raça tiveram com os nórdicos escandinavos. Havia duas teorias a conciliar: por um lado, os proletários eram bons e as outras pessoas más; por outro lado, os comunistas eram bons e as outras pessoas más. A única forma de as conciliar era mudando o sentido das palavras. Um “proletário” passou a ser um apoiante do governo; Lenine, embora nascido em berço de ouro, foi reconhecido como membro do proletariado. Por outro lado, a palavra “kulak”, que supostamente referia os camponeses ricos, acabou por designar qualquer camponês que se opusesse à colectivização. Este tipo de absurdos surge sempre que um grupo de seres humanos se presume por inerência melhor do que outros. Na América, o melhor elogio que se pode fazer a um eminente homem negro depois de este estar pacificamente morto é exclamar “era um homem branco”. Chama-se “viril” a uma mulher corajosa: MacBeth, louvando a coragem da esposa, exclama: “Gerai apenas filhos homens, pois o vosso espírito intrépido não deve produzir senão machos”. Todas estas formas de expressão vêm da relutância em abandonar as generalizações tolas.

Na esfera económica há várias superstições largamente aceites. Por que valorizam as pessoas o ouro e as pedras preciosas? Não é só pela raridade: há vários elementos denominados “metais raros” que são muito mais escassos do que o ouro, mas ninguém dará um centavo por eles, excepto alguns cientistas. Há uma teoria, que tem muito que se lhe diga, de que o ouro e as pedras preciosas eram originalmente valorizados devido às suas supostas propriedades mágicas. Os erros dos governos modernos parecem mostrar que esta crença ainda existe entre as pessoas de quem dizemos terem “sentido prático”. No final da última guerra, concordou-se que a Alemanha teria de pagar quantias avultadas à França e Inglaterra, que por sua vez pagariam quantias avultadas aos Estados Unidos. Todos preferiam ser pagos em dinheiro e não em bens ou serviços; os homens “práticos” não repararam que não havia no mundo tal quantidade de dinheiro. Também não repararam que o dinheiro de nada serve a menos que seja usado para adquirir bens ou serviços. Como não o iam gastar desta forma, de nada adiantou a pessoa alguma. Supunha-se que o ouro tinha uma virtude mística que justificava escavá-lo no Transvaal para voltar a metê-lo num subterrâneo, em cofres-fortes, na América. Os países devedores acabaram sem dinheiro e uma vez que não podiam pagar em bens, seguiu-se o desastre financeiro. A grande depressão foi consequência directa de uma crença persistente nas propriedades mágicas do ouro. É de recear que uma superstição semelhante provoque males de igual magnitude após a guerra actual. A política é em grande parte dominada por estribilhos moralistas desprovidos de qualquer verdade.

Uma das máximas populares mais disseminadas é: “não se pode mudar a natureza humana”. Ninguém pode saber se isto é verdadeiro ou falso sem antes definir “natureza humana”. Mas do modo como se usa o termo é seguramente falso. Quando o Sr. A profere esta máxima, com ares de solene e irrepreensível sabedoria, o que quer dizer é que todos os homens em toda a parte se vão comportar sempre do mesmo modo que os homens da sua terra natal. Um pouco de antropologia desacreditará esta crença. Entre os tibetanos, uma esposa tem vários maridos, porque os homens são demasiado pobres para sustentar por si sós uma mulher; contudo a vida familiar, segundo narram os viajantes, não é mais infeliz que em qualquer outro lado. A prática de emprestar a mulher a um hóspede é muito comum entre as tribos incivilizadas. Os aborígenes australianos, durante a puberdade, sofrem um doloroso procedimento que lhes diminui drasticamente a potência sexual para o resto da vida. O infanticídio, que poderá parecer contrário à natureza humana, era praticamente universal até ao surgimento do cristianismo, e Platão recomenda-o para controlar o excesso demográfico. Algumas tribos selvagens não reconhecem a propriedade privada. Mesmo entre povos bastante civilizados, as considerações económicas ganham precedência sobre aquilo a que se chama “natureza humana”. Em Moscovo, onde há grande escassez de habitações, quando uma mulher solteira engravida, acontece vários homens disputarem o direito legal a ser reconhecidos como pai da futura criança, porque quem quer que seja considerado pai adquire o direito de partilhar o quarto da mulher e meio quarto é melhor do que nenhum quarto.

Na verdade, a “natureza humana” adulta é extraordinariamente volúvel, segundo as condições em que foi educada. A comida e o sexo são requisitos bastante gerais, mas os eremitas da Tebaida abstinham-se completamente de sexo e reduziam o consumo de comida ao mínimo necessário à sobrevivência. Através do jejum e do treino, as pessoas podem tornar-se ferozes ou submissas, poderosas ou escravas, consoante os fins do educador. Não há disparate, por mais absurdo que seja, que não se possa converter em credo da maioria através da acção governativa adequada. Platão pretendia que a sua república assentasse num mito que ele próprio admitia ser absurdo, embora estivesse convencido, com razão, de que era possível fazer as pessoas acreditar nele. Hobbes, que achava importante as pessoas respeitarem o governo, por muito indigno que este possa ser, rejeita o argumento de que poderá ser difícil obter a aceitação colectiva de algo tão irracional, chamando a atenção para que as pessoas foram persuadidas a aceitar a fé cristã e em particular a doutrina da transubstanciação. Se Hobbes fosse vivo agora, encontraria fortes indícios disto na devoção dos jovens alemães ao nazismo.

