A epistemologia evolucionista é uma abordagem naturalista à epistemologia que enfatiza a importância da seleção natural em dois papéis principais. No primeiro papel, a seleção é o que gera e mantém a confiabilidade dos nossos sentidos e dos nossos mecanismos cognitivos, assim como o “ajuste” entre esses mecanismos e o mundo. No segundo papel, o aprendizado por tentativa e erro e a evolução das teorias científicas são interpretados como processos da seleção.
A epistemologia tradicional tem as suas raízes em Platão e nos céticos antigos. Uma corrente surge do interesse de Platão no problema de distinguir entre conhecimento e crença verdadeira. A sua solução era sugerir que o conhecimento diferenciava-se da crença verdadeira por ser justificado. Os céticos antigos acusavam que todas as tentativas de fornecer essa justificação eram incorrigivelmente defeituosas. Uma outra corrente surge da tentativa de fornecer uma reconstrução do conhecimento humano que mostrasse como as partes do conhecimento humano se encaixam numa estrutura de apoio mútuo. Esse projeto obteve sua forma moderna de Descartes e há versões empiristas bem como racionalistas, que, por sua vez, podem fazer uma viragem fundacionalista ou coerentista. As duas correntes se entrelaçam através de um tema comum. Os laços que sustentam a reconstrução do conhecimento humano são as relações de justificação e de prova que nos permitem distinguir conhecimento de crença verdadeira.
A abordagem tradicional está baseada na suposição de que as questões epistemológicas têm de ser respondidas de maneira a não pressupor nenhum conhecimento particular. O argumento é que tal recurso seria obviamente uma petição de princípio. Essas abordagens podem ser rotuladas apropriadamente de “transcendentais”.
A revolução darwinista do século XIX sugeriu uma abordagem alternativa, primeiramente explorada por Dewey e pelos pragmatistas. Os seres humanos, como produtos do desenvolvimento evolutivo, são seres naturais. As suas capacidades para o conhecimento e para a crença também são os produtos do desenvolvimento evolutivo natural. Enquanto tais, há alguma razão para suspeitar que o ato de conhecer, como atividade natural, pode e deve ser tratado e analisado em termos compatíveis com o seu estatuto, isto é, por meio dos métodos das ciências naturais. Para essa visão, não há uma divisão de trabalho nítida entre ciência e epistemologia. Em particular, os resultados de ciências particulares, como a biologia evolucionista e a psicologia, não são excluídos a priori como irrelevantes para a solução de problemas epistemológicos. De maneira geral, essas abordagens são chamadas de epistemologias naturalistas, independentemente de serem ou não diretamente motivadas por considerações evolucionistas. Aquelas que são diretamente motivadas por considerações evolucionistas e que argumentam que o desenvolvimento do conhecimento segue o modelo da evolução na biologia são chamadas de “epistemologias evolucionistas”.
A epistemologia evolucionista é a tentativa de tratar questões da teoria do conhecimento a partir de um ponto de vista evolucionista. A epistemologia evolucionista envolve, em parte, o desdobramento de modelos e metáforas extraídos da biologia evolucionista numa tentativa de caracterizar e resolver questões que surgem da epistemologia e da mudança conceitual. Enquanto as disciplinas co-evoluem, os modelos são movimentados de um lado para outro. Assim, a epistemologia evolucionista envolve também tentativas de compreender como funciona a evolução biológica interpretando-a através de modelos extraídos de nossa compreensão da mudança conceitual e do desenvolvimento de teorias. O termo “epistemologia evolucionista” foi cunhado por Donald Campbell (1974).
