Embora possa haver formas intrinsecamente injustas de governo, a democracia não é uma forma única ou intrinsecamente justa de governo. O sufrágio sem restrições, uniforme e universal […] é moralmente censurável em vários aspectos. O problema é que […] o sufrágio universal incentiva a maioria dos votantes a tomar decisões políticas de um modo ignorante e irracional, impondo depois estas decisões ignorantes e irracionais a pessoas inocentes. A única justificação para o sufrágio sem restrições e universal seria a nossa incapacidade de produzir um sistema com melhor desempenho. (Brennan, 2017: 20)
O governo representativo é um fenómeno relativamente recente: não tem mais de um século e meio. Isto significa que, durante muito tempo, a teoria democrática foi essencialmente especulativa, alimentada por muito romantismo e boas intenções. Hoje, porém, dispomos de resultados que vêm da experiência; e isso justifica, no mínimo, que a teoria democrática deve ser confrontada com os factos. Alguém deve, nas palavras do autor, desempenhar o papel de “advogado do Diabo”.1
Stuart Mill, um dos grandes filósofos políticos do século XIX, era um defensor do governo representativo. Mill esperava que o governo representativo, resultante do sufrágio universal, tivesse as melhores consequências — não só no respeito pelos direitos humanos e pelo desenvolvimento económico, mas também na promoção das virtudes cívicas e na elevação moral dos cidadãos.
Mill não viveu para ver essas consequências: na sua época, o sufrágio universal não era mais do que uma hipótese. Sendo, porém, um pensador animado pelo espírito científico, não hesitaria, decerto, em confrontar as suas hipóteses com a realidade se tivesse tido essa possibilidade. Vivesse ele hoje, teria a possibilidade de observar que as suas ideias não parecem ter sobrevivido ao teste do tempo.
As formas mais comuns de compromisso político não só não conseguem educar-nos ou enobrecer-nos, mas também tendem a estupidificar-nos e corromper-nos. (Brennan, 2017: 12)
Assim que entra no campo político, refere Brennan, citando o economista Schumpeter, o cidadão comum regride, na análise e no raciocínio, a níveis de desempenho que, noutras esferas, reconheceria como infantil e primitivo.
Do ponto de vista da teoria democrática, dispondo da informação empírica de que dispomos, hoje não estamos, como estava Mill, limitados a especular: hoje podemos observar e confrontar a teoria com a evidência disponível.
Os cidadãos, observa Brennan, diferem em muitos aspectos. No que é relevante para o seu ponto de vista, o autor divide os cidadãos democráticos em três tipos ideais ou “arquétipos conceptuais”: hobbits2, hooligans3 e vulcanos.4
O hobbit é, essencialmente, ignorante. Indiferente à política, carece de opiniões: o seu conhecimento da História ou da realidade sociológica é superficial. Tipicamente, nas eleições abstém-se.
O hooligan é o fanático da política: tem opiniões fortes e fundamentadas; mas tende a consumir exclusivamente a informação que confirma ou sustenta as suas opiniões, desprezando o que quer que as contradiga ou desminta. Ainda que, frequentemente, seja capaz de argumentar a favor das suas ideias, não consegue explicar satisfatoriamente pontos de vista alternativos. As opiniões políticas fazem parte da imagem do hooligan: o seu partido faz parte da sua identidade. Tende a desprezar as pessoas que pensam de maneira diferente. A maioria dos políticos, dos activistas e dos votantes são hooligans.
O vulcano fundamenta as suas opiniões políticas na ciência e na filosofia. Evita ser tendencioso, emotivo e irracional. Quem não pensa como ele não é, ipso facto, idiota, ignorante ou egoísta: é apenas alguém que não pensa como ele.
Ao contrário do que se poderia pensar, o hooligan não é necessariamente extremista e o vulcano não é necessariamente moderado: alguns marxistas ou libertários podem ser vulcanos e alguns social-democratas hooligans; o hobbit, esse, tende a não ser, politicamente, coisa alguma.
Mas não serão, não obstante este perfil desolador do eleitorado, a democracia e a participação política valiosas? Talvez. Talvez sejam boas porque tendem a produzir melhores resultados do que as alternativas; ou talvez sejam boas porque produzem cidadãos melhores; ou, finalmente, talvez tenham valor em si mesmas.
