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Crítica
11 de Julho de 2008   Filosofia

Sobreveniência, superveniência e o quarto português

Vítor Guerreiro

No seguimento de um trabalho de tradução de alguns textos fundamentais da filosofia analítica anglo-saxónica, tenho vindo a insistir, através de pequenos artigos que publico no meu blogue, na consideração cuidada de problemas respeitantes à fixação do léxico filosófico português. Esta tarefa é dificultada pelas tradições acríticas que ao longo do tempo têm ocupado o lugar das tradições críticas que não temos mas nos fazem falta.

Um dos temas que abordei sumariamente foi a dificuldade de aceitação de palavras bem formadas com prefixo de negação genuíno, mas que não constam no dicionário, em detrimento de soluções que apenas copiam a morfologia do inglês, sem atender aos aspectos semânticos. Por exemplo, da mesma maneira que formamos as palavras “amoral” e “imoral” com prefixos de negação que implicam respectivamente neutralidade e oposição (não achamos estas palavras estranhas por causa do efeito psicológico de já terem sido usadas por alguma autoridade ou por constarem no dicionário), podíamos aplicar o mesmo raciocínio na formação de palavras que não aparecem nos textos académicos mas que, se fossem usadas, enriqueceriam o nosso léxico contribuindo a longo prazo para a substituição das tradições acríticas por tradições críticas. Por exemplo, ao traduzir expressões como “nonphysicalist ontology” a tendência geral é a de copiar a morfologia inglesa, sem considerar as possibilidades semânticas: “ontologia não fisicista”. Contudo, em inglês, “non” é um prefixo de negação genuíno, diferente de “not” que, como “não”, não é um prefixo. Assim, se tivéssemos a coragem de traduzir a expressão por “ontologia infisicista” teríamos também a vantagem de obter, por extensão, um termo neutro: “afísico” (aquilo que não é físico nem mental). De igual modo, traduziríamos “nonhuman animals” por “animais inumanos” em vez de “animais não-humanos” acabando também com o disparate de “inumano” ser o mesmo que “desumano”. Um disparate semelhante é escrever “fisicismo não reducionista” em vez de simplesmente “fisicismo irreducionista”.

Outro assunto que abordei sumariamente no meu blogue foi a tradução de “the mind-body problem”, defendendo a opção por “problema da mente-corpo” contra o hábito de escrever “problema mente-corpo”, explicando a razão por que me parece que esse erro é tão apelativo. A explicação continua a ser a mesma: o facto de tratarmos o léxico inglês como se fosse apenas um conjunto de unidades morfológicas e não de unidades semânticas. Fixamo-nos excessivamente nos aspectos formais devido a um conhecimento insuficiente da língua inglesa misturado com o atavismo português de desconfiar de tudo o que não é sancionado pela autoridade, seja ela a igreja, o estado ou o superfilósofo analítico. Um exemplo claro disto é não passar pela cabeça de quem quer que seja que “infirmado” soe mal. Isto porque aparece no dicionário. Contudo, se fosse esta a primeira vez a usarmos a palavra, imediatamente se poriam algumas orelhas de pé, protestando que “não afirmado” seria mais correcto ou que soaria melhor. Ou seja: à falta de uma autoridade autóctone que sancione o hábito, recorrer-se-ia à cópia da fonética inglesa, tendo assim a ilusão de participar na legitimidade de alguma autoridade.

Assim, o tradutor português acrítico de textos filosóficos encontra-se numa situação parecida à do homem no quarto chinês de John Searle: lida com as palavras como se elas fossem meras construções morfológicas e ignora o facto de que são também unidades semânticas. Limita-se a substituir palavras por palavras segundo o seu aspecto formal, seguindo uma série de instruções mecânicas em português, que constituem a tradição acrítica que temos e que inibe a tradição crítica que não temos. Esta situação condena o nosso tradutor preso no quarto português a uma miséria criativa e a uma relação de subalternidade para com a escrita filosófica anglo-saxónica que por não cair nestes disparates faz sempre que precisa exactamente aquilo que nós, no quarto português, ficamos cheios de medo de fazer. O curioso é depois queixarmo-nos de não ter tradição crítica. Defendemos do ponto de vista do dever aquilo que negamos todos os dias do ponto de vista pragmático. Contudo, para que este estado de coisas mude, basta mandar para o lixo as instruções mecânicas acríticas, sair do quarto português e pensar nas palavras como unidades semânticas, além de morfológicas. Afinal de contas, não estamos realmente presos ao quarto chinês, uma vez que somos máquinas capazes de lidar com a semântica e não meros programas formais.