Existem dois programas distintos mas inter-relacionados que atendem pelo nome de “epistemologia evolucionista”. Um focaliza o desenvolvimento dos mecanismos cognitivos em animais e humanos. Isso envolve uma extensão direta da teoria biológica da evolução àqueles aspectos ou características dos animais que são os substratos biológicos da atividade cognitiva, por exemplo, os seus cérebros, sistemas sensoriais, sistemas motores, etc. O outro programa tenta explicar a evolução das idéias, das teorias científicas, das normas epistêmicas e da cultura em geral usando modelos e metáforas extraídos da biologia evolucionista. Ambos os programas têm as suas raízes na biologia e na filosofia social do século XIX, na obra de Darwin, Spencer, James e outros. Houve diversas tentativas nos anos que se seguiram de desenvolver os programas em detalhes (veja Campbell 1974, Bradie 1986, Cziko 1995). Boa parte do trabalho contemporâneo em epistemologia evolucionista deriva da obra de Konrad Lorenz (1977), Donald Campbell (1974, et. al.), Karl Popper (1972, 1984) e Stephen Toulmin (1967, 1972).
Os dois programas foram rotulados de EME e de EET (Bradie, 1986). EME é o rótulo para o programa que tenta fornecer uma explicação evolucionista do desenvolvimento das estruturas cognitivas. EET é o rótulo para o programa que tenta analisar o desenvolvimento do conhecimento humano e das normas epistemológicas recorrendo a considerações biológicas relevantes. Algumas dessas tentativas envolvem analisar o desenvolvimento do conhecimento humano em termos de modelos de seleção e de metáforas (por exemplo, Popper 1972, Toulmin 1972, Hull 1988). Outros argumentam a favor de um fundamento biológico para as normas e metodologias epistemológicas mas rejeitam os modelos selecionistas em si do desenvolvimento do conhecimento humano (por exemplo, Ruse 1986, Rescher 1990).
O EME e o EET são programas interconectados mas distintos. Uma explicação selecionista de EME bem-sucedida para as estruturas cognitivas do cérebro não garante, por si só, a extensão desses modelos para compreender o desenvolvimento dos sistemas de conhecimento humano. Semelhantemente, endossar uma explicação selecionista de EET de como os sistemas de conhecimento humano se desenvolvem não garante, por si só, concluir que as estruturas cerebrais gerais ou específicas envolvidas na cognição são o resultado da seleção natural de capacidades cognitivas mais adequadas. Os dois programas, apesar de semelhantes no propósito e de se basearem nos mesmos modelos e metáforas, não precisam andar necessariamente juntos.
O desenvolvimento biológico envolve considerações tanto ontogenéticas quanto filogenéticas. Assim, o desenvolvimento de características específicas, como o polegar opositivo nos humanos, pode ser visto tanto do ponto de vista do desenvolvimento dessa característica nos organismos individuais (ontogenia) quanto do ponto de vista do desenvolvimento dessa característica na linhagem humana (filogenia). O desenvolvimento do conhecimento e dos mecanismos para conhecer exibe uma distinção semelhante. Podemos considerar o desenvolvimento do corpus de conhecimento e das normas epistemológicas de um indivíduo ou o seu cérebro (ontogenia) ou o desenvolvimento do conhecimento humano e o estabelecimento das normas epistemológicas através das gerações ou o desenvolvimento de cérebros na linhagem humana (filogenia). A distinção EME/EET atravessa essa distinção, dado que podemos estar preocupados com o desenvolvimento ontogenético ou filogenético do cérebro, por exemplo, ou com o desenvolvimento ontogenético e filogenético de normas e conjuntos de conhecimento. Alguém poderia esperar que, dado que a ortodoxia atual sustenta que os processos biológicos da ontogênese funcionam de modo diferente dos processos selecionistas da filogênese, as epistemologias evolucionistas refletiriam essa diferença. Curiosamente, porém, na maior parte das vezes isso não ocorre. Por exemplo, a teoria do “Darwinismo Neural”, tal como avançada por Edelman (1987) e Changeux (1985), oferece uma explicação selecionista do desenvolvimento ontogenético das estruturas neurais do cérebro. O modelo de Karl Popper do desenvolvimento do conhecimento humano através de conjecturas e refutações é um exemplo bem conhecido de uma explicação selecionista que foi aplicada tanto ao desenvolvimento ontogenético do conhecimento em indivíduos como à evolução através de gerações (filogenética) do conhecimento humano. A teoria do condicionamento operante de B. F. Skinner, que lida com a ontogênese do comportamento individual, é explicitamente baseada no modelo darwinista da seleção (Skinner 1981).