Designarei por triunfalismo democrático a visão de que a democracia e a participação política generalizadas são valiosas, justificadas e requeridas pela justiça, pelos três tipos de razões. O slogan do triunfalismo poderia ser: “Três vivas à democracia!” (…) Esta livro critica o triunfalismo. A democracia não merece pelo menos dois dos vivas que recebe e pode também não merecer o último. (Brennan, 2017: 19)
O autor oferece três argumentos contra o triunfalismo democrático. Em primeiro lugar, a democracia não é uma forma intrinsecamente justa de governo: pelo contrário, é injusto e moralmente censurável permitir que decisões políticas tomadas de modo incompetente e irracional possam prejudicar pessoas inocentes; a democracia só estaria justificada caso fôssemos incapazes de inventar um sistema que produzisse melhores resultados. Além disso, a participação política não nos torna melhores cidadãos: ao contrário, tende a embrutecer-nos, a corromper-nos e a tornar-nos inimigos uns dos outros. Finalmente, a liberdade de participar no processo de decisão política não é como as outras — nomeadamente, a liberdade de expressão, de religião ou de associação: a liberdade de participação no processo de decisão política carece de uma boa justificação.
Presentemente, no entanto, a ideologia política dominante, no Ocidente, é uma espécie de liberalismo filosófico. Seguindo, no essencial, a visão de Mill, o liberal pensa que as pessoas — desde que não sejam menores de idade ou mentalmente diminuídas — devem ser livres de fazer as suas próprias escolhas, mesmo más, desde que não estejam a causar mal a terceiros. Analogamente, também uma democracia deve ser livre de fazer as suas escolhas, ainda que sejam más a ponto de conduzir a uma crise económica, por exemplo.
Esta analogia, de acordo com Brennan, está errada: um eleitorado não é, ao contrário de um indivíduo, uma entidade com comportamentos e qualificações intelectuais unificados; um eleitorado é um conjunto de pessoas diferentes, com interesses, comportamentos e aptidões diferentes. Quando um eleitorado toma decisões idiotas, o que sucede é que algumas pessoas impõem as suas más escolhas a outras: às minorias, aos estrangeiros, às gerações do futuro, aos que se abstêm de votar ou não podem fazê-lo. Se a maioria dos eleitores faz más escolhas, não está a prejudicar-se apenas a si mesma, mas também a um conjunto de cidadãos inocentes. Justificar a tomada de decisão política é, pois, uma tarefa mais complexa do que justificar a tomada de decisão individual.
Como avaliar, então, a democracia? Terá a democracia valor intrínseco, ou meramente instrumental? Acreditamos, por exemplo, que os seres humanos têm valor intrínseco; isto é, um ser humano tem valor em si mesmo. Um martelo, porém, dificilmente terá valor intrínseco: um martelo é um instrumento, e um instrumento valioso se, e só se, for útil para nós; dizemos, portanto, que um martelo tem exclusivamente valor instrumental. Alguns objectos, porém, têm simultaneamente valor intrínseco e instrumental: um relógio, por exemplo, pode ser valioso em si mesmo, por um conjunto vasto de razões; mas, se funcionar razoavelmente, pode ter ainda valor instrumental. E a democracia?
Muitos filósofos acreditam que a democracia tem, simultaneamente, valor intrínseco e instrumental. Tem valor intrínseco porque constitui um processo de tomada de decisões inerentemente justo: no essencial, exprime a ideia de que todos os indivíduos são igualmente valiosos. Mas tem, também, valor instrumental; isto porque tende a produzir resultados relativamente justos.
Brennan defende que a democracia deve ser avaliada como avaliamos um martelo e não como avaliamos um relógio ou um ser humano: a democracia é um instrumento, “é um meio para um fim, mas não um fim em si mesmo. […] A democracia não é intrinsecamente justa. […] O valor que a democracia tem é puramente instrumental.” (Brennan, 2017: 28)
Se for verdade que o valor da democracia é justificado pelos resultados que produz, então, caso encontremos um modelo que produza resultados melhores, devemos optar por ele. Platão, na Antiguidade, parecia pensar desse modo.