O poder dos governos sobre as crenças dos homens tem sido enorme desde a ascensão dos grandes estados. Na sua grande maioria os romanos tornaram-se cristão depois de os imperadores romanos se terem convertido. Nas regiões do império romano conquistadas pelos árabes, as pessoas trocaram maioritariamente o cristianismo pelo islamismo. A divisão da Europa ocidental em regiões protestantes e católicas foi determinada pela atitude dos governos no século XVI. Mas o poder dos governos sobre as crenças é muito mais vasto nos dias de hoje do que em qualquer momento da antiguidade. Uma crença, por muito falsa que seja, é importante quando controla as acções de grandes massas humanas. Neste sentido, as crenças inculcadas pelos governos japonês, russo e alemão são importantes. Visto serem completamente divergentes, não podem ser todas verdadeiras, embora possam ser todas falsas. Infelizmente têm o poder de inspirar aos homens o desejo ardente de se matarem uns aos outros, mesmo ao ponto de inibir quase por completo o instinto de autopreservação. Ninguém pode negar, face aos indícios disponíveis, que é fácil, uma vez garantido o poder militar, produzir uma população de lunáticos fundamentalistas. Talvez fosse igualmente fácil produzir uma população de gente razoável e sã, mas muitos governos preferem não o fazer, visto que essas pessoas seriam incapazes de sentir admiração pelos políticos que lideram tais governos.

Há uma aplicação particularmente nociva da doutrina de que a natureza humana é imutável. Trata-se da afirmação dogmática de que sempre haverá guerras, porque somos feitos de tal modo que sentimos necessidade delas. A verdade é que um homem que teve uma dieta e uma educação semelhante à dos outros na sua maioria desejará reagir se o provocam. Mas não irá realmente lutar a menos que tenha hipótese de vencer. É extremamente desagradável ser parado por um polícia de trânsito, mas não vamos lutar com ele porque sabemos que tem atrás de si a esmagadora força do estado. As pessoas que não têm oportunidade de fazer a guerra não exibem qualquer disfunção psicológica óbvia. A Suécia não teve uma única guerra desde 1814, mas os suecos eram, há alguns anos, uma das nações mais felizes e satisfeitas do mundo. Duvido que ainda o sejam, mas isso porque, apesar da sua neutralidade, não conseguem evitar muitos dos males da guerra. Se a organização política fosse orientada para tornar a guerra obviamente desvantajosa do ponto de vista do lucro, nada haveria na natureza humana que tornasse forçoso a ocorrência da guerra ou que fizesse as pessoas infelizes na sua ausência. Os mesmíssimos argumentos que hoje se usa para defender a impossibilidade da paz foram em tempos usados para defender a prática dos duelos, e no entanto muito poucos de nós se sentem perturbados por não poder entrar em duelos.

Estou convencido de que não há quaisquer limites para os absurdos que se podem tornar crença generalizada através da acção governativa. Dêem-me um exército apropriado e o poder de lhes pagar um salário e dar uma alimentação melhores do que as pessoas na sua maioria estão habituadas a receber, e comprometo-me, no prazo de trinta anos, a fazer a população acreditar maioritariamente que dois mais dois são três, que a água congela quando aquecida e ferve quando arrefecida, ou em qualquer outro disparate que possa servir os interesses do estado. Evidentemente, mesmo que tais crenças fossem disseminadas, as pessoas não iriam colocar as panelas no congelador quando quisessem ferver água. A ideia de que o frio faz ferver a água seria uma verdade dominical, sagrada e mística, a ser proferida com entoações dramáticas, mas não para se aplicada na vida quotidiana. Na prática, qualquer negação verbal da doutrina mística seria proibida por lei e os hereges obstinados seriam “congelados” na fogueira. Ninguém que se recusasse a aceitar a doutrina oficial seria autorizado a ensinar ou a ocupar um cargo administrativo. Só os oficiais de mais elevada patente, do alto dos seus galões, comentariam entre si, em voz baixa, o enorme disparate de tudo aquilo; mas logo se riiamr e voltariam a beber. Isto mal chega a ser uma caricatura do que realmente acontece em alguns governos modernos.

A descoberta de que o homem pode ser cientificamente manipulado e que os governos têm a possibilidade de fazer lavagens cerebrais em massa, consoante os seus interesses, é uma das causas do nosso infortúnio. A diferença entre um conjunto de cidadãos mentalmente livres e uma comunidade moldada por métodos de propaganda modernos é tão grande como a que há entre um monte de matérias-primas a um navio de guerra acabado. A educação, que a princípio foi universalizada para que todos pudessem ler e escrever, tem-se mostrado capaz de servir propósitos bem diferentes. Ao inculcar disparates, unifica as populações e gera entusiasmo colectivo. Se todos os governos ensinassem os mesmos disparates, o mal não seria tão grande. Infelizmente, cada qual tem um disparate da sua lavra e a diversidade dá azo a hostilidades entre os devotos de credos diferentes. Para haver paz no mundo, ou os governos concordam em deixar de ensinar dogmas, ou concordam em ensinar todos o mesmo dogma. Receio que a primeira proposta seja um ideal utópico, mas talvez pudessem todos aceitar ensinar colectivamente que todas as figuras públicas, em todo o lado, são completamente virtuosas e perfeitamente sábias. Talvez, quando a guerra terminar, os políticos que sobreviverem considerem prudente estabelecer um programa semelhante.

