Observo o nosso jardim. Um tordo e um gaio-azul saltitam na relva. Perto da vedação as rosas começam a florir. Olhando mais além, vejo à distância os contornos da cordilheira que nos separa do oceano. O nevoeiro de início da noite chega vindo do oceano, sobre o topo da serrania, cobrindo florestas e colinas verdejantes. Volto-me e observo a pintura na parede. É uma obra semi-abstracta, sugerindo dois barcos na orla da praia.
Desfruto a vastidão da montanha no campo de visão, a beleza pequena e simples da cena de jardim, e a pintura. Todas essas coisas são belas. Serão exemplos da mesma qualidade de beleza? Ou será que me confronto com três tipos de configurações a que só ambiguamente se chama “belas”? Haverá um ingrediente básico comum nos três exemplos de fruição de que tive experiência? Ou haverá que dividir a fruição da beleza na arte, nos objectos simples da natureza e nas paisagens vastas em três tipos diferentes de fruição, relacionados somente por uma vaga semelhança?
Essas questões ilustram os problemas filosóficos que desejo tratar neste artigo. Haverá uma qualidade de beleza que permeia tanto a arte como a natureza?2 Ou serão a beleza na natureza e na arte espécies de um género mais vasto? Mais uma vez, haverá uma qualidade de reacção estética à beleza que permeia as minhas experiências da arte e da natureza, ou serão esses realmente tipos distintos de fruição, exigindo diferentes sensibilidades, experiências, etc.?
No pano de fundo dessas questões encontramos algumas suposições gerais acerca dos seres humanos. Presumivelmente, nenhum ser humano consideraria feia qualquer das três cenas descritas. Para os propósitos deste ensaio, pressuponho que a reacção à beleza é uma capacidade humana básica.3
Essa investigação leva-nos a uma série de quebra-cabeças. Por que razão será que algumas pessoas desfrutam somente a natureza mas não a arte? Por que razão será que ninguém se queixaria do facto de a natureza não mudar, ao passo que parecem exigir na arte a originalidade, a novidade e a mudança?
De modo a responder adequadamente a essas questões, temos de lançar um olhar cuidadoso aos dois conceitos cruciais envolvidos nessas questões; nomeadamente, os de beleza e de fruição. Portanto, na primeira parte deste artigo será esboçada uma teoria “adverbial”, como é designada, da beleza e da fruição. Foi de Aristóteles que recebemos ambas. Traçaremos também uma série de distinções, como a distinção entre fruição e apreciação, arte e natureza, características geradoras de beleza e características geradoras de arte.
As análises adverbiais mostram a dependência da fruição relativamente a objectos, e a dependência da beleza relativamente ao seu objecto. A conclusão do artigo é de que há na verdade uma diferença categorial entre a arte e a natureza que é responsável por a beleza na natureza e a beleza na arte não serem as mesmas qualidades. Assim, na perspectiva da teoria adverbial da fruição, a fruição da beleza na arte e a fruição da beleza na natureza não são os mesmos processos. Essa conclusão leva-nos a manter que há algumas configurações sensoriais de elementos expressivos que constituem algo belo na arte mas não na natureza; e mais uma vez, que o inverso se verifica também. A tese não nos compromete com negar que pode haver sobreposições entre os conjuntos associados de critérios, e que pode haver casos em que algo é julgado belo na natureza e na arte pelos mesmos critérios.
O presente artigo interpretará a semântica de “fruição” e “beleza” numa linha aristotélica. Mas combinará essa análise com uma explicação kantiana da psicologia da reacção estética, sem o formalismo austero de Kant. Portanto, este ensaio relaciona-se ortogonalmente com a maioria da bibliografia analítica recente acerca desses tópicos.4 Renovar e recombinar ideias sagazes clássicas pode, por vezes, preparar o caminho para um novo esclarecimento conceptual.
Admiramos as sinfonias de Beethoven, mas não admiraríamos uma composição se soubéssemos que fora escrita hoje no mesmo estilo. A razão para isso é que na arte valorizamos uma série de factores. Não estamos preocupados somente com a beleza; preocupamo-nos com factores que não procuramos na natureza e que são também independentes de questões de beleza. Um deles, como mostra o anterior exemplo banal, é o da originalidade; outro é a magnitude da consecução (de onde o nosso interesse pela chamada “arte primitiva”, e a nossa falta de interesse por coisas semelhantes produzidas por uma criança dos nossos dias). Outro factor ainda é o da novidade. Parece que somos compelidos a procurar continuamente novos modos de exprimir a beleza. Ao mesmo tempo, é claro que não fazemos esta exigência à natureza. Pareceria grotesco se alguém manifestasse desagrado perante o Lago Tahoe, ou Yosemite, com base em que essas coisas ali estão há muito tempo e não permitem que novos lagos e montanhas comecem a existir. Ainda que não houvesse lugar para novas partes da natureza se desenvolverem, será que alguém desejaria que rezássemos por terramotos, para que as nossas belas montanhas e lagos desaparecessem e novos tomassem o seu lugar?
