Um céptico radical pode objectar que a discussão acerca do conhecimento e da justificação é uma perda de tempo e de energia. Na sua opinião não há nenhuma crença suficientemente justificada para contar como conhecimento. A razão é que ele não está disposto a chamar conhecimento a qualquer proposição que pode ser objecto de dúvida. E está convencido que não há proposições imunes à dúvida.
Mesmo as espécies de axiomas e premissas básicas de que os racionalistas pretendem partir são vulneráveis à dúvida adoptada por esta espécie mais severa de céptico filosófico. A razão é que este tipo de dúvida é hiperbólica (extremamente exagerada). Descartes chamou-lhe “dúvida metafísica” nas Meditações, querendo dizer que ela ia para além dos habituais sentimentos de incerteza e dúvida psicológica. Este tipo de dúvida é uma ferramenta concebida para testar o conhecimento até ao limite: implica suspender o juízo acerca de tudo aquilo em que é logicamente possível fazê-lo.
Como Descartes concluiu que o seu famoso cogito ergo sum era uma prova contra esta dúvida metafísica, abandonou o cepticismo. Mas alguns cépticos afirmam que é possível suspender o juízo mesmo neste caso. Diriam que a experiência em si própria não produz conhecimento. Todo o conhecimento envolve a aplicação de conceitos e informação prévia à experiência. E mesmo o conceito mais sólido pode ser sujeito a revisão conceptual.
“Bruxas”, “demónios”, os nomes de deuses Gregos, foram outrora vistos como conceitos e expressões referenciais a que se dava crédito. Hoje pensa-se que nunca referiram nada de real. Talvez o mesmo venha a suceder a conceitos como os de ser pensante ou de sujeito da experiência.
Mais fácil de compreender e de merecer o nosso acordo é a prudência do céptico filosófico cuja dúvida recai sobre as descrições observacionais. Não será de facto verdade que eu posso estar sempre enganado quando penso ver uma coisa vermelha ou sentir uma coisa macia?
Se, como esta espécie de céptico, recusarmos chamar conhecimento a tudo o que seja vulnerável à dúvida hiperbólica, haverá muito poucas, se é que há algumas, crenças a que poderemos com autoridade chamar conhecimento.
É justamente por estas razões que alguns filósofos pensam que não há conhecimento. Podemos chamar a esta posição cepticismo global. O céptico global defende que nenhuma crença está imune a esta espécie de dúvida corrosiva; nenhuma crença está suficientemente justificada para contar como conhecimento.
Pensa-se por vezes que podemos refutar facilmente o céptico global. O céptico que afirmasse saber que não há conhecimento estaria a derrotar-se a si próprio no momento em que o dissesse. Estaria a afirmar que tem conhecimento de que não há conhecimento.
Todavia, não é assim tão fácil enfrentar o cepticismo global. Como no caso de Descartes, estamos perante um desafio dirigido sobretudo aos que defendem que alguns tipos de conhecimento existem. O objectivo é fazer os defensores do conhecimento produzir bons argumentos a favor da sua posição.
Logo, o céptico global pode simplesmente negar que existem crenças para além do alcance da dúvida — incluindo a sua própria crença de que não há conhecimento. O ónus da prova está agora do lado do anti-céptico. Como irá responder? Um pequeno passo que poderá ser dado consiste em argumentar que não é logicamente possível que todas as minhas crenças sejam falsas ao mesmo tempo. Algumas proposições em que acredito e tenho justificação para acreditar terão de ser verdadeiras, e deste modo conhecidas por mim ainda que eu não saiba quais são.
Para veres que não é logicamente possível as tuas crenças estarem todas erradas ao mesmo tempo, considera uma crença que parece muito bem justificada. Para qualquer pessoa que leia isto, a crença “Eu não estou no Pólo Norte” parece provavelmente verdadeira e justificada em boas razões. Imagina agora com o céptico que esta tua crença está errada. Se não é verdadeira, implica que é verdadeiro que estás no Pólo Norte.
Mas considera a tua crença de que não estás no Pólo Sul. Se esta segunda crença está errada, isso implica que é verdadeiro que estás no Pólo Sul.
