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Crítica
31 de Março de 2023   Ética

Sobre não ser filósofo

Epicteto e o homem comum
Robert Lynd
Tradução de Desidério Murcho

— Tens lido Epicteto?

— Ultimamente, não.

— Oh, não deixes de lê-lo. Tommy tem estado a lê-lo pela primeira vez, e está terrivelmente empolgado.

Apanhei estas sobras de diálogo da mesa do lado, no átrio de um hotel. Como Tommy, também eu me sentia “terrivelmente empolgado”, pois nunca lera realmente Epicteto, apesar de o ter amiúde visto na prateleira — talvez até o tenha citado — e perguntei-me se estava finalmente aqui o livro de sabedoria de que andara à procura aos soluços desde que andei na escola. Nunca perdi a minha fé primordial de que a sabedoria se encontra algures num livro — a que deitamos a mão com a mesma facilidade com que apanhamos uma concha na areia. Tenho um ardente desejo de sabedoria, como Salomão, mas tem de ser sabedoria que se possa obter com pouquíssimo esforço — sabedoria, digamos, que se apanha por contágio. Não tenho tempo nem energia para a indagação laboriosa da filosofia. Quero que os filósofos façam essa indagação laboriosa e que, no fim, me alimentem com os frutos dos seus labores; tal como obtenho ovos do homem do campo, maçãs do fruticultor e medicamentos do químico, espero também que o filósofo me forneça sabedoria por alguns xelins. Foi por isso que li Emerson, numa ocasião, e, noutra, Marco Aurélio. Lê-los, esperava eu, era ficar sábio ao ler. Mas não fiquei sábio. Concordava com eles enquanto os lia, mas, ao chegar ao fim da leitura, era ainda em grande parte o mesmo homem que fora, incapaz de me concentrar nas coisas em que eles diziam que me deveria concentrar, ou de ser indiferente às coisas a que eles diziam que eu deveria ser indiferente. Apesar disso, nunca perdi a fé nos livros, acreditando que há algures um livro do qual se possa absorver filosofia e força de carácter, enquanto estamos sentados numa poltrona, fumando. Foi neste estado de espírito que peguei em Epicteto, depois de ouvir a conversa no átrio do hotel.

Li-o, confesso-o, com um ânimo considerável. É o tipo de filósofo de que gosto, pois não trata a vida como se no seu melhor fosse uma argumentação conduzida em jargão; ao invés, entre outras coisas, discute como os homens devem comportar-se nas questões da vida comum. Além disso, concordei com quase todas as suas afirmações. Indiferença à dor, morte e pobreza — sim, isso é eminentemente desejável. Não nos perturbarmos seja com o que for sobre o qual não temos controlo, seja a opressão dos tiranos ou o perigo dos terramotos — quanto à necessidade disto, Epicteto e eu somos um só. Contudo, por mais parecença que se encontre entre as nossas opiniões, não pude deixar de sentir, ao ler, que Epicteto era sábio nas suas opiniões, e que eu, ainda que tivesse as mesmíssimas opiniões, estava longe de ser sábio. Pois, na verdade, apesar de ter as mesmas opiniões para efeitos de teoria, eu não conseguia aceitá-las por um só momento para efeitos de conduta. Morte, dor e pobreza são para mim males muito reais, excepto quando estou numa poltrona a ler um livro de um filósofo. Se houver um terramoto enquanto leio um livro de filosofia, esqueço-me logo do livro de filosofia e só penso no terramoto e em como evitar as paredes e chaminés em derrocada. E isto apesar de ser o mais ferrenho admirador de Sócrates, Plínio e gente desse género. Apesar de perfeitamente sólido como filósofo de poltrona, numa crise vejo que tanto o espírito como a carne são fracas.


Nem nas pequenas coisas da vida consigo comportar-me como um filósofo da escola de Epicteto. Assim, quando nos dá conselhos sobre como “comer de maneira aceitável para os deuses” e nos incita, com essa finalidade, a sermos pacientes mesmo que o serviço de mesa seja o mais atroz, recomenda-nos uma atitude espiritual de que a minha natureza é incapaz. “Quando pedes água morna”, afirma, “e o escravo não te dá atenção; ou se der atenção mas trouxer água tépida; ou se nem sequer o encontras em casa, então, abster-te da ira e não explodir, não será isso aceitável para os deuses? […] Esqueceste quem são aqueles sobre os quais exerces o teu domínio? Que são nossos semelhantes, que são nossos irmãos por natureza, e que são filhos de Zeus?” Tudo isso é perfeitamente verdadeiro, e adoraria ser capaz de me sentar num restaurante, sorrindo paciente e filosoficamente enquanto o empregado traz tudo ao contrário ou se esqueceu de mim e não me traz coisa alguma. Mas a verdade é que fico irritado com um mau serviço de mesa. Não gosto de ter de pedir três vezes a lista dos vinhos. Fico chateado quando, depois de um atraso de um quarto de hora, me dizem que não há aipo. É verdade que não faço uma cena, em ocasiões desse género. Não tenho coragem para isso. Sou tão parco em objurgatórios como um filósofo, mas suspeito que o espírito carrancudo que há em mim terá de algum modo de se dar a conhecer na minha expressão. Isto é certo: não penso em dizer a mim próprio que “Este empregado é meu semelhante; é filho de Zeus”. Aliás, mesmo que o seja, por que haveriam os filhos de Zeus de ser tão maus a servir à mesa? Estou certo de que Epicteto nunca jantou no meu restaurante. Apesar disso, até aí a sua paciência se teria manifestado. Nesse caso, que diferença há entre Epicteto e eu! E se sou incapaz da sua imperturbabilidade em coisas tão poucas como estas, que esperança há de ser capaz de desempenhar o papel de filósofo na presença de tiranos e terramotos?