Há, evidentemente, outras características – tais como a harmonia, o contraste, a conceção, etc. – que admiramos quer na arte quer na natureza. Mas quero concentrar-me nas que admiramos somente na arte e são distintas de questões de beleza. Por que razão essas características evocam uma reacção tão favorável nos seres humanos? A explicação de Kant parece ainda a melhor que foi apresentada até hoje.5 Vemos a arte como “produção por meio da liberdade”, a criação do génio. Há uma certa beleza em algo que se comporta sempre do mesmo modo, regido por leis. Mas o génio consiste em não ter regras (ou antes em estabelecer regras para si próprio); de onde a sua expressão no novo e no mutável, em vez de na constância do eterno e imutável. Não estar sujeito a regras previamente dadas compele o artista a procurar novos modos de exprimir a beleza, mesmo que não haja qualquer garantia de que os novos moldes produzam mais beleza do que os antigos.6
Há também qualidades que admiramos na natureza e não na arte. A paz de espírito que nos dá a comunhão com a natureza, a tranquilidade de fazer parte de determinados cenários, bem como a frescura espiritual que procuramos no contacto com a natureza; são qualidades que são simultaneamente independentes de considerações de beleza e não são procuradas em conexão com a arte. Isso sucede porque a natureza é composta de entidades com vida própria; fazem parte de processos doadores de vida que criam também os seres humanos. Admiramos determinadas características desse vasto sistema a que também pertencemos.
Serão as atitudes para com a natureza esboçadas aqui universais? Essa é uma interessante questão empírica. A atitude para com a arte é provavelmente universal, uma vez que a instituição da arte é um universal cultural. Mas as atitudes para com a natureza podem variar consoante a medida em que a cultura em causa está envolvida na tecnologia e portanto com o isolamento relativamente à natureza. Talvez alguns povos nómadas tomem a natureza por garantida.
A diferença entre a arte e a natureza é sublinhada por Kant na sua afirmação – na secção já referida atrás – que embora o interesse pela beleza da arte seja neutro no que respeita à moralidade, o “interesse imediato na beleza da natureza está ligado à moral…”. A razão para isso é que o nosso interesse na beleza da natureza está ligado ao nosso interesse intelectual em partes da natureza e na sua existência. Por que seria isso assim? Sugiro que a esta afirmação kantiana subjaz a sua conceção do reino dos fins. Ver um ser humano como parte desse reino é vê-lo por si próprio, independentemente de quaisquer interesses utilitários e independentemente de qualquer interesse em dar uma explicação legiforme desse comportamento (vê-lo portanto como um ser livre). Quando adotamos a atitude estética para com partes da natureza, alargamos o reino dos fins, e vemos essas partes do mesmo modo; livres de restrições de utilidade e exigências de uma explicação geral. Concentramo-nos na entidade na sua particularidade, admirando-a pelos seus constituintes na medida em que os percecionamos, sem os tentar subsumir em esquemas gerais. Há portanto uma analogia conceptual entre ver uma parte da natureza como bela e ver valor moral num ser humano. Essa analogia conceptual não exige de Kant que sustentasse o que seria uma hipótese empírica implausível; nomeadamente, que há uma probabilidade de os amantes da natureza não serem imorais. A última é uma hipótese psicológica empírica com poucos ou nenhuns indícios a seu favor.
As mesmas considerações não se verificam para a nossa fruição da arte. As obras de arte são produtos; aquilo por que nos interessamos, em termos da sua existência, manutenção, etc. é o génio criativo cujos produtos desfrutamos.7 As obras de arte não têm uma existência autónoma; somente o artista criativo e partes da natureza a têm.
Isso encerra as diferenças entre a arte e a natureza. Mas as características sob discussão ajudam-nos a distinguir entre a arte e a natureza, e a beleza na arte e a beleza na natureza. Porquanto nem tudo o que é novo e original é belo. Na verdade, essas características não são sequer razões prima facie para se esperar a beleza. Analogamente, nem tudo o que é tranquilizador ou refrescante é belo. Assim, essas considerações deviam formar a base para distinguir a fruição da arte, a fruição da natureza e a fruição da beleza, visto que diferentes características estão envolvidas nesses processos.
