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Crítica
14 de Maio de 2010   História da filosofia

A epistemologia e metafísica de Hume

Sérgio R. N. Miranda
Hume’s Epistemology and Metaphysics
de Georges Dicker
Londres: Routledge, 1998, 232 pp.

Quando estudamos história da filosofia e queremos ter uma visão geral sobre o pensamento de um determinado autor, os principais problemas que discute, as suas teses e argumentos centrais, ou quando estudamos algum tema espinhoso e queremos saber o que esse autor disse a esse respeito, é sempre útil consultar um bom livro introdutório que nos permita seguir em frente, seja no trabalho de leitura crítica, análise e interpretação dos textos originais, seja na reflexão sobre o tema que nos interessa. Nem sempre é possível encontrar um livro com essas características. Mas se o seu autor for Hume, ou se você estiver interessado nas suas teses sobre a indução e a causalidade, por exemplo, o livro indicado é Hume’s Epistemology and Metaphysics, de Georges Dicker.

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Sem ser escolástico, pedante ou obscurantista, Dicker apresenta e discute a filosofia humiana não só considerando-a à luz da literatura recente sobre o filósofo, mas também da literatura recente sobre os temas por ele abordados. E não é só isso que torna o seu livro exemplar. Também é importante ressaltar o fato de Dicker fazer uma leitura filosófica dos textos de Hume, continuamente focada nos problemas que realmente são relevantes do ponto de vista filosófico, repleta de discussões sóbrias das respostas de Hume a essas questões, além de se pautar pelas técnicas e padrões de argumentação e clareza que caracterizam a filosofia contemporânea.

Após uma breve introdução, na qual discute principalmente a influência de Locke e Newton no pensamento de Hume, Dicker prossegue reconstruindo cuidadosamente os argumentos de uma parte central das Investigações Acerca do Entendimento Humano, recorrendo algumas vezes a trechos do Tratado da Natureza Humana. A análise começa no primeiro capítulo com a apresentação do princípio de cópia, i.e., o princípio segundo o qual as nossas idéias são cópias de impressões ou são compostas de idéias mais simples cópias de impressões, com ênfase nos contra-exemplos ao princípio e na sua aplicação na discussão das idéias de “substância” e “eu”. Aqui fica claro que Dicker está realmente a levar o autor e os problemas que discute a sério, e que não está disposto a fazer concessões, debatendo vigorosamente as teses de Hume e discutindo graves objeções como, por exemplo, (i) que Hume descarta a teoria da substância (material e mental) aplicando o princípio de cópia, mas não explica como alguma coisa pode perder algumas de suas propriedades sem deixar de ser o que é (o que seria explicável usando a noção de substância), e (ii) que a sua teoria do eu como feixe de percepções dá conta de explicar a consciência da sucessão temporal, argumento inicialmente formulado por Kant na Crítica da Razão Pura e retomado por C. A. Campbell no capítulo “Self-Consciousness, Self-Identity and Personal Identity” do seu livro On Selfhood and Godhood (1957).

A análise prossegue no capítulo seguinte com a discussão da chamada “bifurcação de Hume”, i.e., a sua afirmação de que os objetos do conhecimento humano se dividem em dois tipos, a saber, relações de idéias e questões de fato. Nesse capítulo, Dicker compara a bifurcação de Hume com o critério positivista do significado e obtém um surpreendente resultado: contrariamente aos autores do positivismo lógico como Schlick, Carnap e Ayer, Hume poderia admitir algo como juízos ou proposições sintéticas a priori!

No capítulo 3 Dicker discute a crítica humiana ao raciocínio causal e apresenta o “problema da indução”. Este capítulo prima pela apresentação cuidadosa da concepção racionalista da causalidade criticada por Hume, pela a explicitação das teses envolvidas no raciocínio que culminará no ceticismo sobre a indução, e pela boa discussão da resposta de Strawson ao ceticismo humiano, i.e., a proposta de que as questões de Hume são motivadas por algum tipo de confusão e que a indução, independentemente da justificação do chamado “princípio de uniformidade da natureza”, é um procedimento racional.

O capítulo 4 é dedicado à teoria da causalidade. Dicker apresenta as duas definições de Hume da causalidade que se pode encontrar nas Investigações e explica as suas diferenças. É exemplar a sua apresentação das objeções usuais à tese humiana de que a relação causal não envolve conexões necessárias, mas antes uma sucessão regular de eventos, e das tentativas de resposta. A primeira objeção é relativamente simples. Para Hume, a afirmação de que um evento E1 causa outro evento E2 envolve a generalização de que todos os eventos similares a E1 são seguidos de eventos similares a E2. Ora, se perguntarmos o que quer dizer “eventos similares a E1”, podemos entender ou “eventos exatamente similares a E1” ou “eventos similares em aspectos relevantes a E1”. No primeiro caso, o único evento exatamente similar a E1 é o próprio E1. Assim, seria trivialmente verdadeiro que todos os eventos exatamente similares a E1 são seguidos de eventos similares a E2. Porém, poderíamos facilmente encontrar casos nos quais um evento qualquer E1 é seguido por E2, cumprindo assim a condição para a relação de causalidade (i.e., a relação regular entre eventos similares a E1 e eventos similares a E2, aqui entendida no sentido de “exatamente similar”), mas claramente a seqüência é inteiramente fortuita (pense, por exemplo, que E1 é o evento de ligar o computador e E2 o evento de o telefone tocar). No outro caso, se considerarmos que um aspecto relevante para a similaridade entre E1 e E2 é o fato de estarem relacionados causalmente, a análise humiana seria simplesmente circular. Além dessa objeção, Dicker discute os seguintes problemas: (i) a objeção amplamente difundida de que a análise humiana não explica a diferença entre relações causais genuínas e meras generalizações; (ii) a enigmática constatação de que Hume deixa entender que a sua definição oficial da causalidade nos termos da sucessão regular entre eventos dos tipos E1 e E2 implicaria não só que um evento do tipo E1 seria suficiente para um do tipo E2, mas que seria também necessário; finalmente, (iii) o chamado “problema dos efeitos colaterais”, i.e., o fato de que uma causa comum gera E1 e algum tempo depois E2, e nada na teoria humiana parece impedir a constatação de que E1 causa E2.

