Início Menu
27 de Outubro de 2008   Filosofia política

Sartre e o anti-semitismo

George Orwell
Tradução de Desidério Murcho
Portrait of the Anti-Semite
Jean-Paul Sartre
Tradução de Erik de Mauny
Secker & Warburg, 1948, 128 pp.

O anti-semitismo é obviamente um assunto que precisa de ser seriamente estudado, mas parece improvável que o venha a ser nos próximos tempos. O problema é que enquanto o anti-semitismo for encarado simplesmente como uma aberração vergonhosa, quase um crime, qualquer pessoa suficientemente literata para ter ouvido a palavra irá obviamente declarar-se-lhe imune; e em resultado disso, livros sobre o anti-semitismo tendem a ser meros exercícios de tirar argueiros dos olhos dos outros. O livro de Monsieur Sartre não é excepção, e nada ganhou provavelmente por ter sido escrito em 1944, no período de embaraço, autodesculpabilização e caça às bruxas que se seguiu à Libertação.

Monsieur Sartre começa por nos informar que o anti-semitismo não tem base racional: em última análise, não existirá numa sociedade sem classes, e que entretanto pode talvez ser combatido em certa medida pela educação e pela propaganda. Dificilmente valeria a pena formular estas conclusões, e pelo meio encontramos pouca discussão real do tema, apesar de muita celebração, e nenhuma informação factual que valha a pena mencionar.

Somos solenemente informados de que o anti-semitismo é quase desconhecido entre a classe trabalhadora. É uma enfermidade da burguesia, e, acima de tudo, desse bode no qual se penduram todos os nossos pecados: a “pequena burguesia”. Entre a burguesia raramente se encontra em cientistas e engenheiros. É uma peculiaridade de pessoas que concebem a nacionalidade em termos de cultura herdada e a propriedade em termos de terra.

Monsieur Sartre não explica por que razão estas pessoas hão-de implicar com os judeus e não com outra vítima, excepto numa passagem na qual defende a teoria antiga e muito duvidosa de que se odeia os judeus porque foram supostamente responsáveis pela crucifixão. Sartre não faz qualquer tentativa de relacionar o anti-semitismo com fenómenos tão obviamente associados como, por exemplo, preconceitos de cor.

Parte do que está errado com a abordagem de Monsieur Sartre é talvez denunciado pelo título. “O” anti-semita, parece Sartre sugerir ao longo de todo o livro, é sempre o mesmo tipo de pessoa, reconhecível à primeira vista e, digamos, sempre em acção. Na verdade, basta observar um pouco as coisas para ver que o anti-semitismo está extremamente espalhado, não se restringe a uma classe e, acima de tudo, excepto nos piores casos, é intermitente.

Mas estes factos não se ajustariam à visão atomizada da sociedade de Monsieur Sartre. Não há, quase chega a afirmar, isso a que se chama um ser humano, só há diferentes categorias de homens, como “o” trabalhador e “o” burguês, todos classificáveis em grande parte como insectos. Outra destas criaturas insectóides é “o” judeu que, ao que parece, se pode habitualmente identificar pela aparência física. É verdadeiro que há dois tipos de judeu, o “judeu autêntico”, que quer continuar judaico, e o “judeu inautêntico”, que gostaria de ser assimilado; mas um judeu, seja qual for a categoria a que pertence, não é apenas outro ser humano. Erra, nesta fase da história, se tentar ser assimilado, e nós erramos se tentarmos ignorar a sua origem racial. Ele deve ser aceite na comunidade nacional, não como um inglês ou francês comum, ou seja o que for, mas como um judeu.

Ver-se-á que esta posição está em si perigosamente perto do anti-semitismo. O preconceito racial de qualquer tipo é uma neurose, e é duvidoso que a argumentação possa aumentá-la ou diminui-la, mas o efeito líquido de livros deste género, se tiverem algum, é provavelmente tornar o anti-semitismo ligeiramente mais prevalecente do que antes. O primeiro passo em direcção a um estudo sério do anti-semitismo é parar de encará-lo como um crime. Entretanto, quanto menos se falar de “o” judeu e de “o” anti-semita, como se fossem espécies de animais diferentes de nós, melhor.

George Orwell
Publicado em The Observer (7 de Novembro de 1948)
Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457