Uma terceira distinção se refere às abordagens descritivas contra as abordagens prescritivas à epistemologia e ao desenvolvimento do conhecimento humano. Tradicionalmente, a epistemologia foi interpretada como um projeto normativo cujo objetivo é clarificar e defender concepções de conhecimento, fundamentos, garantia de evidência e justificação. Muitos argumentaram que nem os programas EME nem os programas EET têm alguma coisa a ver com a epistemologia adequadamente (isto é, tradicionalmente) entendida. O fundamento para essa afirmação é que a epistemologia, entendida adequadamente, é uma disciplina normativa, ao passo que os programas EME e EET estão preocupados com a construção de modelos causais e genéticos (isto é, descritivos) da evolução das capacidades cognitivas ou dos sistemas de conhecimento. Nenhum desses modelos, alegam, pode ter alguma coisa importante para contribuir para a epistemologia normativa (por exemplo, Kim 1988). A força dessa crítica depende de como se interpreta a relação entre a epistemologia evolucionista e a tradição.
Existem três configurações possíveis da relação entre epistemologias descritivas e epistemologias tradicionais. (1) As epistemologias descritivas podem ser interpretadas como rivais das epistemologias normativas tradicionais. Para essa visão, ambas tentam lidar com os mesmos problemas e oferecem soluções concorrentes. Riedl (1984) defende essa posição. Uma objeção clássica a essas abordagens é que as explicações descritivas não são adequadas para fazer justiça aos elementos prescritivos das metodologias normativas. A extensão com que uma abordagem evolucionista contribui para a resolução de problemas filosóficos e epistemológicos tradicionais é uma função de que abordagem se adota. (cf. Dretske 1971, Bradie 1986, Ruse 1986, Radnitsky e Bartley 1987, Kim 1988). (2) A epistemologia descritiva poderia ser vista como uma disciplina sucessora da epistemologia tradicional. Para essa leitura, a epistemologia descritiva não trata das mesmas questões da epistemologia tradicional porque ela as considera irrelevantes ou irrespondíveis ou desinteressantes. Muitos defensores das epistemologias naturalizadas caem nesse lado (por exemplo, Munz 1993). (3) A epistemologia descritiva poderia ser vista como complementar à epistemologia tradicional. Essa parece ser a visão de Campbell. Para essa análise, a função da abordagem evolucionista é fornecer uma explicação descritiva dos mecanismos cognitivos enquanto deixa os aspectos prescritivos da epistemologia para as abordagens mais tradicionais. Na melhor das hipóteses, a análise evolucionista serve para excluir abordagens normativas que sejam implausíveis ou inconsistentes com a origem evolutiva do entendimento humano.
Os programas EME estão carregados com as incertezas típicas das reconstruções filogenéticas. Esse órgão ou estrutura é uma adaptação e, se sim, para que? Além disso, existem incertezas que são o resultado do registro fóssil necessariamente escasso do desenvolvimento dos órgãos sensoriais. Os programas EET são até mesmo mais problemáticos. Embora seja plausível pensar que o imprint evolutivo em nossos órgãos de pensamento influencia o que e como nós pensamos, não é de todo claro que a influencia seja direta, significativa ou detectável. Epistemologias selecionistas que endossam uma metodologia por “tentativa e erro” como um modelo adequado para a compreensão da mudança cientifica não são conseqüências analíticas de se aceitar que o cérebro e outros órgãos antigos são adaptações que evoluíram principalmente sob a influência da seleção natural. A viabilidade de tais modelos selecionistas é uma questão empírica que depende do desenvolvimento de modelos adequados. O de Hull (1988), como ele mesmo admite, não é senão o primeiro passo nessa direção. Cziko (1995) é um manifesto que clama pelo desenvolvimento desses modelos (cf. também a abordagem de Harms 1997 moldada a partir da teoria evolucionista dos jogos). Muito trabalho empírico pesado precisa ser feito para sustentar essa linha de pesquisa. Epistemologias evolucionistas não-selecionistas, nas linhas da de Ruse (1986), deparam-se com uma variedade diferente de dificuldades. Permanece a ser mostrado que considerações biológicas são suficientemente restritivas para limitar de alguma maneira significativa a variedade de metodologias potenciais.
