Menu
Crítica
28 de Agosto de 2020   Ética

Valor, respeito e apego

Guilherme Elizeu Alves da Silveira
Valor, respeito e apego
de Joseph Raz
Tradução de Vadim Nikitin
São Paulo: Martins Fontes, 2004, 164 pp.

Neste livro, Joseph Raz, um dos grandes expoentes da Filosofia do Direito contemporânea, se propõe à tarefa de refletir criticamente sobre os valores morais universais. Como um dos convidados da Conferência Seeley de 2000, buscou clarificar a tese de que os valores morais são universais. O autor mantém que as propriedades valorativas, aquelas que tornam os seus indivíduos melhores ou piores, possuem uma dependência histórica ou social. O desafio então é determinar como pode o valor moral ser universal se depende de práticas sociais contingentes e mutáveis.

Raz afirma que a universalidade parece implicar na imparcialidade, visto que a única razão para qualquer ação é que a ação, em si mesma e em suas consequências, tem propriedades benéficas, tem características que a torna boa. Porém, cabe compreender o que é ou não implicado na universalidade dos valores. O autor, defende a diversidade no interior dessa universalidade, pois para ele a compreensão adequada da diversidade real dos valores é compatível com a crença na universalidade. Contrariando os lugares comuns sobre o assunto, Raz sustenta que a diversidade valorativa é proveniente ou de crenças equivocadas sobre o que é valioso ou da parcialidade em relação a essas crenças, que pode induzir as pessoas ou ao comprometimento ou à indiferença. Esse apelo à parcialidade explicaria como a universalidade do valor pode ser mantida. O filósofo também antecipa algumas objeções, sendo uma delas referente à parcialidade e o apelo a objetos singulares.

No capítulo 1, o autor discute a relação entre apego e singularidade. Ele busca examinar a tese de que os valores morais são universais, ponderando que a universalidade não consegue explicar os nossos apegos mais profundos ao amor e a amizade, ou as relações entre pais e filhos, que são apegos sem os quais a vida não teria sentido.

Raz utiliza a obra “O Pequeno Príncipe” no intuito de demonstrar que gradativamente o mundo se revela diante de nós, e os objetos dos nossos apegos perdem a sua singularidade. Fato este que nos desafia a sermos capazes de conciliar os apegos profundos que definem a nossa identidade, com a noção de que os objetos desses apegos podem não ser mais singulares.

A crença do personagem o Pequeno Príncipe é que a natureza das singularidades pertence ao amor, que para ele é o paradigma de todos os apegos especiais às pessoas e aos objetos. Ele crê que tanto o significado quanto a compreensão, sejam da felicidade ou da desgraça, provém dos nossos apegos particulares, não-universais. Contudo, a outra personagem, a Raposa, defende que tanto a tristeza quanto a felicidade possuem valor, porque podem ser significativas na nossa vida. De fato, são significativas porque não há nenhuma possibilidade de sucesso sem a possibilidade de fracasso, sendo assim que o mundo se investe de significado por meio dos nossos apegos. Raz objeta que nem todos os apegos podem conferir valor aos seus objetos, mas apenas aqueles de valor. Ele ainda afirma que também há um exagero por parte da personagem Raposa, porque nem todo valor parte do que temos em mente ao nos referirmos a significado, pode derivar dos apegos. Além do mais, a personagem parece inferir que há uma ligação geral entre os apegos e a singularidade, ao passo que somente alguns apegos envolvem singularidade.

O capítulo 2 desenvolve a compreensão entre a universalidade e a diferença. Raz considera em que medida a tese universalista falha em se adequar a alguns pontos de vistas comuns sobre as implicações do universalismo do valor e também a respeito do grau de pluralismo a que ela pode atender. O autor mantém que os valores são universais dada uma tênue compreensão da universalidade e que isso é uma qualidade concomitante da inteligibilidade dos valores. A universalidade dos valores é um traço essencial de todos os valores, uma parte do que deve ser uma propriedade benéfica.

