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Crítica
16 de Fevereiro de 2025   História da filosofia

Labirintos do Círculo

Nelson Gonçalves Gomes
The Murder of Professor Schlick: The Rise and Fall of the Vienna Circle
de David Edmonds
Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2020, 313 pp.

David Edmonds (n. 1964) é um eticista britânico, doutor em filosofia pela Open University. É colaborador do Oxford Uehiro Centre for Practical Ethics e coautor (com John Eidinow) de Wittgenstein’s Poker, obra já traduzida no Brasil (“O Atiçador de Wittgenstein”).

Este livro inclui um prefácio seguido por vinte e um capítulos, que tratam do Círculo de Viena no contexto histórico do início do século XX até o fim da Segunda Grande Guerra. Os dois últimos capítulos versam, respectivamente, sobre o exílio de integrantes do Círculo e sobre o seu legado. Nas últimas páginas, há um Dramatis Personæ, no qual a biografia de cada membro daquele grupo é resumida. Há também uma cronologia, que destaca grandes datas de interesse na história do Círculo, começando por 1895, quando o físico austro-húngaro Ernst Mach se tornou professor de filosofia das ciências indutivas na Universidade de Viena, terminando no 17 de setembro de 1994, data da morte de Karl Popper. Por fim, vêm as notas relativas às referências, a extensa bibliografia seleta e o índice da obra.

Na capa do livro, há uma foto que mostra alguns homens em pé, aparentemente, numa escadaria da Universidade de Viena na qual Schlick foi assassinado. Essa imagem leva o leitor a pensar que seriam policiais ou acadêmicos ali reunidos logo depois do crime. A foto reforça a expectativa de uma obra centrada no tema anunciado para o livro: o assassinato de Schlick. Na verdade, porém, o tema é tratado tão somente no capítulo 15, nas suas grandes linhas. Na manhã do dia 22 de junho de 1936, ao dirigir-se a uma sala de aula, Schlick foi mortalmente ferido a tiros por Johann Nelböck, um antigo doutorando seu, portador de uma doença psiquiátrica. Nelböck foi preso e, em maio de 1937, julgado e condenado a dez anos de prisão, com a condição adicional de ter de dormir numa cama dura algumas vezes ao ano. Em março de 1938, entretanto, a Áustria foi invadida pela Alemanha nazista, o que deu a Nelböck ocasião de pedir revisão da sua condenação. Ele, então, alegou que Schlick seria um filósofo judaizante e foi liberado.

Essa história teve uma série de antecedentes, que envolveram uma bela estudante chamada Sylvia Borowicka, muito interessada em Schlick, suposta razão de ciúmes por parte de Nelböck. No ambiente antissemita da época, a hipótese de Schlick ser judeu também foi considerada, embora ele, de fato, fosse alemão e cristão luterano. Ao fim e ao cabo, a condição psiquiátrica do agressor permaneceu como fator crucial do assassinato. Grande parte do que Edmonds relata nesse capítulo é conhecido pela literatura, como o abominável artigo do Dr. Austriacus. Não obstante, Edmonds menciona alguns tópicos menos referidos, como declarações de Albert Schlick, filho do professor, além de alguma tímida reação no contexto acadêmico de 1936.

Mas, se o autor foi econômico ao descrever o assassinato de Schlick, título do livro, o mesmo não se pode dizer do subtítulo: a ascensão e a queda do Círculo de Viena. Edmonds introduziu o tema a partir do ambiente inovador que se formou naquela capital, ao final do século XIX e ao início do XX, em especial graças ao trabalho de Mach, que lá colaborou na formação de um clima intelectual empirista e antimetafísico. A riqueza do ambiente vienense é descrita de maneira muito ampla, de modo a abranger pintura, música, ciência, arquitetura e todo o tipo de inovações, alguma boas, outras muito ruins. Edmonds cita uma frase de Steven Beller, que bem resume aquela atmosfera criativa a expandir-se em todas as direções: “Qualquer cidade que tenha produzido Freud, Hayek, Klimt, Schnitzler, Musil, Loos, Kraus — e Hitler — claramente tinha algo de importante nela acontecendo” (p. 64, nossa tradução). Pois Viena foi essa tal cidade, também graças às suas excelentes confeitarias, nas quais as pessoas podiam encontrar-se em torno de mesas de café, para ler ou conversar durante horas, a preços acessíveis. Intelectuais e artistas reuniam-se com seus grupos de discussão nesses ambientes agradáveis.