Mas se o conformismo tem os seus perigos, o inconformismo também os tem.

Alguns “pensadores avançados” acham que qualquer pessoa que discorde da opinião geral tem de ter razão. Isto é ilusório; se não o fosse, a verdade seria bem mais fácil de alcançar do que efectivamente é. Há infinitas possibilidades de erro e os excêntricos, na sua maioria, sentem-se mais atraídos por erros impopulares do que por verdades impopulares. Conheci em tempos um engenheiro electrotécnico que se apresentou com as seguintes palavras: “Como está? Há dois métodos de se curar através da fé, o que era praticado por Cristo e o que é praticado pela maior parte dos cientologistas. Eu pratico o método praticado por Cristo”. Pouco depois, este homem foi preso por fraude fiscal. A lei não vê com bons olhos a intromissão da fé neste departamento. Ouvi também falar num eminente psiquiatra que se dedicou à filosofia e começou a ensinar uma nova lógica que, como abertamente confessou, aprendera com os seus pacientes. Ao morrer deixou um testamento que estipulava o financiamento de uma cátedra para o ensino dos seus novos métodos científicos, mas infelizmente não deixou quaisquer bens. A aritmética mostrou ser refractária à lógica lunática. Em dada ocasião, um homem veio pedir-me que lhe recomendasse alguns dos meus livros, visto que se interessava por filosofia. Assim fiz, mas ele regressou no dia seguinte, dizendo-me que estivera a ler um deles, tendo encontrado apenas uma frase que conseguiu compreender, a qual lhe parecia falsa. Perguntei-lhe que frase era, ao que ele respondeu ser a afirmação de que Júlio César está morto. Quando lhe perguntei por que motivo discordava, ele empertigou-se todo e respondeu: “Porque eu sou Júlio César”. Tais exemplos têm de ser suficientes para mostrar que ser excêntrico não é garantia de se ter razão.

A ciência, que sempre teve de combater as crenças populares, enfrenta agora uma das suas batalhas mais difíceis no campo da psicologia.

As pessoas que julgam saber tudo sobre a natureza humana ficam sempre irremediavelmente à deriva quando têm de lidar com uma anomalia. Alguns rapazes nunca chegam a aprender aquilo que nos animais domésticos se chama “ser asseado”. O tipo de pessoas incapazes de tolerar qualquer disparate lida com esses casos através do castigo; o rapaz leva uma tareia, e se repetir a façanha leva uma tareia maior. Todos os médicos que investigaram o assunto sabem que o castigo só agrava o problema. Por vezes a causa é física, mas normalmente é psicológica, apenas curável com a remoção de uma dor reprimida e talvez inconsciente. Contudo, a maioria das pessoas gosta de castigar quem as irrita, pelo que rejeitam a abordagem médica como conversa fiada. O mesmo se aplica a homens que são exibicionistas; enviam-nos para a prisão vezes sem conta, mas assim que saem repetem o delito. Um médico especialista em tais doenças assegurou-me que o exibicionista pode ser curado pelo simples método de usar calças que abotoam atrás e não à frente. Contudo, um tal método não é experimentado porque não satisfaz os impulsos vingativos das pessoas.

De uma maneira geral, é provável que o castigo previna crimes cometidos por pessoas sãs, mas não aqueles que resultam de anomalias psíquicas. Isto é já reconhecido em parte; fazemos uma distinção entre o roubo simples, resultante daquilo a que podemos chamar auto-interesse racional, e a cleptomania, que indicia algo anormal. Não se trata psicopatas homicidas da mesma maneira que homicidas vulgares. Contudo as aberrações sexuais provocam uma tal repulsa que é ainda impossível dar-lhes tratamento clínico em vez de punitivo. A indignação, embora seja uma força socialmente útil em geral, torna-se nociva quando dirigida contra vítimas de doenças apenas tratáveis pelo saber médico.

O mesmo acontece com as nações. Durante a última guerra, muito naturalmente, as pessoas voltaram os seus sentimentos vingativos contra os alemães, que foram severamente castigados após a derrota. Agora muitos argumentam que o tratado de Versalhes foi ridiculamente brando, visto não ter sido capaz de ensinar uma lição; desta vez, dizem-nos, tem de doer a sério. A meu ver, é provável que sejamos mais bem-sucedidos em evitar uma repetição da agressão alemã olhando para as hostes nazis do mesmo modo que vemos os loucos do que pensando neles simplesmente como criminosos. Os loucos, como é óbvio, têm de ser controlados; não lhes permitimos o porte de armas de fogo. De igual modo, a nação alemã deverá ser desarmada. Mas os loucos são controlados por uma questão de prudência, não como castigo, e na medida em que a prudência o permite, tentamos fazê-los felizes. Toda a gente concorda que fazer sofrer um psicopata apenas fará que se torne um homicida pior. Hoje em dia, na Alemanha, há obviamente muitos entre os nazis que são simplesmente criminosos, mas tem de haver também muitos que são mais ou menos insanos. Pondo de parte os líderes (não defendo que sejamos brandos com eles) há maior probabilidade de o grosso da nação alemã aprender a cooperar com o resto do mundo sendo sujeita a um tratamento médico benigno mas firme do que tornando-se pária entre as nações. Os que são castigados raramente aprendem a acalentar bons sentimentos para com aqueles que os castigam. Enquanto os alemães odiarem o resto da humanidade, a paz será instável.

