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Crítica
6 de Março de 2004   Filosofia da mente

A razão tem emoções que o coração desconhece

Desidério Murcho
Emotion: The Science of Sentiment
de Dylan Evans
Oxford: Oxford University Press, 224 pp.

Uma das partes menos saudáveis da infeliz herança romântica e irracionalista, tantas vezes acriticamente admitida sem discussão, é a da suposta oposição entre a razão e a emoção. Dylan Evans faz bem em recordar Mr. Spock, dos filmes Star Trek, como uma das incarnações deste mito romântico às avessas. O mesmo se poderia dizer de Sherlock Holmes — e do ideal do cientista cultivado na época vitoriana: frio, metódico, cerebral, destituído de emoções. Este ideal de ciência é tonto e o seu reverso é o não menos tonto relativismo cognitivo, que declara estar a magia negra ao nível da física quântica, em termos cognitivos e epistemológicos. Como Evans declara, sem emoções os seres humanos não existiriam; não é biologicamente possível uma espécie biológica destituída de emoções. Afinal, a emoção é mais racional do que se diz.

Isto não devia ser surpreendente. Ouvi recentemente o seguinte comentário como paradigma do que escapa à racionalidade: um rapaz decide casar com uma rapariga, e isso escapa à razão; é do foro da emoção. Mas ainda antes de nos metermos pela ciência das emoções adentro esta ideia revela falta de análise filosófica. Pois sem dúvida que o que seria irracional seria o rapaz estar apaixonado pela rapariga e não casar com ela, decidindo em vez disso ir para a Tailândia vender farinha para pombos. E seria também irracional estar apaixonado por alguém que o despreza, que o tortura, que o faz continuamente sofrer. A confusão é precisamente esta: nós sabemos que muitas vezes as emoções roçam a loucura. Mas, precisamente, isso é uma patologia das emoções, não é a sua natureza própria. A compreensão das emoções éticas que Aristóteles e Hume tinham perdeu-se; e com isso perdeu-se uma compreensão mais profunda do ser humano.

E é essa compreensão que nos traz Dylan Evans, num livrinho pequeno, dirigido ao grande público, e que apresenta alguns dos resultados do estudo das emoções. Este é um dos dois livros vindos a lume, em língua inglesa, em resultado directo de um projecto de investigação sobre a evolução das emoções que decorre no departamento de filosofia de King’s College London. Urge, pois, publicar o outro volume, de Peter Goldie: The Emotions: A Philosophical Exploration (Oxford).

O livro tem cinco capítulos. No primeiro aborda-se o problema de saber se nas emoções há universais humanos, ou se serão todas as emoções contingências que variam de cultura para cultura. A teoria do relativismo cultural das emoções, tipicamente colonialista, esteve em vigor até Ekman ter demonstrado o contrário — não sem enorme resistência dos antropólogos da altura, mais interessados em manter os seus preconceitos culturais do que em investigar a verdade. Segundo a teoria do relativismo cultural das emoções, estas não são parte própria da natureza humana universal, mas antes idiossincrasias que abrem fossos de incompreensão entre culturas. Um índio não sofre nem ama nem se espanta como um francês; cada qual está no seu casulo e as suas emoções são apenas o produto do seu meio cultural. Acontece que esta teoria é empiricamente falsa. As chamadas emoções básicas são inatas e universais.

Se as emoções básicas são universais e inatas, que papel evolutivo desempenham? É este o problema do segundo capítulo. Serão, como os vitorianos pensavam, e como pensam os românticos, um mero acessório em oposição frontal à razão? E nesse caso como se explica a sua existência? A resposta é que as emoções são a mais racional das estratégias da natureza. Deliberar, pensar, reflectir, consome tempo. Se tivermos um dispositivo, afinado por milhares de anos de evolução, que nos permita reagir rapidamente por medo, por exemplo, teremos mais hipóteses de sobrevivência do que se tivermos de pensar tranquilamente em tudo. O pensamento é uma das mercadorias mais caras do ponto de vista da evolução; as emoções são atalhos do processo de decisão.

Evidentemente, todos os atalhos podem, em certas circunstâncias, revelar-se contraproducentes. No capítulo 3, Evans avalia criticamente as tecnologias da felicidade e da emoção. A mais antiga dessas tecnologias é a linguagem, que nos permite partilhar emoções, exprimir anseios, dar e receber conforto. Freud elevou esta tecnologia ao estatuto de religião revelada, com pós de alquimia, baseando-se na chamada “teoria hidráulica” das emoções. Segundo esta teoria, as emoções são como fluidos que provocam tensão, como num cano prestes a rebentar com a pressão. Falar sobre os motivos dessa tensão é como abrir uma válvula de segurança. No seu todo, a ideia não é nova — é mero senso comum, e é comum desde há milhares de anos. Mas Freud transformou-a numa amálgama de ideias emaranhadas. A perspectiva crítica de Evans merece reflexão por quem se recusa a pensar que a psicanálise possa estar errada nos seus fundamentos.

Um dos aspectos curiosos discutidos por Evans, a respeito da tecnologia das emoções, é a nossa tentativa de encontrar atalhos para a felicidade — drogas, consumismo, esquecimento de si, passatempos, jogos de computador, etc. Curiosamente, como Evans faz notar, a felicidade não se obtém com este tipo de coisas. Os seres humanos sentem-se felizes com valores mais sólidos — amizade, verdade, justiça. E quando lhes sai a lotaria ficam eufóricos durante um curto período, mas depois voltam ao que eram: se eram pessoas deprimidas, voltam a ficar deprimidas, se eram felizes, voltam à felicidade anterior.

Nos últimos dois capítulos, Evans aborda as relações entre a emoção e a racionalidade. Um dos dados empíricos interessantes, mas longe de ser surpreendente, é que quando as pessoas estão bem dispostas e cheias de pressa têm tendência para se enganar, admitindo como bons argumentos que na realidade são péssimos — e este é o segredo dos publicistas, claro: se conseguirem fazer as pessoas sentir-se bem, é maior a probabilidade de aceitarem péssimos argumentos para comprar um determinado produto.

A conclusão de Evans é pouco surpreendente para quem partilha a visão iluminista e aristotélica da harmonia entre as emoções e a razão; mas é uma revolução para quem labora no mito romântico da oposição cerrada entre o racional e o emocional. Nada é mais racional do que uma emoção apropriada, e nada mais irracional do que a falta dela: alguém que não fique horrorizado com o sofrimento alheio é adequadamente descrito como desumano. E a razão é também a faculdade mais emocional dos seres humanos: mal conduzida por emoções erradas, é possível produzir as piores ideias e argumentos — racismo, fascismo, colonialismo, missionarismo — sem ver que são péssimas, só porque massajam as nossas emoções mais tontas. O ser humano equilibrado e feliz cultiva as emoções apropriadas, que respondem à razão, e trabalha para impedir que as piores emoções lhe toldem a razão. Este é, pois, um pequeno livrinho que vale a pena ler e reler, se tivermos a coragem de rever os preconceitos da época em que nos foi dado viver, e que tantas vezes nos toldam a razão e o coração.

Desidério Murcho
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ISSN 1749-8457