A tese defendida nesta obra não procura ser fiel a todas as teses historicamente importantes, mas parece apreender pelo menos uma das motivações importantes de todas elas. A tese é a seguinte:

todos os valores ou são universais ou são subordináveis a valores universais

Um determinado valor é subordinável a outro se a única razão pela qual ele é uma propriedade benéfica é que a sua posse necessariamente passa a instanciar a posse de outra propriedade mais geral, que é uma propriedade benéfica e cuja posse fornece uma explicação normativamente completa de por que a propriedade subordinada é benéfica.

O argumento central a favor da universalidade dos valores consiste na relação entre os valores e sua inteligibilidade, sendo essa universalidade um aspecto da sua inteligibilidade. Supõe-se que qualquer mudança no valor pode ser explicada, ou seja, acredita-se a priori que há uma explicação sobre o que é bom concernente a objetos, estados ou eventos, e sobre o que foi responsável por qualquer mudança no seu valor quando eles mudam de qualidade. Além do mais, Raz defende que as explicações do valor dependem de características universais. As diferenças não-valorativas não são capazes de explicar as diferenças valorativas entre as coisas ou eventos, mas apenas as diferenças universais podem tornar inteligível uma diferença no valor, mesmo que não todas.

É admitido que o valor é racional ou inteligível do princípio ao fim e que não existem fatos valorativos brutos como existem, fatos brutos não-valorativos. Em oposição a essa ideia, o modelo axiomático explicativo defende que para entender alguma coisa, necessita-se de uma explicação. Entretanto, o objetivo de Raz é sustentar que a inteligibilidade dos valores pressupõe a universalidade dos conceitos usados na explicação.

Nos capítulos 3 e 4, Raz apresenta a ideia da vida como pré-condição do valor que o conteúdo dessa vida pode ter e como se vincula ao respeito pela vida das pessoas. O capítulo 3 endossa uma versão do ponto de vista de Epicuro de que “a morte para nós é nada”. O intuito não é dizer que o bem e o mal existem apenas nas sensações, mas que a vida humana não é de modo algum intrínseca e incondicionalmente valiosa. O que se quer afirmar é que a vida é uma pré-condição do bem e em geral um bem condicional, mas que não é incondicionalmente e intrinsecamente boa.

O capítulo 4, faz a distinção entre o respeito à vida das pessoas e o respeito pelas pessoas. Nesse sentido, o nosso dever de respeitar a vida alheia não varia conforme a flutuação de seus conteúdos. É mantido que o respeito pelas pessoas é um dever moral fundamental, e que geralmente é reconhecido como tal.

O entendimento do autor sobre o respeito pelas pessoas é semelhante ao de Kant. Apesar disso, Raz abandona a visão do filósofo alemão e concebe uma exposição independente dela.

É feita uma caracterização formal do que vem a ser um fim em si mesmo e outros fins. Raz destaca que nem todo ato que não trata o indivíduo como um meio para um fim, trata-o como um fim em si mesmo. Essa abordagem serve para demonstrar o equívoco de Robert Nozick que explica a natureza do ser fim em si mesmo pelo caráter do tratamento de qualquer coisa que seja fim em si mesma. De modo geral, mantém-se que ser um fim em si mesmo implica ter características essenciais que atribuem a uma pessoa um valor incondicional. Esse valor incondicional é independente de ser bom para algo ou alguém e possuí-lo é uma razão completa para que o seu possuidor seja tratado com respeito.

Dessa maneira, o livro não busca esgotar a temática envolvendo as noções de valor, respeito e apego, mas sim desenvolver a relação das singularidades com os apegos, defendendo o vínculo das propriedades valorativas com os fatores históricos e sociais sem cair no relativismo moral. O autor elenca argumentos robustos e persuasivos sobre a natureza do valor e as suas consequências para a noção de respeito com as pessoas. Não seria um grande exagero dizer que o livro representa um grande desafio intelectual para o leitor, mas o conduz para uma nova percepção da universalidade.

Guilherme Elizeu Alves da Silveira
Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457