Quando lemos acerca das crenças dos selvagens, ou dos antigos babilónios e egípcios, estas surpreendem-nos pelo que têm de arbitrário e absurdo. Contudo, crenças tão absurdas como essas continuam a ser defendidas pelos ininstruídos mesmo nas sociedades mais civilizadas. Garantiram-me veementemente, nos Estados Unidos, que as pessoas nascidas em Março são azarentas e as que as nascidas em Maio são particularmente atreitas aos calos. Desconheço a história destas superstições, mas derivam provavelmente do zelo sacerdotal babilónio e egípcio. As crenças têm origem nos estratos sociais superiores, e então, como a lama de um rio, penetram gradualmente nas camadas mais ininstruídas; podem levar 3000 ou 4000 anos a escorrer completamente. Pode-se ouvir de um trabalhador asiático um comentário que vem directamente de Platão — não as partes citadas pelos estudiosos, mas aquelas em que o disparate é óbvio, como a ideia de que os homens que não procuram a sabedoria nesta vida renascem como mulheres. Os comentadores dos grandes filósofos ignoram sempre, educadamente, os seus comentários tolos.

Aristóteles, apesar da sua reputação, fartou-se de afirmar tolices. Diz que se deve conceber as crianças no Inverno, quando o vento sopra do norte, e que se as pessoas casam demasiado novas os filhos serão do sexo feminino. Diz-nos que o sangue das fêmeas é mais escuro que o dos machos; que o porco é o único animal atreito à rubéola; que se deve esfregar os ombros com sal, azeite e água morna a um elefante que sofra de insónias; que as mulheres têm menos dentes do que os homens, e por aí em diante. Ainda assim, a maioria dos grandes filósofos consideram-no um modelo de sabedoria.

As superstições sobre dias de sorte e de azar são quase universais. Na antiguidade estas crenças determinavam as acções dos generais. Entre nós, o preconceito contra a Sexta-feira e o número treze é muito intenso; os marinheiros não gostam de navegar às Sextas, muitos hotéis não têm décimo terceiro andar. As superstições sobre a Sexta-feira e o número treze foram em tempos objecto de crença pelos reputadamente sábios; hoje tais homens consideram-nas tolices inofensivas. Mas talvez daqui a 2000 anos se venha igualmente a considerar tolices muitas das crenças dos homens sábios dos nossos tempos. O homem é um animal crédulo, tem de acreditar em alguma coisa; na ausência de um fundamento sólido para a crença, satisfaz-se com maus argumentos.

A crença na “natureza” e no que é “natural” é fonte de muitos erros. Costumava ser, e em grande medida ainda é, bastante útil em medicina. O corpo humano, entregue a si mesmo, tem algum poder de auto-regeneração. Os pequenos cortes, regra geral, saram, as constipações passam, por vezes até as doenças graves desaparecem sem intervenção médica. Contudo, auxiliar a natureza é algo desejável, mesmo nesses casos. Os cortes podem provocar septicemia se não forem desinfectados, as constipações podem converter-se em pneumonia e as doenças graves só são deixadas sem tratamento por aventureiros em regiões remotas, quando não há alternativa. Muitas práticas que se veio a consider “naturais” foram inicialmente tidas por “antinaturais”, por exemplo, vestir e lavar o corpo. Antes de usar vestuário, os homens consideraram certamente que a vida era impossível em climas frios. Nos locais onde não há um mínimo de higiene, as populações sofrem de várias doenças de que as nações ocidentais se libertaram, como o tifo. Muitos se opunham (e há ainda quem se oponha) à vacinação por considerá-la “antinatural”. Mas tais objecções são inconsistentes, pois ninguém acredita que um osso partido se possa regenerar através de um comportamento “natural”. Comer alimentos cozinhados é “antinatural”; como aquecer a casa. O filosofo chinês Lao-Tse, que viveu cerca do ano 600 a.C., opunha-se às estradas, pontes e barcos por serem “antinaturais” e a sua repulsa por tais engenhos mecânicos levou-o a sair da China para viver entre os bárbaros ocidentais. Todos os avanços de civilização foram considerados antinaturais quando eram ainda recentes.

A objecção mais comum à contracepção é esta ser contra a “natureza”. (Por alguma razão não é permitido dizer que o celibato é contra a natureza; não vejo outra razão para isso tirando o facto de não ser novidade). Malthus via apenas três formas de controlar o crescimento demográfico: a abstenção, o vício e a miséria. A abstenção não era susceptível de se praticar em larga escala. O “vício”, isto é, a contracepção, encarava-a, enquanto clérigo, com horror. Restava a miséria. No conforto da sua casa paroquial, Malthus ponderava a miséria da grande maioria como justa, salientando as falácias dos reformadores que esperavam aliviá-la. Os modernos inimigos teológicos da contracepção são menos honestos. Fingem pensar que deus garante o sustento, não importa quantas bocas houver para alimentar. Ignoram o facto de não o ter feito até agora, tendo deixado a humanidade exposta a fomes periódicas, durante as quais sucumbiram milhões. Devemos considerar que defendem, se é que acreditam no que dizem, que deste momento em diante deus vai obrar continuamente o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, coisa que até à data deus entendeu ser desnecessária. Ou talvez afirmem que o sofrimento cá em baixo é de pouca importância; o que importa é o além. Segundo a própria teologia que defendem, muitas das crianças que virão a existir graças à oposição ao controlo da natalidade vão parar ao inferno. Devemos supor, portanto, que se opõem à melhoria das condições de vida na terra pois acham bem que muitos milhões sofram a condenação eterna. Comparado com eles, Malthus parece misericordioso.