Enfrentamos, todavia, a principal questão deste artigo: dado que temos de distinguir entre a arte e a natureza, e entre ambas e a beleza, será a beleza da arte idêntica à beleza na natureza? Será que o Lago Tahoe de manhã ao nascer do Sol partilha a propriedade da beleza com uma pintura de Botticelli? O facto de admirarmos a natureza e a arte por razões diferentes não nos compele a considerar que a fruição da beleza na arte difere da fruição da beleza na natureza; duas entidades muito diferentes podem partilhar a mesma propriedade.
Podemos considerar nesta fase que o facto de fruir a beleza na natureza, por contraste com fruir a beleza na arte, exigirem diferentes capacidades e sensibilidades. Mas mesmo uma teoria segundo a qual o mesmo tipo de beleza está envolvido poderia explicar este facto. Porquanto se poderia argumentar que há muitos casos em que descobrir exemplos da mesma qualidade em contextos muito diferentes exige uma diversidade de capacidades. Um desses exemplos é a qualidade da justiça que surge numa diversidade de tipos muito diferentes de situações.
Como primeiro passo no nosso argumento, serão introduzidas as chamadas “teorias adverbiais” da beleza e da fruição. Essas teorias mostram que tanto a beleza como a fruição são “dependentes do objecto”, i.e., essas etiquetas abrangem diferentes processos e propriedades, consoante a natureza dos objectos que as qualidades de beleza e a fruição incluem no seu escopo. Isso não é suficiente para levar a bom porto a nossa contenda. Pelo que mais tarde será dado um argumento para mostrar que algumas diferenças entre a arte e a natureza proporcionam o tipo de diferença categorial sobre a qual – dada a dependência do objecto – se pode basear a distinção entre a beleza na arte e a beleza na natureza.
Mas antes, outra distinção preliminar. Os estetas falam em atitude estética, reacção estética, apreciação estética e fruição estética. É tempo de, para os propósitos deste ensaio, sermos mais específicos. Distinguiremos entre apreciação e fruição, somente para por de lado a primeira e nos concentrarmos na segunda.
Apreciar algo não é necessariamente frui-lo também. Posso apreciar a arte de um dançarino sem a fruir. Porquanto apreciar algo é reconhecê-lo como uma fonte possível de respeito e fruição, sem ter necessariamente a experiência da fruição. Mais uma vez, podemos fruir algo – um banho de chuveiro quente, um espetáculo engraçado – sem o apreciar; i.e. sem o interpretar como uma fonte de valor, respeito e fruição para outros.
Assim, há que distinguir não só entre fruir a beleza na natureza e na arte, mas também entre fruir a natureza e apreciar a natureza, bem como entre fruir a beleza numa obra de arte e apreciar a beleza de uma obra de arte. Afinal, as crianças podem fruir a beleza, sem terem ainda desenvolvido a capacidade mais complexa da apreciação.
Para os propósitos deste artigo pressuporemos uma explicação kantiana básica da fruição estética.8 A nossa questão principal a respeito dessa fruição é: serão os exemplos de fruir a beleza das obras de arte exemplos da mesma qualidade que os exemplos de fruir a beleza na natureza?
Mais uma vez, mostrar que os dois processos são distintos não é o mesmo que afirmar que não há sobreposição entre eles. Algumas das características que desencadeiam os dois tipos de processo poderão coincidir. Pode-se ver isso considerando um caso análogo. Ao responder a um bom ensaio e um bom exame final, o avaliador reconhecerá características (p. ex. a originalidade) que são cruciais para um bom ensaio mas não para um bom exame final. Mais uma vez, o avaliador reconhecerá características como a documentação em termos do material atribuído que são cruciais para um bom exame final mas não para um bom ensaio. Além disso, há imensos critérios que se aplicam a ambos (manifestação de inteligência, informação, domínio da lógica da argumentação, etc.). Assim, os processos de aprovar e ajuizar um bom ensaio e o de ajuizar um bom exame final são distintos, embora relacionados. Na verdade, é fácil pensar em pessoas que são boas numa coisa mas não na outra.