Não obstante, o surgimento no último quarto do século XX de esforços sérios para fornecer uma explicação evolucionista do entendimento humano teve conseqüências potencialmente radicais. A aplicação de modelos selecionistas ao desenvolvimento do conhecimento humano, por exemplo, cria uma tensão imediata. Explicações tradicionais do surgimento e desenvolvimento do conhecimento cientifico vêem a ciência como um empreendimento progressivo que, sob as condições adequadas de investigação livre e racional, gera um corpo de conhecimento que progressivamente converge para a verdade. Os modelos selecionistas da evolução biológica, por outro lado, são em geral vistos como não-progressivos ou, no máximo, apenas localmente progressivos. Ao invés de gerar convergência, a evolução biológica produz diversidade. A epistemologia evolucionista de Popper tenta abraçar ambas, mas o faz com muita dificuldade. A explicação por “revoluções cientificas” de Kuhn sacava a título de hipótese um modelo darwinista, mas, quando o criticaram, Kuhn voltou atrás. (cf Kuhn 1972, pp 172 com Lakatos e Musgrave 1970, p. 264) Toulmin é uma exceção notável. Na sua visão, os conceitos de racionalidade são totalmente “locais” e estão eles mesmos sujeitos à evolução. Isso, por sua vez, parece acarretar a necessidade de abandonar qualquer sentido de “meta dirigida” na investigação científica. Essa é uma conseqüência radical que poucos abraçaram. Perseguir uma abordagem evolucionista à epistemologia levanta questões fundamentais quanto aos conceitos de conhecimento, verdade, realismo, justificação e racionalidade.
O leitor interessado deve consultar a ampla bibliografia, originalmente desenvolvida por Donald Campbell e mantida por Gary Cziko, em http://faculty.ed.uiuc.edu/g-cziko/stb/.
O KLI Theory Lab, do Instituto Konrad Lorenz, de Viena, oferece uma ampla base de dados biográficos e bibliográficos que cobrem dezoito áreas de pesquisa relacionadas com a pesquisa em evolução e cognição. A entrada “epistemologia evolucionista” contém links para autores e textos, assim como uma breve introdução e uma visão geral do campo. É um banco de dados interativo e o Instituto encoraja os autores a submeter para inclusão no banco de dados as suas próprias bibliografias relevantes. O banco de dados pode ser acessado em http://www.kli.ac.at/.
Todo empreendimento científico requer modelos formais e semiformais que permitam a caracterização quantitativa de seus objetos de estudo. A tentativa de transformar o estudo filosófico do conhecimento numa disciplina científica que aborde o conhecimento como fenômeno biológico não é diferente. Muita da literatura sobre epistemologia evolucionista está preocupada em como conceber o conhecimento como fenômeno natural, que diferença isso faria para o nosso entendimento do nosso lugar no mundo e em responder as objeções a esse projeto. Existem também diversos projetos mais técnicos que tentam fornecer as ferramentas teóricas necessárias para uma epistemologia naturalista.
Na forma mais simples desse modelo, um organismo tem de lidar com um ambiente que tem dois estados, S1 e S2, e tem duas respostas possíveis, R1 e R2. Supomos que o que o organismo faz em cada estado faz uma diferença para a sua aptidão. As aptidões são normalmente caracterizadas por uma matriz W.
Os elementos individuais da matriz Wij são as conseqüências para a aptidão da resposta i no estado j. Assim, por exemplo, W21 denota as conseqüências para a aptidão de R2 em S1. Se deixarmos que W11 e W22 sejam iguais a um e que W12 e W21 sejam iguais a zero, então há uma vantagem evolutiva clara em realizar R1 em S1 e R2 em S2.