As mulheres, enquanto objecto dos mais fortes sentimentos masculinos de amor e repulsa, provocam emoções complexas que se exprime na “sabedoria” proverbial.

Quase toda a gente se permite alguma generalização de todo injustificável acerca das mulheres. Os homens casados, quando generalizam sobre esse tema, fazem-no a partir das suas esposas; as mulheres a partir de si próprias. Seria divertido escrever uma história das opiniões masculinas acerca das mulheres. Na antiguidade, quando a supremacia masculina era inquestionável e a ética cristã ainda desconhecida, as mulheres eram vistas como inofensivas mas algo tolas, e um homem que as levasse a sério era de certo modo desprezado. Platão achava que era um grande mal do teatro o facto de o dramaturgo ter de imitar mulheres ao criar papéis femininos. Com a chegada do cristianismo a mulher assumiu um novo papel, o da tentadora; mas ao mesmo tempo também a viam capaz de alcançar a santidade. Nos tempos vitorianos deu-se muito mais ênfase à imagem da santa que à da tentadora; os homens vitorianos não podiam admitir ser susceptíveis à tentação. A superior virtude das mulheres tornou-se uma razão para as excluir da política, onde, segundo se pensava, era impossível manter uma virtude ideal. Mas as primeiras feministas viraram o argumento do avesso, afirmando que a participação das mulheres tornaria a política mais nobre. Tendo-se mostrado que isto era uma ilusão, fala-se menos na superior virtude das mulheres, embora ainda haja homens que aderem à visão monástica da mulher como a tentadora. As próprias mulheres, na sua maioria, vêem-se como o sexo sensível, cuja função é remediar os males que resultam das impetuosas parvoíces masculinas. Da minha parte, desconfio de todas as generalizações acerca das mulheres, favoráveis ou desfavoráveis, masculinas ou femininas, antigas ou modernas; todas, devo dizer, nascem da falta de experiência.

A atitude profundamente irracional de ambos os sexos para com as mulheres é visível na literatura, particularmente na má. Nos maus romances escritos por homens, há a mulher por quem o autor está apaixonado, que normalmente tem todos os encantos, mas que é de algum modo indefesa e requer a protecção masculina; por vezes, contudo, como a Cleópatra de Shakespeare, é objecto de um ódio exacerbado, encarada como profunda e irremediavelmente malévola. Ao caracterizar a heroína, o autor masculino não escreve a partir da experiência, limitando-se a objectivar as suas próprias emoções. No que respeita aos seus outros personagens femininos, torna-se mais objectivo e talvez até se apoie no bloco de notas; mas quando se apaixona, a paixão cria uma neblina entre si e o objecto da sua devoção. As romancistas, de igual modo, enchem os seus livros com dois tipos de mulher. Um deles é a própria autora, atraente e simpática, objecto de desejo pelos que têm mau carácter e de amor pelos bondosos — sensível, nobre, sempre incompreendida. O outro tipo é representado por todas as outras mulheres, normalmente caracterizadas como mesquinhas, maliciosas, cruéis, traiçoeiras. Dir-se-ia que ajuizar as mulheres imparcialmente não é tarefa fácil, quer para homens quer para mulheres.

As generalizações acerca das características nacionais são tão comuns e injustificadas como as generalizações acerca das mulheres. Até 1870, os alemães eram considerados uma nação de caixas-de-óculos, indo buscar tudo à consciência íntima, e pouco cientes do mundo exterior, mas desde 1870 teve de se repensar profundamente esta concepção. Os norte-americanos, na sua maioria, pareciam imaginar os franceses perpetuamente metidos em intrigas amorosas; Walt Whitman, num dos seus catálogos, fala do “adúltero casal francês no pecaminoso sofá”. Os norte-americanos que vão viver para França ficam perplexos e talvez desapontados, com a intensidade da vida familiar. Antes da revolução russa, atribuía-se aos russos uma alma eslava mística, que, embora os impedisse de ter um comportamento sensível normal, dava-lhes uma espécie de sabedoria profunda a que as nações mais pragmáticas não podiam aspirar. De súbito, tudo mudou: o misticismo tornou-se tabu e só se tolera os ideais mais terrenos. A verdade é que aquilo que uma nação entende ser o carácter de outra depende de alguns indivíduos notáveis, ou da classe que por acaso se encontre no poder. Por esta razão, todas as generalizações nesta matéria se sujeitam a ser desmentidas por qualquer mudança política importante.

De modo a evitar as várias opiniões tolas a que a humanidade é atreita, não é preciso ter uma inteligência sobre-humana. Algumas regras simples bastam para nos resguardar, não de todos os tipos de erro, mas ao menos das palermices.

Se se puder resolver o assunto através da observação, faça-a o próprio leitor. Aristóteles podia ter evitado o erro de pensar que as mulheres têm menos dentes do que os homens simplesmente pedindo à Sra. Aristóteles que abrisse a boca enquanto os contava. Não o fez porque estava convencido de que sabia. Pensar que sabemos algo quando na verdade não sabemos é um erro fatal, a que todos somos vulneráveis. Acredito que os ouriços comem besouros negros porque me disseram que é assim; mas se estivesse a escrever um livro acerca dos hábitos dos ouriços, não devia comprometer-me antes de ver um deles desfrutar de tal refeição nada apetecível. Aristóteles, contudo, foi menos cauteloso. Os autores antigos e medievais sabiam tudo acerca de unicórnios e salamandras; nenhum deles achou necessário evitar afirmações dogmáticas acerca destas criaturas pelo facto de nunca terem visto uma.

