Teremos maneira de saber se sabemos alguma coisa? O céptico defende que não.
O problema pode parecer estranho; e, se o problema pode parecer estranho, a resposta céptica pode parecê-lo ainda mais. Muitas vezes temos boas razões para duvidar de que saibamos certas coisas; há, todavia, outras coisas de que nos parece difícil duvidar seriamente. Mas o céptico pensa ter um bom argumento.1 O seu argumento pode ser formulado do seguinte modo:
Se há conhecimento, então as nossas crenças estão justificadas; mas as nossas crenças não estão justificadas; logo, não há conhecimento.
Ora, este argumento é válido.2 Se for sólido, teremos de aceitar a sua conclusão; se não queremos aceitar a sua conclusão, teremos de mostrar que não é sólido.
Mas por que razão deveremos preocupar-nos com a conclusão céptica? Porque não poderemos aceitá-la, ainda que com uma reserva sorridente — e passar tranquilamente adiante?
Essa é uma possibilidade. O que há de insatisfatório com ela é que, se a aceitamos, dificilmente haverá um adiante a que passar. Muitos filósofos pensam que a conclusão céptica é inaceitável; e que temos, por conseguinte, boas razões para nos ocuparmos dela. Se isso é verdade, então temos de regressar ao argumento céptico e procurar determinar o que há de errado com ele.
Será o argumento céptico um argumento sólido? Válido, é; se é válido, então será sólido na circunstância em que todas as suas premissas são verdadeiras. Serão?
A primeira premissa parece indisputável; isto porque não parece possível haver conhecimento sem justificação. Mas a segunda premissa não parece tão evidentemente verdadeira; e isto porque não é óbvio que as nossas crenças — ou, ao menos, algumas delas — não estejam justificadas. Se o céptico pretende que o seu argumento é sólido, então deverá defender a sua segunda premissa.
O argumento céptico da regressão infinita procura fazê-lo. Este argumento pode ser formulado do seguinte modo:
Todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças; se todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças, então há uma regressão infinita; se há uma regressão infinita, então as nossas crenças não estão justificadas; se as nossas crenças não estão justificadas, então não há conhecimento; logo, não há conhecimento.
Ora, este argumento é válido; logo, e mais uma vez, se não queremos aceitar a sua conclusão, teremos de mostrar que pelo menos uma das suas premissas é falsa. Mas será? E, se o for, qual?
Descartes procura responder ao argumento céptico da regressão infinita mostrando que a sua primeira premissa é falsa; isto é, mostrando que não é verdade que todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças.
Mas esse não é o seu principal problema. A Descartes não parece satisfatório mostrar que o céptico pode estar errado3: ele pretende mostrar que o céptico está, efectivamente, errado. O seu principal problema pode ser formulado do seguinte modo: “Como poderemos garantir que o nosso conhecimento é absolutamente seguro?”
Como o céptico, Descartes parte da dúvida; mas, ao contrário do céptico, não permanece nela. A dúvida cartesiana é muito especial, por diversas razões.
A primeira é que Descartes não duvida por duvidar: ele duvida porque procura um conhecimento absolutamente seguro; isto é, um conhecimento que resista à dúvida mais obstinada, um conhecimento do qual não haja razões para duvidar. Por isso se diz que a dúvida cartesiana é metódica: é um método para encontrar o conhecimento absolutamente seguro que Descartes procura.
Mas, se o que se procura é um conhecimento absolutamente seguro, então é necessário começar por duvidar de tudo o que simplesmente possa parecer duvidoso; é necessário explorar todas as possibilidades de erro, mesmo as mais remotas; isto porque resistir à dúvida é uma condição necessária para o tipo de conhecimento que procuramos. Claro que isto é um exagero: na maior parte do tempo, não temos razões para duvidar da maior parte das coisas. Por esta razão dizemos que a dúvida cartesiana é hiperbólica.
Na maior parte do tempo, por exemplo, acreditamos nos nossos sentidos. Mas, pensa Descartes, os nossos sentidos, por vezes, enganam-nos; ora, se os nossos sentidos nos enganam, ainda que apenas por vezes, então o melhor é não acreditarmos neles nunca; isto porque, como diz, é prudente não confiar em quem nos engana, nem que seja uma só vez. Mas também a razão, na qual acreditamos na maior parte do tempo, nos engana por vezes, mesmo nos cálculos mais simples; por isso, devemos também desconfiar da razão. Por examinar cuidadosamente todas as possíveis fontes de erro se diz que a dúvida cartesiana é sistemática.
O génio maligno, que surge nas Meditações, é uma possibilidade muito remota; mas é uma possibilidade; logo, não podemos deixar de considerá-la. Mas quem é este génio maligno?