De acordo com Platão, o eleitorado — a assembleia dos cidadãos — é demasiado ignorante, demasiado estúpido e irracional para governar bem. O governo por um rei-filósofo, honesto e sábio, seria preferível. Platão argumentava a favor de um modelo a que os filósofos chamam, hoje, epistocracia.5 “Epistocracia” significa “o governo dos sábios”:
Um regime político é epistocrático na medida em que o poder político é formalmente distribuído de acordo com a competência, a capacidade e a boa-fé para agir de acordo com essa capacidade. (Brennan, 2017: 29)
Aristóteles concorda com Platão num aspecto: o governo por um rei-filósofo sábio seria preferível à democracia. Porém, argumenta, no mundo real, nunca teremos um rei-filósofo sábio: ninguém é suficientemente bom para o exercício do cargo; e, ao contrário do que pensa Platão, também não podemos formar reis-filósofos sábios.
Aristóteles tem razão: no mundo real, encarregar da governação uma só pessoa seria demasiado difícil. Daí não se segue, todavia, argumenta Brennan, que a epistocracia é impossível: várias formas de epistocracia serão possíveis, segundo o modo como se limitar o impacto, no processo de decisão política, da participação dos eleitores menos capazes e, portanto, mais susceptíveis de tomar más decisões.
Os epistocratas não precisam de afirmar que os peritos devem ser chefes. Os epistocratas precisam apenas de sugerir que as pessoas incompetentes ou pouco razoáveis não devem ser impostas às outras como chefes. (Brennan, 2017: 33)
Hoje em dia, porém, a ideia de uma distribuição desigual do poder político parece desagradar a muitas pessoas. De um modo geral, tomamos como inquestionável a ideia de que todas as pessoas devem ter uma parte igual de poder político: a desigualdade política parece-nos intrinsecamente injusta.
É verdade que, no passado, a desigualdade política foi quase sempre injusta. É errado atribuir poder político a alguém apenas porque é branco, homem, proprietário ou descendente de um senhor da guerra. É errado excluir alguém do poder político só porque é negro, mulher, pobre ou descendente de pobres.
No entanto, do facto de, no passado, a desigualdade política ter sido quase sempre injusta, não se segue, de acordo com Brennan, que a desigualdade política seja intrinsecamente injusta: ainda que, no passado, algumas pessoas tenham sido impedidas de ter poder político por más razões, pode haver boas razões para impedir certas pessoas de ter poder político, ou para atribuir-lhes menos poder político do que a outras. Impedir alguém de conduzir apenas porque é ateu, homossexual, ou intocável, argumenta Brennan, seria errado; daí não se segue, porém, que não haja boas razões para impedir algumas pessoas de conduzir: ao contrário, impedir que pessoas incompetentes conduzam, ou pessoas que, de alguma maneira, representam um risco para os outros, é uma boa ideia. Analogamente, pode haver boas razões para impedir que as pessoas incompetentes tomem decisões que poderão causar dano a outras.
Há, em suma, duas teorias básicas acerca da distribuição do poder político: o procedimentalismo e o instrumentalismo. Os procedimentalistas sustentam que, em matéria de distribuição do poder político, há formas intrinsecamente justas e formas intrinsecamente injustas. Os instrumentalistas reivindicam que devemos optar pela forma de distribuição do poder político que produza os resultados mais justos, seja ela qual for, independentemente dos procedimentos que lhes dão origem.
Brennan defende que a democracia deve ser avaliada instrumentalmente: se houver uma alternativa que produza melhores resultados, devemos optar or ela. Por outro lado, não há, afirma, bons fundamentos procedimentalistas para para preferir a democracia è epistocracia.
Quando se trata de votar, o conhecimento e a racionalidade não compensam, ao passo que a ignorância e a irracionalidade não são punidas. (Brennan, 2017: 42)
Suponha o leitor que quer atravessar a rua. Se tiver uma crença falsa acerca de haver trânsito a circular na via, sofrerá as consequências. Agora suponha que está prestes a votar. Ainda que vote sob a influência das ideias mais delirantes, nada, ou quase nada, se segue daí. À excepção do improvável cenário de um empate, a verdade é que um voto individual nada, ou quase nada, altera. Se decidir abster-se em vez de votar, os resultados serão os mesmos. E sê-lo-ão quer o voto do leitor seja bem informado, quer seja completamente ignorante.
