A epistemologia é a disciplina filosófica que tenta fornecer respostas para questões relacionadas com a natureza e possibilidade do conhecimento, prioritariamente as seguintes: Qual a natureza das nossas crenças? Como podemos sustentar se são verdadeiras? O que seria necessário e suficiente para justificá-las?
O teor desta última questão obriga-nos a procurar as razões que podem contribuir para justificar as nossas crenças. Que tipo de razões são essas? Qual a sua origem? Que conteúdo têm? Por exemplo, que razões tenho para justificar a minha crença de que está a chover?
Estas questões geram ainda outras. Uma das mais salientes é a de saber se é necessário que eu tenha acesso consciente às razões que permitem justificar as minhas crenças; ou se, pelo contrário, essas razões podem ser exteriores ao escopo da minha consciência e ainda assim servir para justificar aquilo em que acredito.
Suponhamos, para ajudar a esclarecer este aspecto, que acredito que está a chover. Tenho, portanto, uma crença: está a chover. Acredito que está a chover porque fui à janela e vi que chovia. As razões que contribuem para justificar a minha crença são-me neste caso fornecidas pela minha experiência sensorial: vi que chovia. Portanto, tenho consciência das razões que contribuem para justificar a minha crença. Ao contribuírem para justificá-la, essas razões contribuem para que eu possa pensar que ela é verdadeira.
O internismo epistemológico é a teoria segundo a qual a crença de um agente só poderá estar justificada se esse agente tiver uma perspectiva da primeira pessoa das razões que contribuem para essa justificação, isto é, se tiver acesso consciente a essas razões. Claro que as razões têm também que ser boas razões, quer dizer, razões suficientes, ou a crença não estará de modo algum justificada, independentemente de haver ou não acesso consciente a elas. Mas isso já é outro problema.1
Poderiam no entanto existir boas razões para justificar a minha crença e eu não ter consciência delas. Se assim for, somos tentados a dizer que também nesse caso a minha crença estaria justificada por essas razões, apesar de eu não ter consciência delas.
Um exemplo pode ajudar a perceber esta possibilidade. Suponhamos que estou numa biblioteca sem janelas mas com um excelente isolamento acústico. Nessa situação, em que não disponho de qualquer experiência sensorial que respeite aos factos que ocorrem fora da biblioteca, acredito que está a chover porque vejo entrar na biblioteca um aluno bastante molhado. Porém, embora esteja de facto a chover na rua, o que faz a minha crença ser verdadeira,2 o aluno não se molhou por ter estado à chuva, mas sim por ter sido praxado por veteranos que despejaram sobre ele uns valentes baldes de água.3 Portanto, a razão de que tenho consciência e que uso para justificar a minha crença não serve para o fazer; pois o aluno está molhado não por ter estado à chuva mas sim por ter sido praxado daquela maneira que referimos. Apesar disso, existe uma razão que serviria para justificar a minha crença, mas da qual não tenho consciência. Essa razão, que eu desconheço por completo, é que um sistema de nuvens de baixa altitude, densamente carregadas de água, deslocou-se para a zona onde está situada a biblioteca, fazendo chover abundantemente nessa zona no momento em que tenho a crença. Será que nesta situação, em que não tenho consciência das razões correctas para justificar a minha crença, ela está justificada?
O internista defende que a minha crença de que está a chover, apesar de verdadeira, não está realmente justificada — pois as razões a que tenho acesso da perspectiva da primeira pessoa para a justificar e a considerar verdadeira não são as razões indicadas para o fazer. Será esta posição do internista correcta? O defensor do externismo afirma que não.
O externismo epistemológico é a teoria segundo a qual uma crença está justificada desde que o processo ou as razões que contribuem para a sua justificação permitam afirmar, principalmente por serem correctos ou fiáveis, que a crença é verdadeira, independentemente do agente da crença ter ou não ter consciência do processo ou das razões que contribuíram para essa justificação. Aceitando o posicionamento do externista, a crença que tive na biblioteca estava de alguma forma justificada, apesar de eu não ter consciência das razões que faziam com que estivesse justificada.
A expressão “fundacionalista” deriva da palavra “fundação” e refere-se aos fundamentos ou alicerces do conhecimento. O fundacionalista defende que há um conjunto de crenças básicas que não necessitam de estar apoiadas em quaisquer outras crenças, daí terem o estatuto de crenças fundacionais. Sobre este conjunto de crenças básicas apoia-se um outro conjunto de crenças, não-básicas e não-fundacionais, que constituem o conhecimento. Mas por que precisamos de crenças básicas? Eis a resposta tradicional:
Suponhamos que temos algumas crenças sobre estados de coisas no mundo. Para que essas crenças possam ser consideradas conhecimento têm que estar justificadas e ser verdadeiras; correcto? Então, como vimos acima, têm de existir boas razões, razões suficientes para apoiar as justificações das nossas crenças. Só talvez dessa forma podemos aceitar que as crenças que alimentamos são verdadeiras. Mas como podemos afirmar que essas razões são suficientes? Podemos se, e só se, tivermos crenças justificadas e verdadeiras de que essas razões são suficientes. Logo, precisamos de novas justificações e, consequentemente, de novas razões para apoiar essas justificações. Mas, se assim é, então a sequência de crenças, justificações e razões nunca mais acaba — pois para cada justificação são sempre necessárias novas razões que precisamos de justificar.
Onde pára a regressão (ou retrocesso) nesta sequência aparentemente interminável que acabei de referir? A tradição filosófica costuma expor as três possibilidades:
Os defensores do fundacionalismo descartam normalmente 1 e 2 pelo facto de serem hipóteses que conduzem ao cepticismo. Com mais ou menos variações, 3 é a hipótese por eles adoptada e explorada. A ideia é a de que existe um conjunto de crenças básicas que têm a propriedade de se justificarem a si próprias (ou são justificadas por qualquer outra coisa que nem são crenças nem razões, por exemplo, a autoevidência, a intuição, a percepção directa — realismo perceptual — ou a memória), ganhando por isso a capacidade de sustentarem o corpo de crenças que constitui o conhecimento.
Assim, o internismo fundacionalista é a teoria segundo a qual há crenças fundacionais que servem para sustentar o corpo de crenças que constitui o conhecimento, e que os factores ou razões (em sentido lato) que contribuem para a justificação dessas crenças (e de uma larga maioria das não-fundacionais) têm de ser acedidas da perspectiva da primeira pessoa; isto é, o agente dessas crenças tem de ter consciência dessas razões e desses factores (ou processos). O externismo fundacionalista sugere quase a mesma coisa que o internismo fundacionalista. A principal diferença entre estas duas teorias consiste nisto: no caso do externismo fundacionalista, o agente não necessita de ter consciência das razões que podem contribuir para a justificação das suas crenças.
Existem argumentos interessantes a favor e contra as duas teorias. Existe também quem defenda que as posições são compatíveis ou se complementam. As duas teorias parecem isoladamente insuficientes para sustentar uma concepção sólida do que é necessário para a justificação epistémica. Deixo no entanto este problema para uma próxima ocasião.
Luís Estevinha Rodrigues