Edmonds descreve as confeitarias vienenses como uma espécie de infraestrutura que facilitou o surgimento de múltiplos círculos de estudos e de debates. Nos anos que antecederam a Grande Guerra e nas duas décadas seguintes, seminários informais começaram a nelas se reunir, de modo a tratar dos mais diversos temas. O Círculo Gomperz reunia-se em torno de Heinrich Gomperz, filósofo e historiador da arte; o jurista Hans Kelsen mantinha um seminário de ciência jurídica; os economistas Friedrich Hayek e Oskar Morgenstern reuniam interessados em ciência econômica; Otto Bauer regia um grupo de estudiosos sobre austro-marxismo; o próprio Freud recebia pessoas para discussões no seu apartamento. Os círculos eram variados e produtivos. Reuniam-se nas confeitarias, em residências ou em outros espaços, e tinham diferentes durações, pois alguns encontravam-se por anos a fio e outros por apenas umas poucas sessões. Por vezes, os círculos eram predominantemente acadêmicos, mas outras vezes agregavam pessoas do grande público.

Em 1922, o físico e filósofo Moritz Schlick chegou a Viena para ocupar a cátedra antes regida por Ernst Mach. Em 1924, dois de seus doutorandos, Herbert Feigl e Friedrich Waismann sugeriram-lhe que formasse um círculo, com o que o catedrático concordou. Para tanto, selecionou um grupo de participantes que Edmonds relaciona da seguinte maneira: o filósofo Victor Kraft, o matemático Kurt Reidemeister, o historiador Edgar Zilsel, o jurista Felix Kaufmann, o especialista em Talmude e filósofo Josef Schächter, o estudante Marcel Natkin, o filósofo Béla Juhos, o matemático Karl Menger, o matemático Hans Hahn, o matemático Kurt Gödel, o físico Philipp Frank, o cientista social Otto Neurath, além dos dois citados doutorandos (p. 17). Nos anos seguintes, esse grupo recebeu alguns acréscimos, como o matemático e filósofo Gustav Bergmann e a matemática Olga Taussky. Em particular, foi muito importante a chegada do físico e filósofo Rudolf Carnap. Sob a direção de Schlick, esse grupo reunia-se nas noites de quinta-feira, no Instituto de Matemática da Universidade de Viena.

Segundo o relato de Edmonds, no ano de 1924, graças a uma informação pessoal do filósofo britânico Frank Ramsey, Schlick soube da publicação do Tractatus Logico-Philosophicus, de Ludwig Wittgenstein. A partir daí, aquele ensaio passou a ser lido e discutido, linha por linha, nas reuniões do Círculo, sendo que Schlick e Waismann aderiram decididamente às teses daquela obra. Numa ocasião na qual o então jovem Karl Popper criticou ideias do Tractatus, Schlick dele discordou, a ponto de jamais o admitir às reuniões do seu próprio seminário. Edmonds discorre sobre Popper nesse livro, descrevendo-o como a “oposição oficial” ao Círculo, alcunha que lhe foi atribuída por Neurath. Wittgenstein, por sua vez, apenas em 1927 aceitou ter contacto pessoal com Schlick, depois do que conversou também com outros participantes, nomeadamente, com Waismann, mas sem comparecer às reuniões das quintas-feiras.