Um conjunto de estudos empíricos referidos por Brennan mostra que, em matéria de política, os cidadãos são muitíssimo ignorantes. Como explicar esta situação?
De acordo com o autor, a situação é explicada por um fenómeno a que os economistas chamam “ignorância racional”: “Obter informação tem um custo. […] Quando os custos esperados para adquirir informação de um certo tipo excedem os benefícios esperados de possuir esse tipo de informação, as pessoas normalmente não se incomodam a obter a informação” (Brennan, 2017: 51).
Se o meu voto individual nada ou quase nada altera, por que razão deveria investir tempo e recursos a informar-me para votar? O que parece carecer de explicação não é o facto de a maioria dos cidadãos ser ignorante, em matéria de política, mas sim o facto de haver uma minoria de cidadãos tão informada.
Se a ignorância política não tivesse efeito sobre as nossas preferências políticas, se as pessoas bem e mal informadas tivessem as mesmas opiniões políticas, a ignorância e a má informação não importariam. Mas a informação importa. As medidas políticas que as pessoas defendem dependem do que sabem. (Brennan, 2017: 55)
O problema é que a maioria dos cidadãos tende a processar a informação de maneira enviesada e motivada, em vez de fazê-lo racional e desapaixonadamente. Tendemos a seleccionar a informação que confirma ou sustenta as nossas crenças preexistentes e a desprezar a que as infirma ou debilita. Em política, os cidadãos exibem — por razões que diversos estudos empíricos revelam — uma forte necessidade de pertencer a um grupo e de se identificar com ele. É o apelo da tribo, o território onde o hooligan desabrocha e prospera. Ora, uma vez que a democracia confere a cada um uma parte tão escassa de poder político, este mau comportamento epistémico compensa: os cidadãos não têm qualquer incentivo para agir de outra maneira.
A participação política tende a tornar-nos piores, não melhores. (Brennan, 2017: 36)
Teóricos como Mill, no século XIX, sabiam que as pessoas tendem a estar, de um modo geral, pouco informadas sobre história, ciências sociais e política. Esperavam, contudo, que o envolvimento na política as tornaria mais informadas, mais racionais e, de um modo geral, mais virtuosas; e isso porque o envolvimento na política requer uma perspectiva alargada do interesse geral e do bem comum. Acreditavam que — usando os arquétipos conceptuais de Brennan — era possível transformar os hobbits em vulcanos. Este é o argumento da educação.
O argumento da educação é popular entre os filósofos. Mas será sólido? A sua premissa — a ideia de que o envolvimento na política requer que as pessoas se desenvolvam uma perspectiva abrangente acerca do interesse geral e do bem comum — é, no mínimo, controversa. Sendo assim, o ónus da prova está do lado de quem a defende. Na ausência de forte evidência a seu favor, devemos rejeitá-lo. Ora, a evidência disponível parece mostrar que a premissa é falsa ou, no mínimo, implausível.
O problema, respondem muitos defensores do argumento da educação, reside no facto de não ser suficiente que a democracia seja representativa: deve ser também deliberativa. Isto é, votar não basta: para que o argumento da educação funcione, é necessário deliberar.
Idealizada como tem sido pelos filósofos, a democracia deliberativa parece atraente. Se as pessoas fossem racionais e virtuosas, como os filósofos as concebem, a deliberação seria sempre um caso de grande elevação espiritual, do qual todos sairíamos a ganhar: os ignorantes seriam informados ou corrigidos, os sábios seriam perfeitamente sensatos e iluminantes, a verdade floresceria nas verdes colinas e, no fim do dia, o bem comum teria sido servido.
Infelizmente para as boas vontades filosóficas, na realidade as coisas só muito raramente (para sermos optimistas) funcionam assim: no debate, as pessoas manipulam e são manipuladas, iludem e deixam-se iludir. Como na guerra, no debate político a primeira vítima tende a ser a verdade. No debate político, o importante não é saber, mas sim vencer.
A educação não parece transformar hobbits em vulcanos: o mais provável é transformá-los em hooligans. Sendo assim, parece claramente preferível que os ignorantes permaneçam ignorantes: antes ignorante do que corrupto.