O termo “sobreveniência” traduz o inglês “supervenience” e é usado em filosofia para designar a relação entre propriedades de “segunda ordem” e propriedades de “primeira ordem” ou a relação entre acontecimentos mentais e acontecimentos físicos: se dois acontecimentos diferem num aspecto mental então diferem num aspecto físico (Davidson, Acontecimentos Mentais). Diz-se assim de um acontecimento mental que as suas propriedades sobrevêm nas propriedades físicas, as quais são subvenientes. Ou seja: “De acordo com a tese da sobreveniência, as leis da física e as relações causais são fundamentais; elas, e só elas, em última instância, são responsáveis pela estrutura causal/nómica do mundo”. (J. Kim) A sobreveniência decorre de se aceitar a generalidade da física e a realidade da mente.

Embora a opção mais indolor, económica e lógica para traduzir “supervenience” seja “sobreveniência” é bastante comum “superveniência”. Eis algumas razões pelas quais penso que “sobreveniência” é preferível a “superveniência” para traduzir o inglês “supervenience”.

De novo sentados no nosso quarto português, recebemos o input “supervenience” e imediatamente debitamos a sua cópia morfológica “superveniência”, seguindo a nossa querida sequência de regras formais. Aqui, em vez de um programa formal a simular a inteligência, temos uma máquina inteligente a simular um programa formal. Uma consequência bastante comum disto é cometermos o erro recorrente de não atender aos aspectos semânticos quando lidamos sobretudo com alguns pares de palavras inglesas que têm uma relação semântica inversa com outros pares de palavras portuguesas: ordinary-vulgar / vulgar-ordinário; happening-event / evento-acontecimento. Claro que, presos no quarto português, somos cegos a esta relação semântica inversa e limitamo-nos a traçar descansadamente as correspondências morfológicas. Quando outra máquina nos tenta corrigir chamando a atenção para os aspectos semânticos, receamos seguir o seu argumento, pois partimos do princípio que os leitores estão, como nós, presos no quarto português e que se formos demasiado criativos a nossa escrita soará a chinês aos seus ouvidos. Agarramo-nos à correspondência morfológica como se fosse um salva-vidas linguístico sem ver que esta psicofoda inibe a formação de uma tradição autónoma, pujante. Impede-nos de pensar. Substituir “sobreveniência” por “superveniência” equivale ao erro de traduzir “causation” por “causação”, supondo que há duas palavras diferentes com extensões diferentes: “causalidade” e “causação”, sendo “causação” um termo “mais filosófico”. Este é um erro típico de quem está encurralado no psicofódico quarto português.

Vou agora tentar responder a algumas das objecções que me têm sido levantadas. São estas, respectivamente: 1) que “sobreveniência” e “superveniência” são palavras diferentes com extensão diferente; 2) que é preciso separar o contexto corrente do contexto filosófico; 3) que “superveniência” é mais simples ou mais clara.

Objecção 1

Em primeiro lugar, a etimologia de “sobrevir” e “supervene” é a mesma: ambas derivam do latim supervenire. Vejamos o Online Etymology Dictionary:

Supervene: 1594 (implied in supervenient), from L. supervenire “come on top of”, from super “over, upon” (see super-) + venire “come”.

A definição de “sobrevir” no dicionário online Priberam:

do Lat. supervenire

v. int., vir em seguida, vir depois de; acontecer, ocorrer depois; chegar ou suceder subitamente inesperadamente.

Objecção 2

Muitas das palavras que constam no léxico filosófico são também palavras de uso corrente (o que não acontece só na filosofia): “propriedade”, “relação”, “necessidade”, “paradoxo”, “universal”, “particular”, “concreto”, “causalidade”, “identidade”, são apenas alguns exemplos. Não é por isto que desatamos a confundir os “estados do centro da Europa” com o materialismo de “estados centrais”. Afinal, nem todos estamos presos no quarto português, há que aplicar o princípio de caridade. Em todos estes exemplos, depreendemos pelo contexto qual o registo a dar ao conceito. Se o contexto for filosófico, temos de o ler nesse registo. Em circunstância alguma forçamos uma construção diferente só para indicar que temos um conceito filosófico. Não andamos exactamente por aí a inventar “diferanças” à Derrida — ainda acabamos com um léxico “sem órgãos” ou melhor, sem pés nem cabeça. Se não levantamos esta objecção com outras palavras do léxico filosófico que têm também um sentido corrente, então não há necessidade de introduzir uma palavra bárbara para dizer algo para o qual já dispomos de léxico, sem quebrar a continuidade do uso corrente e do uso específico. O que aliás, é uma vantagem: saber escrever é cortar palavras e não multiplicá-las.