Edmonds cita a formação da Sociedade Ernst Mach (Ernst Mach Verein), em 1928, graças à colaboração de membros do Círculo, com a finalidade de divulgar a ciência por meio de cursos populares. Cita, igualmente, o surgimento em 1930 da importante revista Erkenntnis, editada por Rudolf Carnap e por Hans Reichenbach, este último pertencente a um círculo ativo em Berlim. Por fim, Edmonds ressalta os congressos internacionais total ou parcialmente organizados por iniciativa de participantes do Círculo, a partir de setembro de 1929, nas seguintes cidades: Praga (duas vezes), Königsberg, Paris (duas vezes), Copenhaga, Cambridge (Reino Unido) e Cambridge (Massachusetts, EUA). Não é citado o último congresso dessa série, que teve lugar em Chicago, no ano de 1941. Nesse simpósio, consta a participação do brasileiro Vicente Ferreira da Silva, com uma comunicação intitulada “Positivismo Integral e Espaço Qualitativo”. Na verdade, embora tenham sido organizados também por egressos do Círculo, estes três últimos congressos ocorreram quando aquele seminário não mais se reunia.

Quanto a questões teóricas, Edmonds descreve os membros do Círculo de Viena como intelectuais atualizados em termos de conhecimentos científicos, empiristas, decididamente antimetafísicos, voltados para a elaboração de uma filosofia renovada que fosse uma espécie de ancila da ciência (pp. 22–23). Todos seriam detratores de Kant e das suas teses sobre o juízo sintético a priori. De modo mais enfático, desaprovariam as elaborações filosóficas de Martin Heidegger, então discutidas na Alemanha.

Ao tratar de sentenças analíticas ao longo do livro, Edmonds dá exemplos de verdades baseadas em definições, como, por exemplo, a frase “Nenhum solteiro é casado”, no que evita qualquer recurso a formalismos. Segundo ele, ao final de 1929 ou no início de 1930, Wittgenstein teria passado a Waismann e a Schlick o instrumento fundamental para tarefa de eliminar a metafísica: a ideia de verificabilidade (p. 110). Enunciados da metafísica, como “Deus é todo-poderoso”, seriam vazios de significado, de vez que não são verificáveis. Edmonds insiste na afirmação de que, para o Círculo, tal verificabilidade deva ser entendida como exigência de princípio e não como realidade factual. A afirmação de que haja água num corpo celeste distante, em princípio, é verificável, mesmo que ainda inexistam recursos técnicos de acesso a ele. Cabe observar, porém que o Círculo já discutia a verificabilidade muito antes de 1929–1930.

É em termos filosóficos que o livro de Edmonds apresenta uma insuficiência significativa. Nas páginas 150–154, ao tratar da discussão sobre sentenças protocolares que envolveu sobretudo Carnap, Neurath e Schlick, Edmonds parte da ideia de que aquele debate tinha a ver com a relação entre palavras e proposições, o que é falso. Ele caracteriza a tese de Carnap, que dispensa de novas verificações os enunciados mais simples de um experimento científico (protocolos). Essa tese é criticada por Neurath, que elabora uma noção mais complexa sobre a natureza de protocolos, noção essa que Edmonds não aborda com algum pormenor. Por fim, Schlick tenta caracterizar o que chama de “constatações”, que não seriam protocolos, ao contrário do que diz o texto de Edmonds. O debate foi extenso e complexo, mas a descrição contida no livro deixa a desejar.

Na obra, há um capítulo sobre o chamado “Manifesto do Círculo de Viena”, oferecido a Schlick em 1929, mas que desagradou o homenageado em virtude de sua conotação política. O Manifesto foi escrito por Neurath e apenas revisto por Carnap, Waismann e Feigl. Foi editado pela Sociedade Ernst Mach, nele constando as assinaturas de Carnap, Hahn e Neurath, tão somente nas suas condições de diretores da Sociedade. Não há nome de autor naquele documento. Quanto a este tópico, o texto de Edmonds não é claro, ao sugerir uma espécie de coautoria de Neurath com os citados revisores (p. 90).