Agora articula as duas crenças. Acreditas que não estás no Pólo Norte e que não estás no Pólo Sul. Pelo menos uma destas crenças terá de ser verdadeira. Não há possibilidade de serem ambas falsas simultaneamente, uma vez que não há possibilidade de estares em ambos os Pólos ao mesmo tempo. (Claro que as crenças podem ser ambas verdadeiras!)
Logo, se o cepticismo global é a perspectiva de que todas as crenças podem ser falsas em conjunto, então o cepticismo global está errado.
Infelizmente para o anti-céptico, há uma versão mais robusta de cepticismo global. Podemos concordar que as minhas crenças não podem ser todas falsas em conjunto; mas isto não é relevante, uma vez que eu nunca sei que crenças de todo o conjunto de crenças são efectivamente verdadeiras. De cada crença em particular eu não posso saber se é correcta. Logo, cada uma das minhas crenças isoladamente pode ser objecto de dúvida ainda que todas em conjunto não.
Chegados a este ponto, alguns epistemologistas defenderiam que a posição do céptico não é tão ameaçadora como se poderia pensar à primeira vista. Um externista acerca do conhecimento diria que para ter conhecimento não é necessário que o sujeito em questão saiba que sabe. O conhecimento não tem a ver com o estado mental do sujeito. Tem a ver com satisfazer as condições do conhecimento. É uma questão do sujeito estar justificado da maneira certa a acreditar em algo que é verdade.
Para o externista, sempre que o sujeito está ligado da maneira certa à crença de cuja verdade ele está convencido, e às circunstâncias e relações que fornecem a justificação da sua crença, isto é suficiente para haver conhecimento. Condições externas ao sujeito — ou pelo menos independentes da sua consciência de que elas se verificam — tornam verdade que a crença particular de um sujeito particular numa circunstância particular é conhecimento. Se é uma crença verdadeira justificada não acidentalmente, é conhecimento. E isto é assim caso o sujeito saiba que sabe ou não.
Por sua vez, não é surpreendente que a perspectiva contrastante acerca do conhecimento chamada internismo seja mais ameaçada pelo tipo de cepticismo global que temos estado a examinar. Para o internista, o conhecimento consiste na consciência de que as condições do conhecimento são satisfeitas num determinado caso. Segundo esta perspectiva, um sujeito S conhece p apenas se
Neste momento torna-se evidente que o desafio de Gettier fortaleceu as bases do céptico. Podemos ver que é possível um elemento de sorte ou acidente estar envolvido em praticamente qualquer exemplo concebível de conhecimento que pensamos ter. Dois exemplos bastam para tornar claro este ponto:
Eis o primeiro. Supõe que eu estou a olhar para um vaso que está em cima da mesa e afirmo saber a verdade da proposição (p), “Há um vaso em cima da mesa”, com base na minha percepção. Habitualmente faríamos uso da percepção visual de alguma coisa sob condições normais para justificar uma afirmação perceptiva. Logo, p pode parecer o exemplo de conhecimento menos controverso que eu posso afirmar ter.
Todavia, o céptico poderia argumentar que — ainda que ele conceda que p é verdadeira — a minha crença em p não equivale a conhecimento apesar dos meus indícios sensoriais serem muito bons. Isto porque eu não excluí a possibilidade de estar a ver um engenhoso holograma de um vaso situado justamente em frente do (e obscurecendo a visão do) vaso que efectivamente está lá. Eu não derrotei a possibilidade de ser mero acidente a minha crença justificada na minha proposição verdadeira. Logo, eu não tenho conhecimento.
O segundo exemplo é o seguinte. Depois de uns dias perdido e sem água no deserto, ficaste cego e começaste a alucinar. Vês um oásis à distância e pensas “Finalmente, água”. Será que sabes que há água naquele lugar? Ainda que seja verdade que há água exactamente onde pensas vê-la, poderias estar certo simplesmente por um acidente da tua imaginação. A possibilidade de que és apenas um cego alucinado com sorte derrota a tua afirmação de que sabes que tens uma crença verdadeira justificada.
Para o internista, o conhecimento não exige apenas efectivamente uma crença verdadeira justificada de maneira não acidental. Exige uma crença verdadeira justificada não acidental que não é derrotada pela possibilidade de quaisquer circunstâncias enganadoras como as descritas nos exemplos. Uma vez que o número de tais circunstâncias é apenas limitado pelas fronteiras bastante generosas da imaginação, para o internista o conhecimento parece estar cada vez mais para além do nosso alcance.