Estamos habituados à seguinte dicotomia: dadas duas configurações de particular e propriedade, digamos Fa e Ga, ou “F” e “G” introduzem a mesma propriedade ou propriedades diferentes. Há razão para supor que estados ontológicos complexos introduzem também outras alternativas. Considere as duas expressões seguintes:
Em (1) o adjetivo e o substantivo introduzem duas propriedades distintas, cada uma das quais se aplica independentemente ao sujeito. Pelo que (1) equivale a
ao passo que não obtemos senão um absurdo se tentarmos analisar (2) como
Um advérbio como “lentamente” introduz uma qualidade, mas uma qualidade que modifica objectos só indiretamente, modificando alguma propriedade do objecto; nesse caso a de correr. O critério de aplicação varia com o domínio de aplicação. Um nadar lento para um campeão é um nadar rápido para um principiante.
Alguns adjetivos comportam-se semanticamente de acordo com este modo “adverbial”. Por exemplo, “grande” exibe este comportamento, pois uma mosca grande continua a ser um pequeno animal. Aristóteles defendeu perspectivas acerca da fruição e da beleza que também interpretavam adverbialmente essas qualidades. Consideremos primeiro a fruição.9 Quem identifica a fruição com o ter sensações agradáveis analisaria
como uma descrição de duas séries de eventos; o Jonas escuta o concerto, e o Jonas tem uma série de sensações agradáveis. As sensações agradáveis são causadas pelo outro evento; mas qualitativamente não diferem de sensações agradáveis que poderíamos ter a partir de outras fontes.
Aristóteles, e no nosso próprio tempo Gilbert Ryle, objectaram a esse tipo de análise. Mostraram que não há um elemento experiencial comum aos diversos tipos de fruições humanas. Afirmar que o João fruiu o concerto é afirmar que o João escutou a música com prazer. O modificador “com prazer” comporta-se como outros modificadores, tais como “lentamente”, “rapidamente”, etc.; não descreve uma segunda série de eventos, mas antes o modo ou maneira como teve lugar a série dos eventos denotada pelo verbo. Fruir uma caminhada ou um festival de música ou a leitura de um livro não são “séries duplas” de eventos. A qualidade de fazer algo com prazer depende da atividade qualificada. Como afirma Aristóteles, a fruição “completa” uma ação, o modo “viver feliz” é um modo de completar a própria vida. Assim, (5) descreve somente uma série de eventos, nomeadamente, o escutar da música por Jonas. Afirmar que o Jonas fruiu o concerto é descrever como ele escutou a música e não atribuir-lhe outro conjunto de atividades.
Pode-se ver também a dependência objectual da fruição a partir do seguinte exemplo. Considere a execução de uma ópera de Wagner sob a direção de um maestro politicamente controverso, em que a execução é dedicada a um partido politicamente controverso. Provavelmente dir-se-á que na ocasião se apresentou um concerto suscetível de ser fruído mas também um evento político desagradável.
Se essa perspectiva está correta, então não devíamos procurar um elemento experiencial comum a todos os exemplos de fruição. Tão-pouco devíamos esperar sermos capazes de descobrir escalas precisas de medida comparativa entre diferentes tipos de fruição, embora sejam possíveis comparações aproximadas. A fruição é dependente do objecto; as comparações exactas só são possíveis nos casos em que falamos em apreciar os mesmos tipos de coisas. Os critérios de aplicação são também dependentes do objecto, embora haja analogia suficiente entre os diferentes tipos de casos para que esse se não torne um caso de ambiguidade pura.
Segue-se então que não devíamos procurar um elemento experiencial comum entre fruir a beleza da arte e fruir a beleza da natureza; e tão-pouco devíamos procurar um simples modo não disjuntivo de formular critérios de aplicação em geral. Evidentemente, isso deixa-nos ainda com a possibilidade de isolar importantes características distintivas comuns; p. ex. como a noção de “desinteresse” em Kant.
Passemos agora à teoria adverbial de “beleza”. Aristóteles desenvolveu-a para “bom”10 mas também a considera aplicável à qualidade de “excelência” ou beleza. Aristóteles recusaria analisar afirmações como
como
pois defendia que ser bom é um papel adverbial. Ser um bom estadista é ser bom na arte de governar. A bondade é para Aristóteles sempre dependente do objecto. Portanto, não há uma só qualidade que todas as coisas boas têm, e os critérios de aplicação para “bom” são dependentes do contexto. Apliquemos essa doutrina agora a “belo”. Consideremos
Aristóteles recusaria analisar essa frase como
porquanto defenderia que a beleza da flor depende do seu ser uma flor. As mesmas qualidades observáveis poderiam não gerar um objecto belo caso fossem exemplificadas não por uma flor mas, ao invés, por uma mula. Tal como pode não haver qualidade comum específica entre um bom estadista, um bom plano e um bom professor, pelo que nessa perspectiva não há qualquer qualidade observável que as belas flores, poemas e pinturas tenham de partilhar. O mesmo objecto pode ser um belo tapete mas não uma bela decoração mural.