Temos fortes razões contra encorajar mais e mais cidadãos a participar na política, a despender tempo a pensar em política, a assistir a notícias de política. Se o empenho político tende a corromper em vez de edificar, isso é um ponto contra ele. (Brennan, 2017: 109)
A democracia capacita o colectivo, não os indivíduos. (Brennan, 2017: 37)
Pode suceder que, apesar de tender a corromper-nos, a participação na deliberação política tenha algum benefício que supere o custo. Pode suceder que a participação na política confira, a cada um de nós, poder: poder de dar ou recusar consentimento à governação; poder de levar a governação a reagir aos interesses de cada um; poder para aumentar a nossa autonomia; poder de impedir os outros de nos dominar; poder para desenvolver um sentido da vida boa e da justiça.
Nada disso, argumenta Brennan: a participação na deliberação política não confere aos cidadãos individuais poder, de nenhum modo significativo, mas sim ao grupo. Quando as sufragistas conseguiram o direito ao voto para as mulheres, exemplifica o autor, isso certamente deu poder às mulheres como grupo, mas não às mulheres individualmente (excepto, claro, às que desse modo conseguiram cargos políticos).
Talvez, porém, os direitos políticos sejam de tal modo essenciais, para cada um de nós, que compense dar aos outros o poder de tomar decisões de maneira incompetente.
Brennan pensa que não: no Capítulo 4 passa revista aos principais argumentos a favor da ideia de que a democracia nos dá poder, para concluir que nenhum está à altura. São todos insatisfatórios. A verdade é que, faça o leitor o que fizer, isso em nada altera aquilo que o seu governo decide fazer: o leitor, eu, cada cidadão individual não tem qualquer poder para alterar nem a lei nem a acção governativa.
A ideia de que a democracia nos dá poder é intuitiva, mas provavelmente assenta numa falácia da divisão despercebida. A democracia dá-nos certamente poder de um modo que as ditaduras não dão. Mas, apesar de a democracia nos dar poder, não lhe concede poder a si, ou a mim, aos seus amigos, à sua mãe ou aos seus filhos adultos. A democracia não dá poder a indivíduos. Retira poder aos indivíduos e, em vez disso, proporciona-o à maioria do momento. Numa democracia, os cidadãos individuais quase não têm poder. (Brennan, 2017: 159)
As instituições que nos ajudam a viver juntos em paz e prosperidade são boas. As instituições que, comparadas com as alternativas, nos dificultam isso, dão-nos poucas razões para as apoiarmos, independentemente do que simbolizam. (Brennan, 2017: 197)
Uma classe independente de argumentos a favor da democracia é a que Brennan designa por argumentos “semióticos”. Os argumentos semióticos apelam ao poder simbólico da democracia e ao que significa dar às pessoas iguais direitos políticos, e não a preocupações com o ser mais ou menos justa do que as alternativas, ter ou não melhor desempenho do que elas. Partem da premissa de que todas as pessoas partilham uma igualdade moral fundamental.
O autor rejeita estes argumentos, objectando que não mostram que os direitos democráticos têm valor para os cidadãos; e que, mesmo que aceitemos a premissa de que todas as pessoas partilham uma igualdade moral fundamental, não somos compelidos a aceitar que dela se segue que a democracia é preferível a outras formas de governação: saber que sistema político promove melhor a igualdade moral dos cidadãos permanece uma questão em aberto.
A democracia com sufrágio universal incondicional concede o poder político de forma promíscua. Quando hobbits e hooligans votam, exercem poder político sobre os outros, e isto exige uma justificação. Deve ser justificado em comparação com sistemas alternativos. (Brennan, 2017: 199)
Em política, a maioria dos meus concidadãos é ignorante e irracional; o seu carácter moral é questionável. Apesar disso, tem poder sobre mim: pode forçar-me a fazer coisas que não escolheria caso fosse mais bem informada, racional e virtuosa.
O que pensaria o leitor ao dar-se conta de que está prestes a ser operado por um cirurgião incompetente ou a embarcar num avião tripulado por um piloto incapaz? Decerto se encontra numa situação precária. Se tiver alternativa, não hesitará, caso seja for racional, em preferi-la. Analogamente, parece injusto que cidadãos incompetentes tenham o poder de tomar decisões a que o leitor está obrigado a submeter-se: tal como no caso dos cirurgiões e dos pilotos, deveria haver instituições que protegessem as pessoas inocentes da incompetência alheia. Se deve submeter-se a uma cirurgia ou embarcar numa viagem aérea, o leitor acredita que tem o direito de depender de pessoas competentes. Por que deveria ser diferente o caso das decisões políticas?