Entretanto, o organismo deve antes detectar o estado do ambiente, e detectores, de maneira geral, não são totalmente confiáveis. Se o organismo responde de forma automática ao detector, nós podemos usar as probabilidades das respostas dadas aos estados para caracterizar a confiabilidade do detector. Escrevemos a probabilidade de R1, dado S1, como Pr(R1 S1). Isso nos permite calcular que responder ao detector, ao invés de sempre escolher R1 ou R2, será vantajoso somente no caso em que a seguinte desigualdade for verdadeira (cf. Godfrey-Smith 1996):
Pr(R2 S2) /(1 — Pr( R1 S1)) > Pr( S1)(W11 — W21)/(1–Pr(S1))(W22 — W12)
Esse modelo simples demonstra que se as respostas flexíveis são ou não adaptativas depende das características particulares das diferenças para a aptidão que fazem as respostas, da probabilidade dos vários estados do ambiente e da confiabilidade do detector. O resultado particular é calculado supondo que detectar o estado do ambiente e que o sistema de resposta flexível não tem custos em termos evolutivos. Análises mais completas incluiriam os custos desses fatores.
Os modelos de otimização estática, como o acima esboçado, podem ser ampliados de muitas maneiras. De forma mais óbvia, pode-se aumentar o número de estados do ambiente e o número de respostas do organismo, mas existem outras modificações que são mais interessantes. A teoria da detecção por sinal, por exemplo, representa com mais detalhes os detectores e os indícios. Para dar um exemplo, uma espécie de “musgo marinho” detecta a presença das lesmas marinhas predadoras através de um indício químico. Eles respondem crescendo os espinhos, o que tem alto custo. O indício nesse caso, a substância química carregada pela água, chega com várias concentrações diferentes, o que indica vários níveis de perigo. A teoria da detecção por sinal nos permite calcular o melhor valor limite do detector para o crescimento dos espinhos.
Os modelos estáticos retratam os processos evolutivos em termos de custos e benefícios para a aptidão. Eles são estáticos no sentido de que não representam nenhum processo real, mas simplesmente calculam a direção da mudança para diferentes situações. Se a aptidão for alta, a espécie aumentará; se for baixa, ela diminuirá. Quando as aptidões são iguais, as proporções da população permanecem em equilíbrio estável. Os modelos dinâmicos normalmente empregam os tipos de cálculos envolvidos nos modelos estáticos para retratar a mudança real das proporções da população ao longo do tempo. Ao invés de calcular se a mudança ocorrerá e em qual direção, os modelos dinâmicos seguem a mudança.
A dinâmica populacional, às vezes referida como “dinâmica do replicador”, oferece um modo tratável de representar a evolução das populações ao longo do tempo sob os tipos de pressões seletivas que podem ser caracterizados pelos modelos de otimização estática. Isso é freqüentemente necessário, dado que a dinâmica dessas populações é freqüentemente difícil de prever na base apenas das considerações estáticas de diferenças de saldo. As assim chamadas “dinâmicas do replicador” receberam o seu nome de Taylor e Jonker (1978) e foram generalizadas por Schuster e Sigmund (1983) e Hofbauer e Sigmund (1988). Eles localizam a sua origem na obra seminal de R.A. Fisher das décadas de 1920 e 30. A generalização cobre modelos evolucionistas usados na genética populacional, na teoria evolucionista dos jogos, na ecologia e no estudo da evolução pré-biótica. Os modelos podem ser implementados matemática ou computacionalmente, e podem representar a mudança evolutiva por passo (discreta) ou contínua.