Muitas questões, contudo, não se deixam resolver tão facilmente pela experiência. Se, como os seres humanos na sua maioria, o leitor tem muitas convicções firmes acerca de tais assuntos, há formas de se aperceber dos seus próprios preconceitos. Se uma opinião contrária à sua o irritar, isso é sinal de que sabe, implicitamente, que não tem boas razões para pensar da forma que pensa. Se alguém afirmar que dois mais dois são cinco, ou que a Islândia fica no equador, sentirá pena e não raiva, a menos que seja tão ignorante em aritmética e geografia que esta opinião abale as suas próprias convicções contrárias. As controvérsias mais violentas são as que dizem respeito a assuntos acerca dos quais não há indícios suficientes que sustentem qualquer uma das posições. Usa-se a perseguição em teologia e não na aritmética, porque na aritmética há conhecimento, ao passo que na teologia só há opiniões. Portanto, sempre que der consigo a ficar zangado por causa de uma diferença de opinião, fique alerta: provavelmente descobrirá, pensando outra vez no assunto, que as suas crenças ultrapassam aquilo que a informação disponível permite afirmar.

Uma boa maneira de se libertar de algumas formas de dogmatismo é ganhar consciência das opiniões que se defende em círculos sociais diferentes dos seus. Quando era jovem, vivi muito tempo fora do meu país, na França, na Alemanha, na Itália e nos Estados Unidos. Vi que isto foi muito útil para diminuir a força dos preconceitos insulares. Se não puder viajar, procure as pessoas com quem discorda, leia um jornal que pertença a um partido que não o seu. Se as pessoas e o jornal lhe parecerem loucos, perversos ou maus, lembre-se de que é assim que você parece aos olhos deles. Nesta opinião, ambos os partidos podem ter razão, mas não podem ambos estar enganados. Esta reflexão devia inspirar alguma prudência.

Conhecer os costumes estrangeiros, contudo, nem sempre tem um efeito benéfico. No século XVII, quando os Manchu conquistaram a China, era costume entre os chineses as mulheres terem pés pequenos e entre os Manchu os homens usarem rabo-de-cavalo. Em vez de ambos abandonarem o seu hábito pateta, cada um deles adoptou o costume pateta do outro e os chineses continuaram a usar rabos-de-cavalo até acabar o domínio dos Manchu, com a revolução de 1911.

Para os que têm uma imaginação suficientemente fértil, é boa ideia imaginar uma discussão com alguém que tenha uma opinião diferente. Isto tem uma vantagem, e só uma, relativamente a uma conversa real com um adversário; é o facto de este método não estar sujeito às mesmas limitações de tempo e espaço. Mahatma Ghandi despreza os caminhos-de-ferro, os barcos a vapor e as máquinas; Ghandi gostaria de reverter o processo da revolução industrial. É possível que nunca tenha a oportunidade de encontrar alguém que defenda verdadeiramente esta opinião, porque nos países ocidentais as pessoas na sua maioria pressupõem que a tecnologia moderna é uma vantagem. Mas se se quiser certificar de que tem razão ao concordar com a opinião dominante, verá que é boa ideia testar os argumentos que lhe ocorrem tendo em conta o que Ghandi poderia dizer para refutá-los. Por vezes cheguei mesmo a mudar de opinião em resultado deste tipo de diálogo imaginário, e quando não chegava a esse ponto, tornei-me amiúde menos dogmático e presunçoso, ao me aperceber da possível razoabilidade de um adversário hipotético.

Tenha muito cuidado com as opiniões que suscitam orgulho. Tanto os homens como as mulheres, nove em cada dez, estão firmemente convictos da superioridade do seu sexo. Há indícios suficientes para ambas as partes. Se for homem, poderá dizer que a maior parte dos poetas e cientistas são do sexo masculino; se for mulher, poderá responder que também os criminosos na sua maioria o são. A questão em si mesma não tem resposta, mas o orgulho faz que as pessoas na sua maioria não vejam isto. Todos pensamos, seja qual for a parte do mundo onde nascemos, que o nosso país é superior a todos os outros. Ao ver que cada nação tem os seus méritos e deméritos típicos, ajustamos o nosso cânone de valores de modo a deixar claro que os méritos da nossa nação são os que realmente importam, ao passo que os seus deméritos são comparativamente triviais. Aqui, mais uma vez, o homem racional admitirá que a questão não tem qualquer resposta que se possa provar. É mais difícil lidar com o orgulho do homem enquanto homem, visto que não podemos discutir o assunto com qualquer tipo de mente não-humana. A única forma que conheço de lidar com esta vaidade humana geral é lembrarmo-nos de que o homem é um breve episódio na vida de um pequeno planeta no canto do universo, e que, tanto quanto sabemos, noutras partes do cosmos pode haver seres tão superiores a nós como nós somos superiores às alforrecas.