Vimos que tanto as considerações semânticas como psicológicas sustentam as teorias adverbiais da beleza e da fruição. As dependências relativamente ao objecto, contudo, têm de ser qualificadas. Ninguém defenderia que, por exemplo, fruir um gelado de baunilha e fruir um gelado de chocolate não são exemplos do mesmo tipo de fruição. Da perspectiva da classificação de tipos de fruição, a diferença entre dois tipos de gelado é trivial, ao passo que a diferença entre concertos e caminhadas é significativa. Temos ainda de mostrar que as diferenças entre beleza na arte e beleza da natureza são significativas para a classificação dos tipos de fruição.
Como mencionei, nessa investigação abstraímos de muitos factores que entram comummente na fruição de um objecto belo. Ao considerar o meu fruir de uma exposição abstraímos do meu interesse em novas tendências, no arrojo do artista, na magnitude da consecução, etc. (Ao me concentrar na capacidade humana de responder à beleza não excluo esses e outros factores como “esteticamente irrelevantes”; o modo preciso como usamos a etiqueta “estético” é uma questão puramente notacional. É importante, todavia, ser capaz de falar, sob idealizações, acerca da capacidade humana de responder à beleza.) Por outro lado, falar acerca da reacção à beleza inclui também a reacção àquelas características que são mais específicas do que a beleza e se subsomem nessa noção mais genérica. Eis alguns exemplos: graciosidade, equilíbrio, contraste, harmonia, etc.
Analogamente, no caso da fruição da beleza na natureza abstraímos do sentimento de paz, serenidade ou regeneração espiritual que normalmente acompanha a fruição.
Uma vez que se proceda a essas abstrações, podemos perguntar se os dois tipos de fruição são ou não exemplos da mesma propriedade. Há uma série de factos que parecem relevantes para resolver essa questão.
Primeiro, há o facto do gosto. Pressupomos que o gosto é um pré-requisito da fruição da beleza em determinados tipos de obra de arte. Por exemplo, falamos acerca da necessidade de desenvolver o gosto pela música clássica, a pintura impressionista, etc. Mas não falamos acerca de gosto em conexão com a fruição da beleza na natureza. Pode ser precisa uma certa sensibilidade para fruir um pôr-do-sol ou a visão de um oceano tempestuoso, mas não classificamos essa sensibilidade como gosto, e não falamos acerca do desenvolvimento ou refinamento do gosto como um pré-requisito para a fruição da natureza.
As pessoas num determinado período histórico podem preferir paisagens serenas a paisagens bravias e agrestes. Mas essas preferências não são manifestações de gosto. O gosto, pelo menos em contextos estéticos, está ligado a noções de tipos de obras de arte e estilos. Ter um determinado gosto é ter a sensibilidade exigida para responder a determinados estilos e a obras de arte em determinadas categorias. Assim, o gosto vai além da mera preferência.
Além disso, considera-se que o mote de gustibus… se aplica à arte mas não à natureza. Esse facto parece indicar que lidamos com duas capacidades distintas.
Segundo – como mencionei à partida – algumas pessoas reagem somente à beleza na natureza, ao passo que outras respondem somente à arte. Assim, embora haja muitos seres humanos que fruem ambas, essa distribuição sugere mais uma vez duas reacções distintas.
Terceiro, a mesma configuração de elementos sensíveis pode ser bela na natureza e não na arte; e mais uma vez, a situação inversa também se verifica. Uma determinada mistura de laranja, rosa e vermelho pode contribuir para um pôr-do-sol belo, mas seria considerada excessivamente ruidosa ou sobrepujante numa pintura. Por outro lado, o esgar cruel de um leão montanhês numa pintura pode ser belo, ao passo que ninguém o julgaria assim na natureza. Esse facto sugere que lidamos com dois conjuntos distintos de objectos para a fruição estética; e nesse caso, temos razões para postular duas capacidades distintas correlacionadas com esses conjuntos.