Comparativamente, os exemplos que acabaste de ver e as consequências cépticas que era seu objectivo apoiar são num certo sentido estranhos e exóticos. Lembra-te que eles se dirigem apenas às proposições que o céptico concede serem verdadeiras e altamente justificadas para o sujeito que acredita nelas. Todavia, o céptico tem razões para pensar que elas fracassam como tentativas de conhecimento.
Mas há um grande número de argumentos cépticos familiares que procuram tirar proveito da consciência de que as nossas capacidades para adquirir conhecimento são imperfeitas. Procuram fazer-nos duvidar comparando as nossas circunstâncias actuais com aquelas em que no passado acabámos por estar enganados, embora na altura pensássemos estar justificados. Esta secção explicará o “argumento da ilusão”. Nas duas próximas secções trataremos de argumentos que têm a ver com o sonho e com a possibilidade de engano.
O argumento da ilusão é frequentemente usado pelos cépticos a propósito do conhecimento do mundo externo. É especificamente concebido para derrubar a nossa confiança nos sentidos. Este argumento pode ser dividido em três passos principais. Primeiro o céptico pergunta “O que é aquilo de que eu estou imediatamente consciente na experiência dos sentidos?” Ele quer fazer-me aceitar que os objectos imediatos da percepção são os dados dos sentidos.
Um dado dos sentidos é um fragmento simples do que é sensorialmente dado; por exemplo, a mancha vermelha que eu vejo é um dado visual e o som suave que eu ouço é um dado auditivo. Parece difícil resistir a afirmar que aquilo de que eu estou imediatamente consciente na percepção sensorial são os nossos dados dos sentidos.
Além disso, pensa em todas as maneiras de eu poder estar errado acerca da minha experiência actual. Há muitas ilusões e percepções erradas a que eu poderia estar sujeito. Por exemplo:
Mas em todos estes casos há seguramente alguma coisa que tem as propriedades sensoriais que erradamente atribuo ao mundo. Alguma coisa é realmente pequena, quente, preta, desfocada, o que quer que seja. O céptico argumenta que em todos estes casos terá de haver dados dos sentidos que são distintos dos sujeitos e das coisas: terá de haver dados dos sentidos com as propriedades sensoriais que o mundo apenas parece ter.
Se eu concordar que estou consciente dos dados dos sentidos em casos de ilusão ou de percepção errada, então o céptico avançará para o segundo passo do seu argumento. Este consiste em mostrar que, em igualdade de condições, a melhor política é dar uma única explicação para todos os fenómenos com semelhanças relevantes. Concordamos que a melhor explicação para os erros de percepção é apelar para os dados dos sentidos que fazem a mediação entre o sujeito e o mundo. Logo, temos de concordar que os dados dos sentidos fazem a mediação entre o sujeito e o mundo em todos os casos de percepção, mesmo naqueles em que não há engano. Estas últimas são chamadas percepções verídicas, querendo dizer “percepções que dizem a verdade” ou “percepções que tendem a levar o sujeito a fazer um juízo correcto acerca da natureza da coisa percebida”.
O terceiro e último passo do argumento da ilusão é como se segue. Concordamos que a percepção sensorial consiste sempre em dados dos sentidos que fazem a mediação entre o sujeito e o mundo. Estes dados sensoriais são habitualmente vistos como uma espécie particular de entidades mentais. Mas seja qual for o seu estatuto metafísico, eles são intermediários. O seu papel é representar as coisas exteriores ao sujeito. E qualquer intermediário pode representar de uma maneira fiel ou enganadora.
A partir dos casos de ilusão e de percepção errada, sabemos que os dados dos sentidos às vezes enganam. Talvez os dados dos sentidos na sua maioria sejam verídicos; mas como podemos nós alguma vez saber? Faz parte da natureza da percepção não haver uma posição a partir da qual podemos ver (ou perceber) se os nossos dados dos sentidos correspondem ao mundo ou não. Não há perspectiva a partir da qual podemos ver se eles são representações fiéis.