Outras paixões, além do orgulho, são fontes comuns de erro; entre estas talvez a mais importante seja o medo. O medo por vezes age directamente, inventando-se rumores de catástrofe em tempo de guerra, ou imaginando-se objectos de terror, como os fantasmas; por vezes age indirectamente, gerando a crença em algo reconfortante, como o elixir da longa vida ou o paraíso para nós próprios e o inferno para os inimigos. O medo tem muitas formas — medo da morte, medo do escuro, medo do desconhecido, medo das multidões, também aquele medo vago e generalizado que afecta os que escondem de si próprios os seus terrores mais específicos. Antes de ter admitido a si próprio os seus medos e de se ter protegido através de um difícil exercício de vontade contra o poder destes medos para criar mitos, não pode esperar ser verdadeiramente capaz de pensar em vários assuntos de grande importância, particularmente aqueles que envolvem crenças religiosas. O medo é a principal fonte de superstição e uma das principais fontes da crueldade. Conquistar o medo é o começo da sabedoria, tanto na busca da verdade como na tentativa de alcançar um modo de vida digno.

Há duas formas de evitar o medo: uma delas é convencer-nos de que somos imunes ao desastre, a outra é praticando abertamente a coragem. A última é difícil e torna-se impossível para todos, para lá de certo ponto. A primeira sempre foi portanto a mais popular. A magia primitiva tem a função de garantir a segurança, quer prejudicando os inimigos quer protegendo o próprio através de talismãs, feitiços e encantamentos. Sem qualquer mudança substancial, a crença em tais maneiras de evitar o perigo sobreviveu ao longo dos muitos séculos de civilização babilónia, espalhando-se da Babilónia através do império de Alexandre e adquirida pelos romanos quando estes absorveram a cultura helénica. Dos romanos passou à cristandade medieval e ao islão. A ciência desintensificou a crença na magia; contudo, muitas pessoas têm mais fé nos amuletos do que se dispõem a admitir, e a feitiçaria, embora condenada pela igreja, continua a ser oficialmente um pecado praticável.

A magia, contudo, era uma forma primitiva de fugir aos terrores e além disso não muito eficaz, pois os feiticeiros malvados podiam sempre mostrar-se mais poderosos do que os bons. Nos séculos XV, XVI e XVII, o terror às bruxas e feiticeiros levou à morte de centenas de milhar na fogueira, condenados por tais crimes. Mas as crenças mais recentes, em particular no que diz respeito à vida futura, procuraram formas mais eficazes de combater o medo. Sócrates, no dia da sua morte (a acreditarmos em Platão), exprimiu a convicção de que na vida seguinte iria desfrutar a companhia dos deuses e heróis, rodeado de espíritos justos que jamais levantariam objecções aos seus argumentos infinitos. Platão, na sua República, deixou claro que o estado tem de impor o optimismo acerca da vida futura, não por este ser verdadeiro mas por fazer que os soldados fiquem mais dispostos a morrer em batalha. Platão não tolerava qualquer dos mitos tradicionais acerca do Hades, pois estes representavam os espíritos dos mortos como infelizes.

O cristianismo ortodoxo, durante a idade da fé, estabeleceu regras muito concretas para a salvação. Em primeiro lugar, a pessoa tem de ser baptizada; depois, tem de evitar todos os erros teológicos; por fim, antes de morrer, tem de se arrepender dos pecados e receber a absolvição. Nada disto a salvaria do purgatório, mas garantiria a sua eventual entrada no céu. Nem era necessário saber teologia. Um eminente cardeal afirmou peremptoriamente que os requisitos da ortodoxia seriam satisfeitos se a pessoa murmurasse no leito de morte: “acredito em tudo o que a igreja acredita; a igreja acredita em tudo o que eu acredito”. Tais orientações bastante precisas deviam assegurar aos cristãos que encontrarão o caminho para o céu. Não obstante, o pavor do inferno persistiu e provocou, em tempos mais recentes, uma suavização dos dogmas relativamente a quem será condenado. A doutrina, professada por muitos cristãos modernos, de que toda a gente irá para o céu, devia suprimir o medo da morte mas, na verdade, este medo é demasiado instintivo para que se possa vencer facilmente. F. W. H. Meyers, a quem o espiritualismo converteu à crença numa vida futura, questionou uma mulher, que recentemente perdera a filha, acerca do que pensava que tivesse sucedido à alma dela. A mãe respondeu: “Bem, suponho que esteja a gozar a felicidade eterna, mas preferia que não falasse em assuntos tão desagradáveis”. Apesar de tudo aquilo de que a teologia é capaz, o céu continua a ser, para maioria das pessoas, um “assunto desagradável”.

As religiões mais refinadas, como a de Marco Aurélio e de Espinosa, preocupam-se ainda com a conquista do medo. A doutrina estóica era simples: defendia que o único bem verdadeiro é a virtude, da qual nenhum inimigo me pode privar; consequentemente, não há necessidade de temer os inimigos. A dificuldade estava em que ninguém podia acreditar verdadeiramente que o único bem era a virtude, nem mesmo Marco Aurélio, que, como imperador, procurou não apenas tornar virtuosos os seus súbditos, mas protegê-los contra os bárbaros, a peste e a fome. Espinosa ensinou uma doutrina semelhante. Segundo ele, o verdadeiro bem consiste na indiferença face às riquezas mundanas. Ambos procuraram escapar ao medo fingindo que coisas como o sofrimento físico não são verdadeiramente más. Esta é uma forma nobre de fugir ao medo, mas continua a basear-se numa crença falsa. Se fosse genuinamente aceite, teria o efeito negativo de tornar os homens indiferentes, não apenas ao seu próprio sofrimento, mas também ao de outros.

