A reflexão sobre a natureza do nosso conhecimento dá origem a uma série de desconcertantes problemas filosóficos, que constituem o tema da teoria do conhecimento, ou epistemologia. A maior parte desses problemas foi debatida pelos gregos antigos e, ainda hoje, a concordância é escassa sobre a maneira como devem ser resolvidos ou, no caso de tal não ser possível, abandonados. Descrevendo os temas dos sete capítulos que se seguem, poderemos dar a entender, de modo geral, a natureza desses problemas.
Qual é a distinção entre conhecimento e crença verdadeira? Se um homem teve um palpite acertado (“Eu diria que é o sete de ouros”), mas não sabe realmente; e outro homem sabe, mas não diz, e não precisa adivinhar; o que é que o segundo homem tem (se assim podemos dizer) que falta ao primeiro? Pode-se dizer, é claro, que o segundo tem a prova evidente e que o primeiro não a tem, ou que algo é evidente para um que não é para o outro. Mas o que é prova evidente e como decidiremos, em qualquer caso determinado, se temos ou não prova?
Essas perguntas têm suas análogas tanto na filosofia moral como na lógica. O que significa um acto estar certo e como decidiremos, em qualquer caso determinado, se um certo acto está certo ou não? O que significa uma inferência ser válida e como decidiremos, num determinado caso, se uma dada inferência é ou não válida?
A nossa prova para algumas coisas, ao que parece, consiste no facto de termos provas para outras coisas. “A minha prova de que ele cumprirá sua promessa é o facto de ele ter dito que cumpriria a sua promessa. E a minha prova de que ele disse que cumpriria a sua promessa é o facto de que...”. Deveremos dizer de tudo aquilo para o que temos prova que a nossa prova consiste no facto de termos prova de outra coisa? Se tentarmos formular, socraticamente, a nossa justificação para qualquer afirmação particular de conhecimento (“A minha justificação para pensar que sei que A é o facto de que B” ) e se formos inexoráveis em nossa investigação (“e a minha justificação para pensar que sei que B é o facto de que C”), chegaremos, mais cedo ou mais tarde, a uma espécie de fim da linha (“mas a minha justificação para pensar que sei que N é simplesmente o facto de que N” ). Um exemplo de N poderá ser o facto de que me parece recordar que já estive aqui antes ou o facto de que alguma coisa, agora, me parece azul.
Esse tipo de interrupção pode ser descrito de duas maneiras bastante diferentes. Poderíamos dizer: “Há certas coisas (por exemplo, o facto de que me parece recordar ter aqui estado antes) que são evidentes para mim e que o são de tal forma que a minha prova de evidência para essas coisas não consiste no facto de haver certas outras coisas que são evidentes para mim”. Ou poderíamos dizer, alternativamente: “Há certas coisas (por exemplo, o facto de que me parece recordar ter aqui estado antes) que não se pode dizer que sejam evidentes, em si, mas que se parecem com o que se pode considerar evidente, na medida em que funcionam como prova evidente para certas outras coisas”. Essas duas formulações apenas pareceriam diferentes verbalmente. Se adoptarmos a primeira, poderemos afirmar que algumas coisas são directamente evidentes.
As coisas que correntemente dizemos que conhecemos não são coisas, portanto, “directamente evidentes”. Mas ao justificarmos a afirmação de que conhecemos qualquer dessas coisas particulares podemos ser levados de novo, da maneira descrita, às várias coisas que são directamente evidentes. Deveríamos dizer, portanto, que o conjunto daquilo que conhecemos, em qualquer momento dado, é uma espécie de “estrutura”, que tem seu “fundamento” no que acontece ser directamente evidente, nesse momento? Se dissermos isso, deveremos estar então preparados para explicar de que maneira esse fundamento serve de apoio ao resto da estrutura. Mas essa questão é difícil de responder, visto que o apoio dado pelo fundamento não seria dedutivo nem indutivo. Por outras palavras, não é o género de apoio que as premissas de um argumento dedutivo dão à sua conclusão, nem é o género de apoio que as premissas de um argumento indutivo dão à sua conclusão. Pois se tomarmos como nossas premissas o conjunto do que é directamente evidente em determinado momento, não podemos formular um bom argumento dedutivo, nem um bom argumento indutivo, em que qualquer das coisas que correntemente dizemos que conhecemos apareçam como uma conclusão. Portanto, talvez se dê o caso de, além das “regras de dedução” e das “regras de indução”, existirem também certas “regras de evidência” básicas. O lógico dedutivo tenta formular o primeiro tipo de regras; o lógico indutivo, o segundo; e o epistemólogo procura formular as regras do terceiro tipo.