Isto sucede porque temos de usar sempre os nossos sentidos na percepção e eles, por sua vez, fazem uso de dados dos sentidos. Eles parecem (ou isto é o que o céptico gostaria que acreditássemos) formar uma espécie de véu entre nós e o mundo, impedindo-nos de descrever a natureza do mundo. Tanto quanto sabemos, ocasionalmente ou a todo o momento poderá não haver nada para além deste véu da percepção. Os nossos dados dos sentidos poderão ser tudo o que há.
Muitos filósofos, incluindo notoriamente Descartes, levantaram um problema céptico a respeito do sonho. Este problema poderá ser claramente formulado a partir do ponto a que acabamos de chegar na secção anterior. O ponto é que, tanto quanto sabemos, os dados dos sentidos podem ser tudo o que há.
Todos nós já tivemos a experiência de acordar de um sonho para descobrir que o que nós pensávamos ver, ouvir ou sentir de outra maneira não estava realmente lá. Enquanto dormíamos, a nossa experiência era exactamente como se estivéssemos a ver ou ouvir o que quer que fosse. Mas agora acordamos para ficar a saber que de certo modo estávamos iludidos.
O céptico lembra-nos esta experiência universal de confundir as aparências não verídicas ou dados dos sentidos do sonho com as verídicas. A seguir pergunta como posso eu alguma vez estar seguro de que neste momento não estou a sonhar, de tal modo que quaisquer dados dos sentidos de que eu possa estar a ter experiência são somente os enganadores dados dos sentidos dos sonhos.
Neste momento todos nós sabemos a diferença entre sonho e realidade. O problema é que em nenhum ponto podemos aplicar um teste que nos diga se a nossa experiência actual é um sonho. Por exemplo, uma pessoa pode sonhar que se belisca a si própria e que, ao fazê-lo, está acordada. Na verdade, a pessoa que sonha pode sonhar que está a aplicar um qualquer teste imaginável para ver se está acordada.
Logo, o céptico parece ter um bom argumento para dizer que ninguém sabe nunca seja o que for com base nos indícios dos sentidos. Os meus dados dos sentidos podem ser sempre os produtos do sonho em vez de genuína experiência em estado de vigília.
O argumento do engano é outra hipótese céptica que funciona de maneira muito semelhante aos dois argumentos anteriores. Mas, pelo menos na versão de Descartes, aplica a dúvida não apenas ao conhecimento baseado nas descrições sensoriais, mas também às verdades necessárias da lógica e matemática. Trata-se da hipótese segundo a qual, tanto quanto sei, alguém pode estar a enganar-me e levar-me a acreditar em proposições que eu penso estar bastante justificado a acreditar.
Descartes criou a noção de um enganador astuto: um ser omnipotente e maligno que se devota a enganar-me tanto quanto possível. Assim, por exemplo, eu posso pensar que estou a ver algum objecto material bastante familiar em boas condições de luz e que tenho saúde e olhos que funcionam bem. Mas é logicamente possível que durante todo esse tempo o objecto não exista e que eu seja astutamente levado a pensar que o estou a ver. Talvez nada de material exista e eu seja apenas uma mente imaterial sujeita a uma enorme e sistemática fraude.
É preciso dizer que Descartes não acreditava que existe esse enganador astuto. Deus não permitiria que um ser assim existisse. Todavia, tão longe quanto vai o que é logicamente possível, parece que não podemos excluir a priori que qualquer uma das nossas crenças possa ser causada por um embuste, e não pela sua causa aparente. Assim, também este argumento céptico parece apoiar fortemente o cepticismo radical.
Recentemente, cépticos radicais recorreram a um expediente céptico, conhecido como a “hipótese do cérebro numa cuba”, que é muito semelhante ao enganador astuto. O céptico pergunta a todo aquele que pensa poder conhecer o que o rodeia como sabe ele que não é um cérebro que foi removido do seu crânio e corpo por um cientista louco, posto numa cuba de nutrientes químicos e ligado a um computador gigante que lhe fornece dados dos sentidos exactamente como se ele estivesse ligado a olhos, ouvidos, papilas gustativas, etc. Um cérebro numa cuba sofreria de uma ilusão em grande escala acerca do seu ambiente real. Acreditaria erradamente que via, ouvia e sentia o mundo através de um corpo humano vivo e completo. E não saberia que era apenas uma pequena massa de material fabricando um cérebro humano.