A dinâmica populacional representa a evolução das populações. Uma população é um conjunto de indivíduos, os quais são organizados de acordo com tipos (type). Os tipos na genética são genes; na teoria evolucionista dos jogos, são estratégias. Os tipos de interesse para os modelos epistemológicos são os que possuem aparatos cognitivos ou estratégias cognitivas — maneiras de responder aos indícios do ambiente, maneiras de manipular representações e assim por diante. Grosso modo, os modelos EME focalizam o que é herdado e os modelos EET focalizam o que é aprendido. A evolução da população consiste em mudanças da freqüência relativa dos diferentes tipos dentro da população. A seleção, exemplificada pelo sucesso reprodutivo diferenciado, é representada como segue. Cada tipo tem uma taxa de desenvolvimento ou “aptidão”, designada por w, e uma freqüência, designada por p. A freqüência do tipo i na próxima geração pi é simplesmente a freqüência antiga multiplicada pela aptidão e dividida pela aptidão média da população “w̅”.
pi' = pi · wi / w̅
A divisão por w̅ tem a finalidade de “normalizar” as freqüências, de modo que a adição de uma pela outra seja multiplicada pela aptidão. Fica claro também que a freqüência de um tipo aumentará apenas no caso de a sua aptidão for superior a da média da população corrente.
A aptidão, que deve ser entendida simplesmente como a combinação de fatores de caráter provável relativamente ao desenvolvimento, que direcionam a dinâmica de grandes populações, pode depender de vários fatores. Os componentes da aptidão se diferenciam dos componentes da variação na medida em que afetam as freqüências populacionais proporcionalmente àquelas freqüências, isto é, de modo multiplicativo. Componentes da aptidão na evolução biológica incluem a mortalidade e a taxa de reprodução. Na evolução cultural, incluem a probabilidade de transmissão e a probabilidade de rejeição. Em qualquer um dos modelos, o que importa é como as aptidões mudam em resposta às mudanças de outros fatores dentro do modelo. Nos casos mais simples, as aptidões estão fixadas e o tipo com a maior aptidão inevitavelmente domina a população. Nos casos mais complexos, a aptidão pode depender de vários fatores, como de quem joga contra quem ou do estado de uma variável do ambiente. De maneira mais comum, as aptidões variáveis são calculadas usando uma matriz de saldo como a acima. Em geral, para calcular a aptidão esperada de um tipo, multiplica-se a aptidão que o tipo teria em cada situação com a probabilidade de que os indivíduos da população se confrontem com essa situação e se somam os produtos resultantes.
wi = S A Pr(A)·WiA
onde WiA é a aptidão do tipo i na situação A. Esse tipo de cálculo supõe que os efeitos das várias situações são cumulativos. Podem ser representadas situações mais complexas, claro, mas as matrizes cumulativas são o padrão. Deve-se observar, entretanto, que a evolução dirigida por matriz pode exibir um comportamento muito complexo. Por exemplo, o comportamento caótico é possível com não mais do que quatro estratégias (Skyrms 1992).
Algumas relações podem ser representadas sem uma matriz. Boyd e Richerson (1985), por exemplo, estavam interessados numa categoria especial de freqüência dependente da transmissão de propensão na cultura, onde ser comum conferia uma vantagem aos imitadores por “fazer como os romanos fazem”. Nesse caso, a aptidão operativa do tipo é exatamente a aptidão como calculada de acordo com os fatores comuns, e em seguida modificada como uma função da freqüência do tipo.
As bases conceituais da dinâmica do replicador são muito simples. Obter resultados requer normalmente uma de duas abordagens. A fim de provar algo mais do que resultados matemáticos rudimentares, normalmente é necessário derivar uma versão contínua da dinâmica. A forma básica é:
dpi/dt = p(wi - w̅)
com as aptidões sendo calculadas da maneira usual. As abordagens matemáticas são muito produtivas, embora a maior parte dos resultados teóricos se aplique principalmente à genética populacional. Veja Hofbauer e Sigmund (1988) para um compêndio desses resultados, assim como uma introdução razoável, nível de pós-graduação, ao estudo matemático dos processos evolutivos.