Objecção 3

Contudo, a opção por “superveniência” podia justificar-se caso nos permitisse pensar melhor — o que não sucede, pois “sobrevém” e “supervene” são dois espécimes do mesmo tipo verbal — ou caso nos permitisse construir melhor as frases. O que também não sucede. Tomemos o seguinte exemplo:

  1. x supervenes on y
  2. x sobrevém em y.
  3. x é superveniente em y.

Como vemos, a opção por “superveniência” obriga-nos a fazer construções passivas, o que nos afasta desnecessariamente do original. Desnecessariamente porque podemos perfeitamente evitá-lo sem perda de sentido. Qual seria a alternativa, “x supervém em y”?

A opção por “sobreveniência” permite-nos, além disso, lidar de uma forma mais elegante com a generalidade dos contextos em que a palavra surge na prosa inglesa.

Eis um exemplo:

“I hope that healthy conditions will soon SUPERVENE in Germany” (Einstein, citado por Christopher Hitchens em God is Not Great)

Vamos traduzir (ignorando de momento a possibilidade de substituir “supervene” por outra palavra ou expressão que funcione bem naquele contexto):

  1. "Espero que em breve sobrevenham condições saudáveis na Alemanha..."
  2. "Espero que em breve sejam supervenientes na Alemanha condições saudáveis..."

Há dúvidas sobre qual das duas opções é a mais bizantina?

Contudo, fui já confrontado com a objecção de que neste excerto a palavra “supervene” não está a ser adequadamente usada em inglês, que neste contexto não se deve usar esta palavra e sim expressões menos pomposas. Para obviar a esta objecção, reuni 19 exemplos do uso de “supervene” na literatura inglesa, de Darwin a Alan Poe, dos quais cito aqui alguns. Uma pesquisa mais paciente iria com certeza indicar muitos mais exemplos. O leitor pode examinar cada um destes exemplos e concluir, naturalmente, que em todos eles a opção mais elegante e mais simples é “sobrevém”, “sobrevir” ou “sobrevêm”.

Charles Darwin

I believe that this change of colour SUPERVENED quite gradually (The Effects of Cross and Self-fertilization in the Vegetable Kindgom); but in this case the additional fear of divine punishment often SUPERVENES (Descent of Man); the new ones will not be entombed till fresh subsidence SUPERVENES (The Foundations of the Origin of Species); for the process of aggregation seems invariably to SUPERVENE slowly and very gradually in water (Insectivorous Plants); In a future chapter I shall attempt to show that the adult differs from its embryo, owing to variations having SUPERVENED at a not early age (The Origin of Species).

Edgar Alan Poe

the tall candles sank into nothingness; their flames went out utterly; the blackness of darkness SUPERVENED (The Pit and the Pendulum); One experiment succeded another, and the customary effects SUPERVENED (The Premature Burial); and all the usual rigorous illness immediately SUPERVENED (Ligeia); The audience arose; and the usual tumult immediately SUPERVENED (The Spectacles); That feeble thrill had vibrated itself into quiescence. Many lustra had SUPERVENED (The Colloquy of Monos and Una); the usual acute susceptibility and exhaltation of the mesmeric perception had SUPERVENED (Mesmeric Revelation); until death should SUPERVENE (The Facts in the Case of Mr. Valdemar)

Charles Dickens

Thus a few ghostly moments SUPERVENED (Little Dorrit); Now, the symptoms of that disease being identical with those of another disease called tetanus, which might SUPERVENE on Z's running a rusty nail into a certain part of his foot (All the Year Round — Five New Points of Criminal Law)

Nathaniel Hawthorne

that an obdurate scar may SUPERVENE upon its very tenderness (The Marble Faun)

G. B. Shaw

Almost in the same breath, a strain of gallantry which was incorrigible in him, and to which his humor and his tenderness to women whom he liked gave variety and charm, would SUPERVENE upon his seriousness with a rapidity which her far less flexible temperament could not follow. (An Unsocial Socialist)

Outro aspecto a favor de “sobreveniência” é o modo como construímos outras palavras no nosso vocabulário: sobrevivência (e não supervivência), sobretudo (e não supertudo), sobreposição (e não superposição), sobrecarga (e não supercarga), sobrenfatizar (e não superenfatizar)...

Dito isto, resta apenas um motivo para nos agarrarmos a “superveniência”: a sonoridade do inglês e a sensação epidérmica de “fixe” linguístico, dada pelo prefixo “super” (que é apenas uma forma de repor o mesmo atavismo de que falámos atrás). Mas isto não é motivo filosófico que se apresente. Também não conta como razão estética, como vimos pelo estudo dos exemplos literários acima. Estes hábitos impedem que desenvolvamos um léxico forte e autónomo, que seja fiel aos correspondentes anglo-saxónicos mas que não se limite ao mero copianço formal dos mesmos.

Vítor Guerreiro

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ISSN 1749-8457