Pode-se perguntar: “O que é que sabemos? Qual é a extensão do nosso conhecimento?” Poder-se-á também perguntar: “Como decidir, em qualquer caso particular, se sabemos ou não? Quais são os critérios de conhecimento, se porventura existem?” O “problema do critério” resulta do facto de que, se não tivermos resposta para o segundo par de perguntas, não disporemos, nesse caso, aparentemente, de um procedimento razoável para encontrar resposta para o primeiro; e, se não tivermos resposta para o primeiro par de perguntas, não teremos então, aparentemente, um processo razoável de encontrar a resposta do segundo. O problema poderá ser formulado mais especificamente para diferentes matérias — por exemplo, o nosso conhecimento (se houver) de “coisas externas”, “outros espíritos”, “certo e errado”, as “verdades da teologia”. Muitos filósofos, aparentemente sem razão suficiente, abordam algumas dessas versões mais específicas do problema do critério segundo um ponto de vista, ao passo que outros as encaram de um ponto de vista muito diferente.
O nosso conhecimento (se houver) do que por vezes denominamos as “verdades da razão” — as verdades da lógica e da matemática e o que se expressa por “Uma superfície totalmente vermelha não é verde” — dota-nos com um exemplo particularmente instrutivo do problema de critério. Alguns filósofos pensam que qualquer teoria satisfatória do conhecimento deve ser adequada ao facto de que algumas das verdades da razão, tal como tradicionalmente são concebidas, não estão entre as coisas que conhecemos. Outros, ainda, procuram simplificar o problema afirmando que as chamadas “verdades da razão” só pertencem realmente, de algum modo, à maneira como as pessoas pensam ou à maneira como empregam a sua linguagem. Mas, quando essas sugestões se equacionam com precisão, perdem toda e qualquer plausibilidade que aparentemente tenham tido, no começo.
Outros problemas da teoria do conhecimento poderiam designar-se, apropriadamente, por “metafísicos”. Abrangem certas questões sobre as maneiras como as coisas nos parecem. As aparências que as coisas nos apresentam quando, digamos, as percepcionamos, parecem subjetivas na medida em que dependem, para a sua existência e natureza, do estado do cérebro. Este simples facto levou os filósofos, talvez com excessiva facilidade, a estabelecerem algumas conclusões extremas. Alguns afirmaram que as aparências das coisas externas devem ser duplicações internas dessas coisas — que, quando um homem percebe um cão, uma tênue réplica do cão é produzida dentro da cabeça do homem. Outros disseram que as coisas externas devem ser bastante distintas do que correntemente aceitamos que sejam — que as rosas não podem ser vermelhas quando ninguém está a olhar para elas. Ainda outros afirmaram que as coisas físicas devem-se compor, de algum modo, de aparências; e houve também quem dissesse que “as aparências devem ser compostas, de algum modo, de coisas físicas”. O problema levou até alguns filósofos a indagarem se existirão coisas físicas e outros, mais recentemente, a indagarem se existirão aparências.
O “problema da verdade” poderá parecer um dos mais simples da teoria do conhecimento. Se dissermos a respeito de um homem “Ele acredita que Sócrates é mortal”, e depois acrescentarmos “E o que é mais, a sua crença é verdadeira”, então o que acrescentamos não é, certamente, mais do que isto: Sócrates é mortal. E “Sócrates é mortal” diz-nos tanto quanto “é verdade que Sócrates é mortal”. Mas que aconteceria se disséssemos, a respeito de um homem, que algumas das suas crenças são verdadeiras, sem especificarmos que crenças? Que propriedade, nesse caso, estaríamos atribuindo à sua crença?
Suponha-se que dizemos: “O que ele está a dizer agora é verdade”, quando acontece que o que ele está a dizer agora é o que nós estamos agora a dizer que é falso, seja lá o que for. Nesse caso, estaremos a dizer algo que é verdadeiro ou a dizer algo que é falso?
Finalmente, qual é a relação entre as condições da verdade e os critérios de evidência? Temos boas provas, presumivelmente, para pensar que existem nove planetas. Essa prova consiste em vários outros factos que conhecemos a respeito de astronomia, mas não inclui, em si, o facto de que existem nove planetas. Pareceria logicamente possível, portanto, que um homem tivesse boas provas para uma crença que, não obstante, é uma crença falsa. Significará isso que o facto de existirem nove planetas, se porventura for um facto, é realmente algo que não pode ser evidente? Deveríamos dizer, portanto, que ninguém sabe, realmente, se existem nove planetas? Ou deveríamos dizer que, embora seja possível saber que existem nove planetas, não é possível saber que sabemos existirem nove planetas? Ou as provas de que dispomos para acreditar que existem nove planetas garantem, de algum modo, que a crença é verdadeira e garantem, portanto, que há nove planetas?
Tais questões, e problemas como esses, constituem o tema da teoria do conhecimento. Um certo número deles, como o leitor já sentirá, é simplesmente o resultado de confusão; e, uma vez exposta a confusão, os problemas desaparecem. Mas outros, como este livro pretende mostrar, são um tanto mais difíceis de tratar.