De um modo geral, é injusto expor as pessoas a riscos desnecessários. Isto justifica que as pessoas tenham o direito de não ser submetidas a decisões tomadas de maneira incompetente.
As decisões políticas de alto risco são por princípio injustas, ilegítimas e não têm autoridade se forem tomadas de modo incompetente ou de má-fé, ou por uma estrutura de tomada de decisão geralmente incompetente. (Brennan, 2017: 37, 38)
As escolhas políticas do eleitorado são impostas a todos — aos votantes minoritários, aos não-votantes, às gerações do futuro, aos estrangeiros sem direito ao voto, etc. — e não apenas aos votantes. Na medida em que as escolhas do eleitorado decidem a acção dos governantes, ao fazer escolhas de modo irracional, ignorante ou de má-fé, o eleitorado não está a causar dano apenas a si mesmo, mas sim ao conjunto dos governados. Isto significa expor as pessoas a um risco desnecessário de dano sério. Logo, conclui Brennan, se houver um modelo de participação na decisão política que evite ou minimize de algum modo esta situação, devemos optar por ele em detrimento do modelo democrático.
É, pelo menos em teoria, possível que o eleitorado democrático seja competente como órgão colectivo, mesmo que a esmagadora maioria dos indivíduos dentro desse órgão seja incompetente em política. Por vezes, a inteligência é uma característica emergente de um sistema de tomada de decisões. Ou seja, por vezes um sistema de tomada de decisões pode ser competente ainda que todos — ou a maior parte dos indivíduos — dentro desse sistema sejam incompetentes como indivíduos. (Brennan, 2017: 241)
Talvez a democracia seja como os mercados. Nenhum indivíduo é, por si só, capaz de produzir um lápis número dois a partir do zero, exemplifica o autor; contudo, o mercado produ-los eficientemente e a baixo custo. Analogamente, talvez a democracia seja capaz de produzir decisões mais inteligentes do que qualquer modelo alternativo — ainda que a maioria dos eleitores democráticos seja politicamente incompetente.
Brennan cita três teoremas matemáticos a partir dos quais os teóricos políticos procuram fazer uma “defesa epistémica” da democracia; isto é, procuram provar que a competência é uma característica que emerge do processo de tomada de decisão democrática: o teorema do milagre da agregação, o teorema do júri de Condorcet e o teorema de Hong-Page.
No Capítulo 7, o autor argumenta que nenhum dos três teoremas tem sucesso na defesa epistémica da democracia: todos eles, argumenta, mostram que a democracia pode ser competente dadas certas condições; mas as condições não são satisfeitas em nenhum dos casos.
Talvez, porém, uma defesa da democracia não possa ser bem-sucedida se for feita a partir de premissas a priori, mas, ao contrário, possa ter sucesso se partir de premissas empíricas e a posteriori.
Brennan pensa que não: a experiência parece mostrar que a democracia só não é tão incompetente quanto a ignorância dos eleitores justificaria que fosse porque, na realidade, entre as escolhas políticas do eleitorado e a tomada de decisões interpõe-se um conjunto de instâncias que tendem a evitar o pior: as burocracias governamentais, os projectos políticos dos partidos, a generalidade dos políticos, etc. Estas instâncias não são, ao contrário dos eleitores, ignorantes e irracionais: ao contrário, tendem a reduzir a influência dos eleitores na tomada efectiva de decisão política.