Embora os factos até agora apresentados sustentem a tese de que a beleza na natureza e na arte e os tipos correspondentes de fruição são objectos e capacidades distintas, há explicações alternativas para esses factos. O facto do gosto pode ser explicado assumindo que a beleza na natureza é mais visível do que em algumas formas de arte. Afinal, não postulamos a necessidade de um gosto refinado para fruir qualquer obra de arte. Por que razão não assumir que a beleza na natureza não requer mais o gosto do que a beleza nas obras de arte mais acessíveis? Também o segundo facto admite uma explicação que sustentaria a unidade da beleza e da fruição estética. Poder-se-ia supor que a razão pela qual não podemos apreciar determinadas configurações de elementos sensíveis na natureza é a de que outros factores intervêm e nos impedem de exercitar a nossa capacidade estética. Esses factores poderiam ser: o medo, o estar ciente do perigo, a repugnância perante a crueldade, etc. Poder-se-ia dar explicações semelhantes para a situação inversa, em que para alguns a fruição da arte é bloqueada por factores intervenientes.
Poder-se-ia procurar alargar esse tipo de explicação também ao terceiro dos factos mencionados. Talvez a razão para não se fruir numa pintura a mesma combinação de cores que fruímos na natureza seja a de que algumas associações esteticamente irrelevantes entram em jogo. Embora essas explicações alternativas nos estejam abertas, creio que um exame cuidadoso desses factos, em especial do terceiro, mostra realmente diferenças importantes entre a fruição da beleza na arte e a fruição da beleza na natureza.
Consideremos mais uma vez a combinação ruidosa de cores numa pintura, por um lado, e num pôr-do-sol real, por outro. Se a fruí num pôr-do-sol, por que razão não haveria de a fruir numa pintura? Evidentemente, posso admirar a destreza do artista e a magnitude da consecução envolvida em produzir tão excelente representação. Mas vista somente como pintura, as cores são excessivamente ruidosa, áspera, toda a pintura é esmagadora; invade-me, inunda-me os sentidos em vez de me permitir fruir um objecto visual a uma certa distância. Por contraste, o pôr-do-sol em Sierras não é sobrepujante; faz parte da natureza, é algo acerca do qual os seres humanos não têm qualquer controlo, exprimindo de um modo espetacular finalidade, completude e a esperança de um novo começo. Num caso, é o céu e o Sol que têm essas cores, no outro caso é uma pintura que tem as cores. (No caso de uma pintura abstrata diríamos simplesmente que a pintura tem as cores; no caso de uma pintura representacional poderíamos afirmar que é a representação do Sol e a representação do céu que têm as cores.)
Não adiantará afirmar que é o contexo mais vasto, o ambiente, o responsável pela diferença. Pois se poderia considerar um exemplo em que a pintura é enorme e tem uma pequena flor bravia como uma das suas partes, e o objecto natural a contrastar com isso seria uma flor bravia; pode ainda suceder que a combinação de cores que nos dá a beleza na simples flor parecerá excessivamente áspera e ruidosa numa pintura.
Pode-se levantar questões semelhantes a respeito de pinturas belas de animais feios, ou pelo menos paisagens feias envolvendo aves ou animais (o prémio do caçador, etc.). Ou mais uma vez, o rosto de um bêbado real poderá não ser belo, mas pode sê-lo numa pintura.
A explicação segundo a qual a fruição da beleza na arte e a fruição da beleza na natureza são capacidades distintas (embora relacionadas) pode explicar também casos de engano. Pois não é a situação objectiva apenas, mas a interpretação dela pelo observador o que importa. Se me deixo enganar ao pensar que ouço uma ave real, então poderei achar o canto belo e posso alterar a minha reacção estética quando a verdade é revelada e se mostra que me deparava com uma imitação engenhosa. O que fruo e como o fruo dependem não só das minhas circunstâncias, mas também daquilo que considero ser o objecto da minha experiência.
Em última análise, os factos considerados na presente secção indicam que a fruição da beleza na natureza e a fruição da beleza na arte são processos distintos, embora tenham sobreposições. Dadas as dependências relativamente ao objecto estabelecidas atrás, devíamos procurar diferenças relevantes entre a beleza da arte e a beleza da natureza para explicar as diferenças em fruição.