Sob a influência do medo intenso, quase toda a gente fica supersticiosa. Os marinheiros que atiraram Jonas borda fora imaginaram que a sua presença era a causa da tempestade que ameaçava o navio de naufragar. Imbuídos de um espírito similar, os japoneses, quando do terramoto de Tóquio, lançaram-se a massacrar coreanos e liberais. Quando os romanos alcançaram a vitória nas guerras púnicas, os cartagineses convenceram-se de que o seu infortúnio se devia a um certo laxismo para com o culto a Moloch. Moloch gostava que lhe sacrificassem crianças, e preferia as da aristocracia; mas as famílias nobres de Cartago adoptaram a prática de substituir secretamente os seus próprios filhos por crianças plebeias. Isto, acreditava-se, desagradou ao deus, e nos piores momentos até as crianças da mais alta aristocracia foram devidamente imoladas pelo fogo. Por estranho que pareça, os romanos saíram vitoriosos apesar desta reforma democrática por parte dos seus inimigos.

O medo colectivo estimula os instintos gregários e tende a gerar hostilidade para com aqueles que se não considera membros do rebanho. Assim foi durante a revolução francesa, quando o pavor aos exércitos estrangeiros criou o reino do terror. É de temer que os nazis, à medida que a derrota se aproxima, intensifiquem a sua campanha de exterminação dos judeus. O medo gera impulsos cruéis e portanto cria as superstições que parecem justificar a crueldade. Não se pode esperar que um homem, uma multidão ou uma nação ajam humanamente ou pensem de modo saudável sob a influência do medo intenso. Por esta razão, os cobardes são mais dados à crueldade do que os homens corajosos e também mais dados à superstição. Quando digo isto, penso em homens que são corajosos em todos os sentidos, não apenas no que respeita a enfrentar a morte. Muitos homens terão coragem de morrer heroicamente, mas não terão coragem de afirmar, ou mesmo de pensar, que a causa pela qual se lhes pede que morram é indigna. A calúnia é, para os homens na sua maioira, mais dolorosa do que a morte; essa é uma razão por que, em tempos de exaltação colectiva, tão poucos homens se atrevem a discordar da opinião dominante. Nenhum cartaginês renegou Moloch, porque fazê-lo exigia mais coragem do que a necessária para enfrentar a morte na batalha.

Mas temos sido demasiado severos. As superstições nem sempre são cruéis e sombrias; muitas vezes contribuem para a jovialidade da vida. Uma vez fui contactado pelo deus Osíris, que me deu o seu número de telefone; nessa altura, vivia num subúrbio de Boston. Embora não me tenha juntado aos seus seguidores, a carta deles encheu-me de prazer. Recebi frequentemente cartas de homens que se apresentavam como sendo o messias, pedindo-me que não omitisse nas minhas palestras este facto tão importante. Durante a lei seca, havia uma seita que defendia que a celebração da comunhão com whisky em vez de vinho; esta crença deu-lhes o direito legal ao abastecimento de bebidas espirituosas e a seita cresceu rapidamente. Há uma seita em Inglaterra segundo a qual os ingleses são as dez tribos perdidas; há uma seita mais austera, que defende serem apenas as tribos de Ephraim e Manasseh. Sempre que encontro um membro de uma destas duas seitas declaro ser membro da outra, e daqui resulta uma argumentação muito agradável. Gosto igualmente dos homens que estudam a grande pirâmide, com vista a decifrar a sua sabedoria mística. Muito bons livros se escreveu sobre este assunto, alguns dos quais me foram apresentados pelos seus autores. É um facto singular que a grande pirâmide prediga sempre com exactidão o curso da história mundial até à data de publicação do livro em causa, mas que após essa data se torne menos fiável. Em geral, o autor espera, muito em breve, a ocorrência de guerras no Egipto, seguidas pelo armagedão e a vinda do anticristo, mas por esta altura já se identificou tanta gente com o anticristo que o leitor se deixa levar relutantemente ao cepticismo.

Admiro em particular uma profetiza que vivia na margem de um lago, a norte do estado de Nova Iorque, por volta de 1820. Anunciou aos seus vários seguidores que tinha o poder de caminhar sobre a água e comprometeu-se a fazê-lo às onze horas, numa certa manhã. Na hora anunciada, os milhares de fiéis reuniram-se na margem do lago. Ela falou-lhes, perguntando: “Todos estão convencidos de que posso caminhar sobre as águas?” Todos responderam em uníssono: “Estamos”. “Nesse caso”, anunciou, “não há necessidade de fazê-lo”. E todos foram para casa muito comovidos.

Talvez o mundo perdesse algum do seu interesse e diversidade se tais crenças fossem completamente substituídas pela ciência fria. Talvez nos possamos alegrar com os abecedarianos, assim chamados porque, tendo rejeitado todo o ensino profano, consideravam imoral que se aprendesse o abc. E podemos admirar a perplexidade do jesuíta sul-americano que se perguntava como foi possível a preguiça ter viajado, desde o tempo do dilúvio, do Monte Ararat até ao Peru — uma viagem que parecia quase incrível, dada a lentidão dos seus movimentos. Um homem sábio desfrutará os bens que há em abundância, e de lixo intelectual encontrará abundante dieta, no nosso tempo como em qualquer outro.

Bertrand Russell
Unpopular Essays (Routledge, 1995). Publicado originalmente em 1943.
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ISSN 1749-8457