A maior parte das eleições principais continua a ser de impacto elevado, embora não tão elevado como um aluno ingénuo do quinto ano de escolaridade poderia pensar. As eleições não decidem directamente as medidas políticas, mas alteram de modo significativo a probabilidade de diferentes medidas políticas virem a ser postas em prática. Se estiver correcto, temos bases presuntivas para considerar que as eleições democráticas com sufrágio universal igual são injustas, mesmo que isto não signifique que todas as decisões que todos os agentes de governos democráticos tomem sejam igualmente injustas. (Brennan, 2017: 281)
O princípio da competência deve aplicar-se a todas as decisões governamentais individuais de alto impacto. Pode ocorrer que o eleitorado aja de forma incompetente na maioria das eleições, mesmo que os agentes do governo actuem muitas vezes de forma competente após as eleições. Se assim for, […] isto deixa-nos com um dilema: ou as eleições ainda se qualificam como sendo de impacto elevado, caso em que o princípio da competência nos diz que devemos preferir presuntivamente a epistocracia à democracia, ou não se qualificam como sendo de alto impacto. Neste último caso, o princípio da competência, em si mesmo, deixar-nos-ia indiferentes entre a epistocracia e a democracia. (Brennan, 2017: 38, 39)
Uma maneira de reduzir o risco que as más escolhas políticas representam para o conjunto dos cidadãos é limitar o acesso ao voto. Nas democracias que conhecemos, cada eleitor tem direito a um voto. Uma forma de epistocracia começaria, ao invés, por assegurar que, à partida, ninguém tem direito ao voto: qualquer cidadão que pretendesse usufruir dele teria de provar estar bem informado politicamente. Só aos cidadãos que fizessem essa prova com sucesso seria permitido votar. Todos teriam direito à livre expressão e manifestação, mas só os mais competentes teriam direito ao voto.
Mais: nas democracias de que temos experiência não só cada eleitor tem direito a um voto, mas ainda cada voto tem o mesmo peso no resultado final. Uma epistocracia poderia admitir o princípio de um eleitor, um voto; mas conceder mais do que um voto aos eleitores que mostrassem — por desenvolver certas acções, por passar em certos exames, etc. — maior competência política.
Outra possibilidade seria manter o sufrágio universal, mas criar um “conselho epistocrático”, constituído pelos cidadãos politicamente mais competentes, com direito a veto. O papel deste conselho epistocrático não seria iniciar a acção, mas sim deter a acção que as escolhas patetas dos eleitores originaria, caso não fosse travada. Isto não é tão inaceitável quanto pode parecer à primeira vista: com efeito, a generalidade dos democratas aceita que certos órgãos exerçam a supervisão judicial das decisões democráticas. Por que não aceitaria submetê-las à supervisão política?
No entanto, qualquer forma de epistocracia, reconhece o autor, levanta uma dificuldade: como decidir o que conta como competência política? Não é difícil decidir o que conta, por exemplo, como competência judicial: qualquer juiz é seguramente mais competente em matéria judicial do que eu, que não sou juiz, ou mesmo do que o próprio Albert Einstein, que também não o era. Einstein, porém, percebia mais de Física do que qualquer juiz alguma vez perceberá. A dificuldade está em decidir em que especialistas confiar em cada caso.
Esta dificuldade é considerável, mas não insuperável: um regime epistocrático poderia ultrapassá-la com mais ou menos sucesso. Afinal, trata-se de uma questão empírica, e não constitui, segundo Brennan, uma objecção de fundo à epistocracia. Sucessivos ajustes poderiam ir melhorando o modelo
No século XIX, o filósofo político inglês Edmund Burke reflectiu longamente sobre a Revolução Francesa. Preocupava-o o facto de a Revolução, ao pretender substituir o regime claramente injusto de Luís XVI por um melhor, tenha acabado por substituí-lo por um regime ainda pior: afinal, os franceses teriam obtido um resultado melhor mantendo o regime injusto de Luís XVI do que tendo tentado substituí-lo por algo melhor.
A ideia básica a reter da reflexão de Burke sobre a Revolução Francesa é a seguinte: devemos ser extremamente cautelosos quando procuramos alterar radicalmente as instituições políticas existentes. A esta ideia chamamos “conservadorismo burkiano”. Claro que se levássemos o conservadorismo burkiano às últimas consequências, teríamos tido fracas razões para substituir as monarquias do século XIX por democracias. O conservadorismo burkiano deve tornar-nos prudentes, mas não paralisar-nos: seja como for, teremos de recorrer à experiência e decidir, com base nela, o que resulta e o que não resulta.