Passámos em revista indícios que sustentam a tese de que a mesma combinação de elementos na natureza pode não gerar beleza ao passo que o faz quando se trata de constituintes de uma obra de arte. Parece, todavia, haver uma doutrina sobejamente conhecida em estética que pode explicar o que vimos até agora. Tome-se mais uma vez uma combinação de cores numa sala de estar, e num pôr-do-sol. Uma é bela, a outra não. Mas os estetas afirmaram durante algum tempo que para a fruição estética, qualquer propriedade adicional não previamente presente num objecto pode ser relevante. As combinações de propriedades são belas relativamente a outras propriedades com as quais são co-instanciadas. Classifiquemos isso como a “tese da relevância”. A afirmação proposta neste artigo é mais forte do que isso. Apoia-se na distinção entre propriedades essenciais, i.e. aquelas sem as quais o objecto não pode ser, ou permanecer, o que é, e propriedades acidentais, pelas quais o objecto pode mudar.11 A nossa tese, portanto, afirma que faz uma diferença crucial para a presença de características geradoras de beleza quais sejam as propriedades essenciais do objecto que supostamente instancia aquelas características. Classifiquemos isso como a “tese da essência”. Não são somente combinações de cores, formas, etc. que determinam a beleza, nem a mera adição de outras características observacionais, mas a natureza da entidade que exibe essas características. Não importa se algumas das características essenciais – como sucede amiúde – não são observacionais. Por exemplo, algumas das características essenciais de uma cadeira, ou de animais, são funcionais. Isso só mostra que a fruição estética é condicionada não só pelo conhecimento observacional mas também pela compreensão intelectual. Assim, determinadas cores, enquanto cores de uma parede de sala de estar podem não ser belas; e mais uma vez, as cores por si próprias, quando exibidas sem um contexto funcional ou representacional, podem ser belas.
A “tese da essência” tem consequências importantes para a fruição do teatro, da literatura e para a descoberta de uma “proporção ideal” entre o realismo socialista extremo de certos marxistas e a atitude de “arte pela arte” de muitos críticos burgueses ocidentais; mas temos de deixar isso de parte.12 Neste contexto, porém, consideramos a tese no seu papel de preparar o terreno para a última parte do argumento que mostra que a beleza na natureza difere da beleza na arte. Dado que as características essenciais do objecto desempenham um papel especial em determinar a beleza, o que separa tão nitidamente a essência da natureza da essência da arte? Não adiantará atribuir a diferença à distinção entre estático e dinâmico. Pois embora a natureza seja dinâmica, também determinadas formas de arte – tais como o cinema ou mobiles – o podem ser.
A diferença relevante crucial entre a arte e a natureza é que a natureza é autónoma, automotriz e espontânea. As suas forças – na medida em que falamos na natureza ainda imaculada – estão fora do controlo humano. A arte é produzida por seres humanos. A sua existência envolve o controlo e a selectividade humanos.
Assim, a espontaneidade de um pôr-do-sol permite-nos ver as suas cores, mesmo se estas são muito brilhantes e fortes, como partes de algo belo. Ninguém configurou o pôr-do-sol, ninguém decidiu que essa combinação particular de cores era digna de ser exemplificada. A mesma combinação numa pintura faz parte de algo que se sabe ter sido concebido e construído segundo princípios de seleção. Como tal, as cores poderão parecer ruidosas, ásperas, e o pôr-do-sol excessivamente vívido para contar como uma representação bela.
A mesma diferença explica também a diferença em qualidades expressivas como a crueldade. A crueldade nunca é bela. Faz parte de sistemas funcionais que são destrutivos, conduzem à morte, etc. Pelo que um sorriso cruel que faz parte de um sistema funcional vivo destrutivo não é belo. Mas a representação da crueldade, divorciada de qualquer processo efetivo de destruição, pode ser bela. O esgar cruel na imagem é emoção congelada e destacada da sua rede causal habitual. Nessa medida, pode ser – embora amiúde não o seja – algo belo.
De modo a fruir genuinamente a beleza na natureza temos de ter as capacidades conceptuais e sensoriais necessárias. A capacidade de compreender e interpretar a natureza é necessária para este tipo de percepção e fruição estética. Precisamos, por outro lado, do gosto para fruir objectos de arte belos. O conhecimento e a sensibilidade de um naturalista e o gosto do amante das artes subjazem a diferentes capacidades de fruição estética.
Resumamos a lógica do argumento deste artigo. Começámos por esboçar uma série de distinções de modo a isolar as noções de fruição da beleza na arte e fruição da beleza na natureza. No final, argumentámos a favor de uma diferença essencial relevante entre a arte e a natureza. Dadas as diversas dependências estabelecidas nas secções intermédias do artigo, podemos argumentar a partir das diferenças entre a arte e a natureza para a diferença entre a beleza na arte e a beleza na natureza, e para as diferenças correspondentes entre fruição da beleza na arte e fruição da beleza na natureza.