A segunda abordagem é computacional. Com o aumento do poder dos computadores pessoais, a implementação computacional de modelos evolutivos se tornou cada vez mais atraente. Eles exigem apenas habilidades de programação elementares, e em geral são muito mais flexíveis nas suposições que exigem. A estratégia geral é criar uma ordem que ligue freqüências populacionais e aptidões e, depois, uma série de procedimentos (ou métodos ou funções) que:
Em seguida, um loop executa as rotinas em seqüência, várias e várias vezes. A maior parte das pessoas que fazem modelos coloca os seus códigos fontes na internet, que é, provavelmente, o melhor lugar para encontrá-los.
Parte da dificuldade de entender o comportamento cognitivo como produto da evolução é que existem pelo menos três processos evolutivos muito diferentes envolvidos. Primeiramente, existe a evolução biológica, através da herança genética, dos mecanismos cognitivos e perceptuais. Em segundo lugar, existe a evolução cultural das línguas e dos conceitos. Em terceiro, existe o processo de aprendizado por tentativa e erro que ocorre durante a vida individual. Ademais, há alguma razão para concordar com Donald T. Campbell que entender plenamente o conhecimento humano exigirá entender a interação entre esses três processos. Isso exige que sejamos capazes de representar tanto os processos biológicos quanto a evolução cultural. Entrementes, existem vários modelos bem-estabelecidos da evolução biológica. A evolução cultural apresenta mais novidades.
Talvez a tentativa mais popular de entender a evolução cultural seja a criação por Richard Dawkins (1976) de “meme”. Dawkins observou que o que está no centro da evolução biológica é a reprodução diferenciada. De maneira geral, evolução foi a dinâmica competitiva de linhagens de entidades auto-replicadoras. Para essa visão, se a cultura evolui, teriam de existir “replicadores” culturais ou entidades cuja replicação diferenciada na cultura constituísse o processo evolutivo cultural. Dawkins apelidou essas entidades de “memes”, e elas foram caracterizadas como entidades informacionais que contaminam os nossos cérebros, “pulando de cabeça para cabeça” através do que chamamos comumente de imitação. Exemplos comuns incluem melodias contagiosas e ideologias religiosas. A principal dificuldade com essa abordagem está em fornecer especificações para as entidades básicas. Na teoria, as condições de identidade dos genes são dadas em termos das seqüências de pares básicos nos cromossomos. Não parece existir um “alfabeto” fundamental semelhante para os objetos da transmissão cultural. Por conseguinte, o projeto da “memética” como sustentando a base para a epistemologia evolucionista está à espera de uma compreensão adequada de sua ontologia básica. [Veja o Journal of Memetics online para mais informações.]
Usaram-se modelos populacionais com bons resultados na representação dos processos da transmissão cultural. Freqüentemente, afirma-se que os modelos da teoria evolucionista dos jogos cobrem tanto os processos em que as estratégias são herdadas quanto àqueles em que elas são imitadas. Essa aplicação é possível na falta de uma especificação da natureza subjacente das estratégias, por exemplo, se se deve concebê-las como “coisas” que são replicadas, ou se elas são propriedades ou estados dos indivíduos de quem são estratégias. Isso é às vezes referido como a “abordagem epidemiológica”, embora, de novo, a comparação com o contágio seja devida às ferramentas quantitativas usadas na análise, e não a qualquer pressuposição acerca da ontologia subjacente da transmissão cultural.
Os tipos de níveis envolvidos na epistemologia evolucionista são muito diferentes dos tipos de níveis da seleção que são discutidos, com muito mais freqüência, no debate da biologia evolucionista sobre os “níveis da seleção”. Na biologia evolucionista, os “níveis” da seleção em discussão são níveis de escala. O debate diz respeito a se os genes são sempre as “unidades” ou os “alvos” da seleção, ou se a seleção pode ocorrer em níveis superiores, como organismos, grupos e espécies. Os níveis envolvidos na epistemologia evolucionista, por outro lado, são os níveis da hierarquia reguladora envolvida no controle do comportamento. Esses incluem as bases genéticas dos hardwares cognitivos e perceptuais, conceitos, línguas, técnicas, crenças, preferências e assim por diante. Observe que, no caso da epistemologia evolucionista, os termos “níveis” e “hierarquias” podem causar impressão. Freqüentemente, não há de modo algum uma organização clara dos níveis.