Uma vez mais, quando Epicteto exprime as suas opiniões quanto às posses materiais e nos aconselha a sermos-lhes indiferentes a ponto de não objectarmos a que nos sejam roubadas, concordo com ele em teoria, mas na prática sei que sou incapaz de lhe obedecer. Nada há de mais certo que isto: um homem cuja felicidade depende das suas posses não é feliz. Estou certo que um sábio consegue ser feliz com uma esmola. Não que a felicidade deva ser a finalidade da vida, segundo Epicteto, ou segundo eu próprio (em teoria). Mas Epicteto sustenta pelo menos um ideal de imperturbabilidade, e assegura-nos que a alcançaremos se ligarmos tão pouco às coisas materiais que não nos importa se alguém as roubar. “Deixa de admirar as tuas roupas”, assevera-nos, “e deixarás de ficar irado com o ladrão que tas levou”. E continua, persuasivamente: “O ladrão não sabe onde repousa o verdadeiro bem do homem, imaginando que está nas belas roupas, a mesmíssima ilusão que também tu tens. Por que não haveria ele então de levá-las?” Sim, logicamente, calculo que deva fazê-lo, mas, apesar disso, não consigo sentir-me assim no momento em que descubro que um dos convidados da festa me levou o chapéu novo, deixando-me o seu chapéu velho em troca. Não me dá conforto algum dizer para comigo que “Ele não sabe onde repousa o verdadeiro bem da vida, imaginando que consiste em ter o meu chapéu”. Nem por sombras tentaria consolar um convidado numa festa da minha casa com essa filosofia, em circunstâncias semelhantes. É muito irritante perder um chapéu novo. É muito irritante perder seja o que for, se pensamos que foi levado de propósito. Sinto que conseguiria imitar Epicteto se vivesse num mundo em que nada acontece. Mas num mundo em que as coisas desaparecem porque as perdemos, nos são roubadas ou “surripiadas”, e no qual más refeições são servidas por maus empregados em restaurantes não muito bons, e mil outras coisas desagradáveis acontecem, um homem comum bem poderia ao invés dispor-se a subir os Himalaias de ténis em vez de tentar viver uma vida de filósofo a toda a hora.


Apesar disto, contudo, quase ninguém é capaz de evitar acreditar que os filósofos tinham razão — tinham razão quando proclamavam, apesar de todas as suas diferenças, que a maior parte das coisas que nos importam não têm importância. É mais fácil acreditar que somos nós tolos e não Sócrates, mas, apesar disso, se ele não tinha razão, foi certamente o maior tolo que alguma vez pisou o chão. A verdade é que quase toda a gente concorda que homens como Sócrates e Epicteto tinham razão na sua indiferença às coisas externas. Até homens que ganham dez mil libras por ano e que trabalham para ganhar ainda mais o admitiriam. Contudo, apesar de o admitirmos, a maior parte das pessoas ficaria alarmada se um dos seus mais queridos amigos começasse a pôr a filosofia de Epicteto em prática demasiado literalmente. O que consideramos sabedoria em Epicteto vemos como loucura num conhecido. Ou talvez não num conhecido, mas pelo menos num familiar próximo. Estou certo de que se me tornasse tão indiferente ao dinheiro, ao conforto e a todas as coisas externas como Epicteto, e pensasse como ele, com um sorriso feliz, perante a perda de um relógio ou de um sobretudo (razoavelmente) caro, a minha família ficaria muito mais perturbada do que se fundasse uma companhia de sucesso com a filosofia mais materialista que se consiga conceber. Pense-se, por exemplo, no raciocínio de Epicteto com respeito ao ladrão que lhe roubou a sua lanterna de ferro:

Comprou a lanterna por um preço muito elevado; por uma lanterna, tornou-se um ladrão, por uma lanterna, tornou-se descrente, por uma lanterna tornou-se bestial. Foi isto que lhe pareceu lucrativo!

O raciocínio é sólido, mas nem individualmente nem como sociedade vivemos nesse desprezo pela propriedade que é a sua base. Alguns santos fazem-no, mas até eles suscitam inicialmente grande preocupação entre os amigos. Quando o mundo está em paz, temos a crença paradoxal de que os filósofos eram sábios, mas que seríamos tolos caso os imitássemos. Acreditamos que, apesar de valer a pena ler os filósofos, as coisas materiais são importantes. É como se gostássemos da sabedoria como espectáculo — um espectáculo de deleite, num palco que não seria apropriado que a audiência tentasse invadir. Seriam os gregos e os romanos feitos de maneira diferente? Será que as audiências de Sócrates e Epicteto tentavam realmente tornar-se filósofas, ou seriam elas como nós, com a esperança de atingir a sabedoria, não por meio da prática, mas por meio de uma poção mágica administrada por um homem mais sábio? Tornar-se sábio sem esforço — ouvindo uma voz, lendo um livro — é a um tempo o mais excitante e o mais suave dos sonhos. Nesse sonho, pego em Epicteto. E, pasme-se, era apenas um sonho.

Robert Lynd
The Living Age, 1 de Janeiro de 1930, pp. 570–573.
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ISSN 1749-8457