Este génio maligno é uma espécie de deus; é génio, porque os seus poderes são, supostamente, superiores aos poderes humanos; mas, por ser maligno, não pode ser o verdadeiro Deus, uma vez que Este é bom (ocupar-nos-emos da justificação desta crença mais adiante). Este génio maligno tem uma obsessão: enganar-me. É ele que me induz a acreditar que tenho duas mãos, que tenho um corpo, que há uma realidade exterior a mim, ou que 2 + 3 são 5. Mas tudo isto pode ser falso. Todos os meus pensamentos podem ser mero produto da acção maligna deste génio.
Isto não é tão implausível quanto pode parecer: de facto, é como supor que se vive permanentemente numa realidade virtual. Pode, inclusivamente, suceder que eu esteja enganado quanto ao meu corpo; talvez o meu corpo não seja aquilo que os meus olhos me dizem que ele é; talvez eu não tenha sequer um corpo — nem, se isso é verdade, olhos que me digam como ele é. Talvez eu não seja senão um cérebro numa cuba, que um cientista perverso se entretém a estimular, de maneira que eu pense os pensamentos e tenha as sensações que ele quer que eu pense e tenha.
Aqui está Descartes aparentemente imerso num oceano de dúvidas: os sentidos, diz, enganam-me, a razão engana-me e, para complicar tudo, pode suceder que um génio maligno não faça senão enganar-me. Parece que a única certeza que tenho é de que duvido.
Mas, diz Descartes, “notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, eu, que assim o pensava, necessariamente era alguma coisa. E notando que esta verdade — eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos cépticos seriam impotentes para a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava” (Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 28). E, mesmo que um génio maligno persista em enganar-me, é, ainda assim, necessário que eu exista para ser enganado.
“Penso, logo existo” — o cogito, como ficou conhecida esta crença — parece uma crença básica: uma crença que não se infere de coisa alguma. O cogito é uma intuição racional, uma evidência. Como seria possível duvidar dele? Se não é possível duvidar dele, então é o tipo de conhecimento que procuramos: resistente à dúvida.
A primeira premissa do argumento céptico da regressão infinita parece, pois, definitivamente falsa. Afinal, nem todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças; isto porque encontrámos uma que, aparentemente, não tem necessidade de qualquer outra que a justifique.
E a melhor parte é que é possível encontrar mais conhecimentos deste tipo: basta ver o que há no “penso, logo existo” que o torna indubitavelmente verdadeiro. E o que há, pensa Descartes, é isto: é que “vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir” (Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 28). Se isto é verdade, então o que quer que eu possa conhecer muito claramente — e, já agora, também muito distintamente — será verdadeiro.
Mas parece faltar um fundamento mais sólido a este conhecimento. Com efeito, do facto de eu ver clara e distintamente que, dado um triângulo, é necessário que a soma dos seus ângulos internos seja igual a dois ângulos rectos, ainda não se segue que haja no mundo qualquer triângulo. Como posso saber que não estou a alucinar ao pensar que existem triângulos? Na ausência de um fundamento mais sólido para o conhecimento, nenhuma razão temos para acreditar que, por mais claras e distintas que as nossas ideias sejam, elas tenham a perfeição de serem verdadeiras (Ver Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 33).
Sei que penso, e existo; mas, por vezes, duvido, e engano-me; logo, não sou perfeito. No entanto, tenho a ideia de perfeição; caso contrário, como poderia pensar que não sou perfeito? Mas de onde me chegou a ideia de perfeição?
Ou a ideia de perfeição foi criada por mim, ou a recebi do mundo exterior, ou me chegou de outro sítio qualquer. Mas a ideia de perfeição não pode ter sido criada por mim; isto porque não sou perfeito, e o imperfeito não pode criar o perfeito. Pela mesma razão, não a recebi do mundo exterior, uma vez que no mundo exterior nada parece haver mais perfeito do que eu mesmo. Logo, a ideia de perfeição só pode ter sido posta em mim por um ser absolutamente perfeito: Deus, para tudo dizer numa palavra (Ver Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 29).
Mas poderemos estar seguros de que Deus existe? Descartes pensa que sim. Isto porque, diz, um ser absolutamente perfeito é um ser que tem todas as perfeições; se não tiver todas as perfeições, então não será absolutamente perfeito. Ora, a existência é uma perfeição; isto porque de uma coisa que não existe dificilmente se pode dizer que é perfeita. Mais perfeita do que a casa dos meus sonhos é a casa dos meus sonhos tornada realidade. Logo, se Deus é um ser absolutamente perfeito, então necessariamente existe. E Deus é um ser absolutamente perfeito. Logo, Deus existe necessariamente.