Existem pelo menos duas abordagens diferentes que foram adotadas na representação da evolução multinível.
Explicações descritivas completas tanto da verdade quanto da justificação exigem uma teoria do significado. A menos que um sinal tenha significado, ele não pode ser verdadeiro ou falso. Além disso, determinar o significado de asserções que pretendam justificar pode fornecer uma teoria descritiva da justificação. Presumivelmente, o que torna verdadeira uma asserção de justificação é a base dessa justificação. Se o significado é convencional, então a evolução do significado se torna um exemplo da evolução das convenções.
Num exemplo, modelos da evolução das convenções foram estendidos para se aplicar às convenções do significado. Skyrms (1996, chapter 5) deu uma interpretação evolucionista ao modelo de David Lewis (1969) da seleção racional das convenções do significado. Skyrms conseguiu mostrar que existe uma seleção forte na formação de “sistemas de sinalização” em populações mistas com um conjunto completo de estratégias coordenadas, contra-coordenadas e não-coordenadas. É significativo que a estrutura do modelo e do processo seletivo através do qual emergem e se estabilizam as convenções de significado é, em grande medida, semelhante à explicação da evolução do significado dada por Ruth Millikan (1984).
Em sua versão mais simples, o modelo é construído como segue: Imaginemos que existam dois estados de coisas T, dois atos A e dois sinais M. Os jogadores têm uma chance igual de está na posição de emissor ou de recebedor. Os recebedores têm de decidir o que fazer baseados apenas no que o emissor lhes conta. Nessa versão inteiramente cooperativa, cada jogador obtém um ponto se, o estado sendo T1, o recebedor faz A1; ou faz A2, se o estado for T2.
Dado que os jogadores serão tanto emissores quanto recebedores, eles devem ter uma estratégia para cada situação. Existem dezesseis estratégias dessas, e pressupomos que elas sejam herdadas (ou aprendidas) de pais biológicos ou imitadas na base do sucesso observado em termos de pontos obtidos. As estratégias I1 e I2 são os sistemas de sinalização, no sentido de que, se os dois jogadores usarem uma mesma estratégia dessas duas, eles sempre conseguirão o seu lucro. I3 e I4 são as estratégias anti-sinalização, que têm como resultado má coordenação constante, embora eles joguem bem um contra o outro. Todas as outras estratégias envolvem S3, S4, R3, ou R4, que têm como resultado o mesmo ato sendo realizado não importa qual seja o estado externo.
S1: Envia M1 se T1; M2 se T2
S
2: Envia M2 se T1; M1 se T2
S
3: Envia M1 se T1 ou T2
S
4: Envia M2 se T1 ou T2
R1: Faz A1 se M1; A2 se M2
R
2: Faz A2 se M1; A1 se M2
R
3: Faz A1 para M1 ou M2
R
4: Faz A2 para M1 ou M2
I1:
S1,R1
I2:
S2,R2
I3:
S1,R2
I4:
S2,R2
I5:
S1,R3
I6:
S2,R3
I7:
S1,R4
I8:
S2,R4
I9:
S3,R1
I10:
S3,R2
I11:
S3,R3
I12:
S3,R4
I13:
S4,R1
I14:
S4,R2
I15:
S4,R3
I16:
S4,R4
Os resultados da simulação mostraram que, virtualmente, todas as distribuições iniciais da população são dominadas por uma ou outra dessas duas estratégias do sistema de sinalização. A situação se torna mais complexa quando são introduzidas diferenças de saldo mais realistas, por exemplo, o emissor contrai um custo ao invés de compartilhar automaticamente o que recebedor obtém ao ter o comportamento correto no ambiente. Mesmo nessas situações, porém, o curso mais provável da evolução é dominado por um sistema de sinalização.