O mais lamentável na política é ela tornar-nos inimigos uns dos outros. O problema não é meramente sermos tendenciosos ou e tribalistas, tendermos a odiar pessoas que discordam de nós apenas porque discordam. Pelo contrário, o problema é, em primeiro lugar, a política levar-nos a relacionamentos genuinamente de oposição, e, em segundo lugar, termos razão em ficar ressentidos com o modo como nos tratam, por a maior parte dos nossos concidadãos tomar decisões políticas incompetentes. […] Tudo considerado, devemos querer expandir o âmbito da sociedade civil e reduzir a esfera da política. (Brennan, 2017: 39)
A maior parte do debate político, no quotidiano, não é acerca de questões existenciais profundas, mas sim acerca de questões triviais e insignificantes. Devemos manter o valor do ordenado mínimo ou aumentá-lo em meia-dúzia de euros? Devemos reduzir os impostos em 3 pontos percentuais ou em 3,5? Devemos aumentar o orçamento para a educação em 0,01 % do PIB ou em 0,02 %? No entanto, estas disputas insignificantes transbordam da esfera política e oferecem-nos boas razões para nos odiarmos fora dela.
O músico português mais ouvido em Portugal, em 2019 — segundo fontes altamente duvidosas e indignas de crédito — foi David Carreira. O leitor, porém, supostamente acha a música de David Carreira intolerável. Prefere Mozart. A popularidade de David Carreira em Portugal, entretanto, em nada afecta a vida do leitor: pode decidir simplesmente não o ouvir. Suponhamos agora que submetemos ao escrutínio público a decisão acerca do que devemos ouvir: a escolha será entre David Carreira e Ana Malhoa; Mozart nem aparecerá no boletim de voto! O leitor não voltará a ouvir o Requiem em Re menor K626 — a não ser na mais abjecta clandestinidade. Terá, assim, todas as boas razões para odiar não só quem votou em David Carreira, mas também quem o fez em Ana Malhoa.
Algo idêntico se passa com as decisões políticas: as escolhas são restritas. Apesar de as opções possíveis serem muitas, as opções efectivas são poucas. Uma vez a decisão tomada, as poucas opções efectivas passam a ser apenas uma: obrigam igualmente toda a gente. As deliberações políticas são impostas sob a ameaça de recurso à violência.
Quando alguém diz “Devia haver uma lei a exigir X” está com efeito a dizer: “Quero ameaçar as pessoas com violência a menos que façam X”. Uma batalha política é uma batalha relativa a quem terá o poder de forçar o outro a submeter-se à sua vontade. (Brennan, 2017: 334)
Fora da política, é-me relativamente indiferente que o leitor tenha preferências diferentes das minhas: tolerar as suas preferências não me impõe custos significativos. Na decisão política, contudo, são as preferências do leitor contra as minhas: as que prevaleceram impedirão as outras.
Na sociedade civil, a maioria dos meus concidadãos são meus amigos cívicos, parte de um grande esquema cooperativo. Uma das características repugnantes da democracia é transformar essas pessoas em ameaças ao meu bem-estar. Os meus concidadãos exercem poder sobre mim de formas arriscadas e incompetentes. E isso torna-os meus inimigos cívicos. (Brennan, 2017: 339)
Desde Platão que a democracia tem os seus críticos. E, tal como Platão, os críticos da democracia são geralmente melhores na crítica que fazem do que nas alternativas que defendem. Penso que é o caso de Brennan. Isto não é, todavia, surpreendente: sobre a democracia temos um conjunto muito vasto de informação, ao passo que sobre alternativas nunca experimentadas apenas podemos especular. E, por muito informada que seja a especulação, será, ainda assim, apenas especulação.
Churchill6 observava que o melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com o eleitor médio. Mesmo parecendo acreditar genuinamente que a democracia é o pior dos regimes, à excepção de todos os outros que experimentámos, permaneceu, todavia, um democrata. Churchill era, como Burke, um conservador: por vezes, ao querermos corrigir um mal acabamos por produzir um mal maior. O menor dos males é preferível por princípio.
Mais do que uma defesa da epistocracia, Brennan oferece uma demolição metódica, argumento a argumento, da ideia de que a democracia é o melhor modelo possível de participação política. Qual é o modelo melhor permanece, todavia, uma questão em aberto.
Contra a Democracia é uma obra que vale a pena ler. Rigoroso na análise, Brennan escreve de maneira clara e agradável. A obra indica ainda uma extensa bibliografia especializada.