Se Deus existe e é perfeito, então não pode querer que eu esteja enganado acerca da existência do mundo ou das leis da natureza que Ele mesmo criou; isto porque, se o fizesse, não seria bom, e a bondade é uma perfeição; logo, o mundo existe, e eu posso conhecê-lo. “Na verdade, diz Descartes, aquilo mesmo que há pouco adoptei como regra, isto é, que são inteiramente verdadeiras as coisas que concebemos muito clara e distintamente, não é certo senão porque Deus é ou existe, ser perfeito de que nos vem tudo o que em nós existe. Donde se segue que as nossas ideias ou noções, coisas reais que provêm de Deus, não podem deixar de ser verdadeiras na medida em que são claras e distintas” (Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 32).
Assim, Deus parece ser o fundamento de que Descartes carecia para alicerçar convenientemente o conhecimento sem erro que procurava. Descartes parece ter finalmente encontrado o seu rochedo, no meio de um mar de dúvidas. Mas terá ele resolvido o problema?
O fundacionalismo cartesiano tem sido objecto de muitas críticas. Vamos referir aqui apenas três.
Alguns filósofos pensam que Descartes foi longe demais ao afirmar “eu penso”; um deles, o filósofo Georg Lichtenberger, observou: “Deveríamos dizer 'há pensamento' exactamente como dizemos 'troveja'”. A ideia é que a referência a um “eu” como sujeito do pensamento é abusiva. Não dizemos que alguém troveja, mas que uma trovoada está em curso; analogamente, diz Lichtenberger, Descartes não pode pretender escapar à dúvida nomeando um “eu” que pensa: tudo o que pode dizer é que “há um pensamento em curso”.
Se devemos levar a sério a hipótese do génio maligno, então não temos mais razões para acreditar no “eu” que pensa do que no “eu” físico, histórico e social. Neste ponto, o argumento de Descartes parece ser o seguinte:
Não posso duvidar da minha existência; mas posso duvidar da existência de corpos; logo, não sou um corpo.
É discutível que seja este o argumento de Descartes; mas, se é esse, é falacioso. Considere-se o seguinte contra-exemplo5:
Não posso duvidar de que estou aqui na sala; mas posso duvidar de que uma pessoa que está aqui na sala receberá amanhã más notícias; logo, eu não sou uma pessoa que receberá amanhã más notícias.
O cogito, só por si, dificilmente poderia constituir um fundamento sólido para o conhecimento. De facto, é a existência de Deus que garante a Descartes que não se engana quando pensa clara e distintamente. Mas, por outro lado, parece que Descartes só pode saber que Deus existe porque compreende clara e distintamente a Sua existência, a existência de um ser perfeito.
Se este é o argumento de Descartes, como pensam alguns críticos, então é falacioso, pois trata-se de um argumento circular: para saber que as ideias claras e distintas são verdadeiras, tenho primeiro de saber que Deus existe; mas, para saber que Deus existe, tenho primeiro de saber que as ideias claras e distintas são verdadeiras.
A terceira e última crítica que referiremos aqui questiona a validade da demonstração cartesiana da existência de Deus a partir da ideia de causalidade.
Vimos anteriormente Descartes argumentar que a ideia de perfeição só pode ter sido causada por um ser perfeito; mas, para alguns críticos, esta ideia está longe de ser clara e distinta. Quem nos garante que não é ainda o génio maligno a manipular a nossa mente, e a enganar-nos quando pensamos que a ideia de perfeição só pode ter sido causada por um ser perfeito? Na verdade, Descartes ainda não afastou completamente a hipótese do génio maligno.
E, afinal, que razões temos para acreditar que a ideia de perfeição tem de ser causada por um ser perfeito? Teremos sequer razões para acreditar que tal ideia tem de ser causada? Posso ter a ideia de uma pessoa perfeitamente pontual, por exemplo. Será que esta ideia exige uma causa perfeitamente pontual? Isto não parece fazer sentido. Talvez a ideia de uma pessoa perfeitamente pontual acabe por ser a definição de uma pessoa perfeitamente pontual. Mas a definição de uma pessoa perfeitamente pontual é uma ideia que posso ter sem jamais ter encontrado tal pessoa, ou mesmo que tal pessoa não exista (ver Simon Blackburn, Pense: Uma Introdução à Filosofia, Lisboa, Gradiva, 2001, p. 43).
Parece, pois, que Descartes não conseguiu demonstrar satisfatoriamente a existência de Deus; e, se não conseguiu demonstrar satisfatoriamente a existência de Deus, então o cogito não é garantia suficiente de um conhecimento à prova de erro. Por isso, alguns filósofos pensam que Descartes não conseguiu resolver satisfatoriamente o problema e que, se queremos refutar definitivamente o céptico, teremos de encontrar outros fundamentos para o conhecimento.
É desse modo que pensam os fundacionalistas clássicos como Locke, Berkeley e Hume.
Artur Polónio