O facto de termos entre os dois tipos de fruição e reacção conjuntos sobrepostos mas não idênticos de critérios não é apenas de interesse filosófico independente. Afecta também as nossas conceções da educação na arte e apreciação da natureza. Pois que devemos postular diferentes processos de aprendizagem e aquisição para os dois tipos de fruição. O que afirmámos atrás acerca do estilo deu já alguma indicação disso. O que aqui se estabelece é também relevante para preocupações com a estética ambiental. Mostra que o nosso problema não é meramente o de fazer o ambiente ser como os produtos de arte. A natureza tem o seu próprio esplendor, e a sua apreciação é um aspecto distinto da nossa experiência. Assim, devemos deixar a natureza ser um ingrediente crucial do nosso ambiente, nos seus próprios termos, sem a intervenção humana, mesmo que essa intervenção resultasse em obras de arte esteticamente agradáveis.
Essa explicação mostrando a diferença entre fruir a beleza na natureza e fruir a beleza na arte deixa ainda um importante ingrediente comum aos dois tipos de processo. Em ambos os tipos de manifestações a reacção está para lá do prático, da procura do prazer e da exigência de explicações e generalizações teóricas. Como tal, esses tipos de fruição são ingredientes básicos da liberdade humana.
Uma versão anterior deste artigo foi lida no encontro de Outubro de 1979 da American Society for Aesthetics em Tucson. Estou em dívida para com diversos colegas, pelos seus comentários úteis. Estou particularmente em dívida para com J. O. Urmson e Guy Sircello, embora nenhum deles deva ser considerado responsável pelos resultados. ↩︎︎
Não pretendo que a dicotomia arte-natureza seja exaustiva relativamente a todo o domínio da realidade. Uso “natural” com o sentido aproximado de “realidade espaciotemporal, não construída pelo homem, e exibindo movimento e energia próprias”. “Arte” pretende incluir artefactos feitos ou concebidos pelo menos parcialmente para apelar ao nosso sentido da beleza. Assim, p. ex., as refinarias petrolíferas e outros edifícios semelhantes não são incluídos, nem os conceitos abstratos. Os seres humanos não estão incluídos sob este conceito de natureza. O contraste é basicamente entre o ambiente natural e os artefactos concebidos parcialmente para serem belos. ↩︎︎
Para uma argumentação detalhada, veja o meu “Caring for Beauty”, no prelo. ↩︎︎
Veja, p. ex., Allen Carlson, “Appreciation and the Natural Environment”, The Journal of Aesthetics 37 (1979), pp. 267–275, e a bibliografia desse artigo. ↩︎︎
Immanuel Kant, Critique of Judgement #42, 43 e 46. ↩︎︎
Assim, procuramos quer novas variações sobre temas estabelecidos, quer o desenvolvimento de novos “moldes”, i.e., estilos. Toda a obra de arte é produzida num estilo, apropriada ao contexto histórico, etc. A natureza não tem estilos. As suas configurações de beleza permanecem fixas ao longo da história e do desenvolvimento humano. ↩︎︎
Evidentemente, temos preocupações para com as obras de arte, mas essas preocupações estão ligadas a determinadas propriedades das obras. Importa-nos uma obra de arte por causa da sua beleza, ou por causa da sua originalidade. O objecto como tal não tem valor intrínseco, ao passo que as partes da natureza são, por si próprias, membros do “reino dos fins”. ↩︎︎
Para um desenvolvimento, veja Moravcsik, op. cit. ↩︎︎
Aristóteles, Nichomachean Ethics X: 4. ↩︎︎
Aristóteles, op. cit. 1096b 25ss. e Metafísica, livros G e E. ↩︎︎
Como exemplo de uma exposição do essencialismo, veja o meu “The Discernability of Identicals”, Journal of Philosophy 73 (1976), pp.587–598. ↩︎︎
Aproximadamente, a tese da essência mostra que respondermos ou não a um drama social comovente, a um romance histórico ou a uma mera comédia situacional pode ser esteticamente relevante. Além disso, pode haver gradações entre os tipos de beleza, e portanto de fruição, associados a diferentes tipos de obras de arte. Isso não mostra que as considerações sobre mudança social são decisivas para avaliar a importância estética de uma obra de arte, mas mostra como se pode fazer um argumento para mostrar a relevância desse aspecto da nossa experiência ao propor hierarquias entre objectos dignos de fruição estética. ↩︎︎