O quinto capítulo é uma discussão sobre a crítica humiana do princípio de causalidade, i.e., a afirmação de que todo o evento tem uma causa. Hume evidentemente não nega este princípio. Nas Investigações, por exemplo, dispensa muito esforço e tempo argumentando a favor da compatibilidade entre a liberdade das ações humanas com o fato de serem causadas, o que seria desnecessário se fosse possível simplesmente afirmar que as ações humanas são incausadas. O que ele nega é que o princípio seja conhecido a priori. O argumento é o seguinte: não podemos demonstrar a priori que todo começo de existência tem de ter uma causa, a não ser que possamos demonstrar a priori que algo começar a existir sem uma causa é impossível; mas não podemos demonstrar a priori que seja impossível algo começar a existir sem uma causa; portanto, não podemos demonstrar a priori que todo começo de existência tem uma causa. O cerne do argumento é a segunda premissa, e Dicker mostra como Hume procura apoiá-la. A isso se segue a análise da discussão de Hume sobre três tentativas de provar o princípio de causalidade, a saber, as tentativas de Hobbes, Clarke e Locke. O texto de Dicker é aqui novamente bastante útil, uma vez que auxilia o leitor a identificar as premissas dos argumentos desses autores e o ponto exato do ataque a Hume.

O último capítulo é bastante extenso e complexo, sendo dedicado à discussão do ceticismo em relação ao mundo material. Inicialmente, Dicker apresenta três suposições em toda a discussão de Hume: (i) que percebemos apenas impressões, (ii) que qualquer inferência partindo dessas impressões para concluir a existência de corpos que as causam é ilegítima, (iii) que os corpos não são apenas grupos ou conjuntos de impressões. A esta apresentação segue-se a exposição da explicação de Hume sobre a crença na existência contínua de objetos e a discussão sobre a diferença entre essa explicação, o sistema vulgar (i.e., o senso comum) e o sistema filosófico. Diferentemente do sistema vulgar, Hume recusa que os objetos dos sentidos tenham uma existência contínua, explicando como a imaginação forma a ficção da existência contínua de corpos. Diferentemente do sistema filosófico, a sua explicação não apela para a doutrina da dupla existência, i.e., não admite a distinção entre os objetos da percepção e os corpos materiais. Segue-se uma calorosa discussão sobre as três suposições fundamentais em toda a discussão de Hume, e aqui Dicker novamente não faz concessões, apresentando sérias objeções à teoria humiana da percepção e a teorias similares que foram defendidas por alguns autores no século XX. O capítulo encerra com a discussão de uma resposta kantiana ao ceticismo de Hume. Dicker oferece a análise da seção “Dedução Transcendental dos Conceitos Puros do Entendimento” da Crítica da Razão Pura, para mostrar que segundo Kant não só a unidade da consciência seria a condição do uso de conceitos de objetos, ou seja, que sem a unidade da consciência sequer teríamos a consciência de objetos, mas também que inversamente a unidade da consciência requereria a consciência de um objeto. O tratamento do tema não é minucioso. O leitor interessado nesse ponto específico deve consultar o livro de Dicker sobre Kant, publicado algum tempo depois.

A caridade é uma virtude de um bom intérprete. Mas isso não significa que se deva tomar o texto de Hume ou de qualquer outro autor da história da filosofia como um depósito de verdades de museu, mas sim assumir que as suas opiniões são posições perfeitamente defensáveis num debate vivo e atual. Essa interação com um texto da história da filosofia deve ser natural para um leitor acostumado com uma atitude crítica, indispensável tanto para o filósofo quanto para o historiador da filosofia. Certamente que Dicker oferece uma visão parcial da filosofia humiana; o leitor irá sentir a falta de um tratamento mais adequado de temas como o ceticismo moderno, o naturalismo humiano, a identidade pessoal e o livre-arbítrio, sem contar os temas de áreas da filosofia que tiveram contribuições importantes do filósofo, mas não são contempladas no livro de Dicker, como, por exemplo, a ética e a estética. Mas isso não compromete a qualidade do livro, que não deixa de ser uma excelente apresentação e discussão do pensamento de Hume sobre questões fundamentais da filosofia — e o leitor pode apenas lamentar que o autor não tenha sido mais extenso, abrangendo mais temas.

Sérgio R. N. Miranda

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ISSN 1749-8457