Ainda em termos críticos, cabe mencionar um equívoco histórico importante. Na página 4, Edmonds afirma que o Círculo de Viena foi dissolvido à força, em 1934. Na verdade, naquele ano, o governo austríaco fechou apenas a Sociedade Ernst Mach. O Círculo continuou a existir sob a direção de Schlick até 1936. Depois do crime que vitimou o professor, as reuniões prosseguiram precariamente, por vezes sob a direção de Waismann. Ao início de 1938, no apartamento de Zilsel e com uma apresentação de Gödel, teve lugar o último encontro entre os membros remanescentes do Círculo. Curiosamente, o próprio Edmonds cita essa reunião final (p. 186).

De modo especial no capítulo 11, mas também ao longo de todo o livro, Edmonds descreve muito bem a presença judaica na Viena das primeiras décadas do século XX: em 1936, nove por cento da população da cidade tinha ascendência hebraica, o que corresponde a 180 mil pessoas. Havia, não obstante, certa tendência à assimilação, ou seja, à inclusão de judeus nos padrões culturais da população majoritária. Por vezes, os judeus convertiam-se ao cristianismo, em geral, a denominações protestantes. No Círculo de Viena, Friedrich Waismann, Edgar Zilsel, Josef Schächter, Felix Kaufmann, Gustav Bergmann, Olga Taussky e a secretária Rosa Rand eram judeus. Hans Hahn, Karl Menger e Otto Neurath eram filhos de judeus convertidos ao cristianismo. O próprio Karl Popper, oposição oficial ao Círculo, era filho de judeus convertidos ao luteranismo. Victor Kraft não era judeu, mas era casado com uma judia. Embora figuras centrais como Schlick e Carnap fossem alemães de origem cristã, a presença de judeus ou de descendentes no Círculo levou a imprensa da época a classificar o empirismo e o formalismo daquele seminário como judaizantes.

Outro capítulo feliz nesse livro é o de número 20, no qual Edmonds descreve as agruras que vários egressos do Círculo tiveram de enfrentar quando foram levados a sair da Áustria. Neurath já deixara o país em 1934, mas fugiu do seu exílio holandês em 1940, escapando da invasão nazista em condições perigosas. Acolhido no Reino Unido, passou nove meses num campo de refugidos, na Ilha de Man. Em 1937, Friedrich Waisman foi para o Cambridge, no Reino Unido, onde Wittgenstein prestou-lhe alguma ajuda inicial, mas logo passou a ignorá-lo. Posteriormente, foi para Oxford, mas sempre em condições pouco favoráveis. Uma dura experiência, igualmente, estava reservada a Rosa Rand, antiga secretária do Círculo, portadora de grande material de cartas e das reuniões das quais redigira as atas. Viveu no Reino Unido e, mais tarde, nos EUA, mas sempre em condições financeiras deploráveis. Por fim, em março de 1944, numa instituição acadêmica da Califórnia, Edgar Zilsel cometeu suicídio por meio da ingestão de barbitúricos.

O último capítulo do livro apresenta uma boa descrição sobre o legado do Círculo de Viena: a publicação de ensaios reunidos por Neurath relativos à ideia de ciência unificada, a formação de um “Instituto Círculo de Viena” (Institut Wiener Kreis – Wiener Kreis Gesellschaft) na universidade da capital da Áustria, a influência exercida pelo Círculo sobre a filosofia de Quine e sobre teorias da ciência contemporâneas, além das críticas, nos anos 1960, a respeito da noção de verificabilidade, críticas essas que também se estenderam ao falseabilismo de Popper. Nesse capítulo, são referidos certos desenvolvimentos intelectuais que tiveram lugar já no período de diáspora: o platonismo lógico-matemático de Gödel e as formulações de Gustav Bergmann (descrito como apóstata) sobre a metafísica do Círculo.

Este é um livro bastante agradável de ler, pois Edmonds escreve muito bem. Do começo ao final, a obra prende o leitor. Embora as falhas ora apontadas sejam reais, o livro é muito útil ao interessado em filosofia, pois contém uma vasta série de informações que o autor cita da literatura secundária por ele utilizada e dos contactos pessoais que realizou. Em suma: é um livro muito interessante, digno de ser lido e de ser traduzido para o português.

Nelson Gonçalves Gomes
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