Poderão algumas espécies sociais ser naturais? Neste artigo argumento que há três espécies de espécies sociais: 1) espécies sociais cuja existência não depende de os seres humanos terem quaisquer crenças ou outras atitudes proposicionais acerca delas (e.g. recessão, racismo); 2) espécies sociais cuja existência depende parcialmente de atitudes específicas que os seres humanos têm acerca delas, embora não seja necessária a manifestação de atitudes acerca das suas instâncias particulares (e.g. dinheiro, guerra); 3) espécies sociais cuja existência, assim como a das suas instâncias, depende parcialmente de atitudes específicas que os seres humanos têm acerca delas (e.g. residente permanente, primeiro-ministro). Embora as três espécies de espécies sociais dependam da mente, isso não as torna ontologicamente subjetivas nem as impede de serem espécies naturais. Ao invés, o que impede a terceira espécie de espécies sociais de serem naturais é o fato de as suas propriedades estarem convencionalmente ligadas, e não causalmente.
É frequente a afirmação de que as espécies sociais ou humanas diferem das naturais por diversas razões. Alguns filósofos argumentam que essas espécies são ontologicamente subjetivas, uma vez que a sua própria existência depende de atitudes mentais humanas (Searle 1995). Outros alegam que diferem das espécies naturais porque são interativas e podem se alterar em resposta às nossas atitudes acerca delas (Hacking 1995; 1999). Além disso, outros sustentam que a diferença entre as espécies naturais e as sociais é que as últimas são de natureza fundamentalmente valorativa ou normativa (Griffiths 2004). Neste artigo examinarei a primeira tese sobre as espécies sociais, segundo a qual são ontologicamente subjetivas porque dependem de crenças e outras atitudes proposicionais. Muito embora algumas espécies sociais pareçam ter as características que Searle indica, argumentarei que outras não as têm. Além disso, mesmo aquelas que de fato correspondem à descrição de Searle das espécies sociais são insusceptíveis de ser espécies naturais não pelas razões que ele cita mas antes por outras razões que tentarei explicar.
Antes de investigar a natureza das espécies sociais, vale a pena esclarecer a extensão da expressão. Particularmente, haverá uma diferença entre as espécies sociais e as humanas? Talvez existam espécies humanas que não são sociais (e.g. anemia falciforme), ou espécies sociais que não são humanas (e.g. macho dominante, aplicada aos macacos macaca; cf. Ereshefsky 2004). Mas a sobreposição entre essas duas classes é suficientemente grande e a existência de atributos comuns entre elas é suficientemente vasta para permitir tratá-las conjuntamente. Quando as exceções dos dois lados aparentam ter características especiais que as afastem, os casos que serão particularmente interessantes para mim aqui são as espécies que podem ser consideradas exemplos de ambas. Ater-me-ei àquelas espécies que são conjuntamente sociais e humanas e omitirei da análise as espécies humanas não-sociais e as sociais não-humanas.1
Ao discutir as espécies sociais, Searle (1995, 1) começa com um quebra-cabeças: como pode haver “coisas que só existem em virtude de acreditarmos que existem” (e.g. dinheiro, propriedade, governos e casamentos) e no entanto muitos fatos acerca delas serem objetivos? Para resolver o quebra-cabeças, Searle distingue dois tipos de subjetividade: a ontológica e epistêmica. A epistêmica se aplica primariamente aos fatos e juízos: um juízo é epistemicamente subjetivo quando a sua verdade ou falsidade depende de certas atitudes mentais ou sentimentos, ao passo que é epistemicamente objetivo quando não exibe essa dependência. Em contraste, a subjetividade ontológica se aplica a entidades e tipos de entidades: as subjetivas (sejam espécimes ou tipos) são aquelas cujo modo de existência depende de serem sentidas pelos indivíduos (embora ele tivesse podido acrescentar serem pensadas ou mentalmente apreendidas de outra forma), ao passo que as entidades objetivas não exibem essa dependência da mente. A resolução do quebra-cabeças está em ver que embora as espécies sociais (como dinheiro, casamento, propriedade privada e eleições) sejam ontologicamente subjetivas, os juízos acerca delas podem ser epistemicamente objetivos. Assim, a espécie dinheiro é ontologicamente subjetiva, uma vez que a sua existência depende das nossas atitudes mentais, mas o juízo de que esta moeda é uma instância de dinheiro, ou que é uma nota de dez dólares, é epistemicamente objetivo, já que a verdade desses juízos é independente das nossas atitudes.2
Para Searle, os exemplos paradigmáticos de espécies sociais são aqueles que têm uma natureza manifesta ou dissimuladamente convencional ou institucional, como dinheiro, casamento, propriedade privada e eleições. Essas espécies sociais têm as características que têm em virtude de convenções, regras ou leis que delineiam as condições que precisam ser satisfeitas para algo contar como membro daquela espécie. Searle (1995, 32) afirma que o que faz uma dada espécie social x ser x é simplesmente ser considerada, usada e aceita como x. Por exemplo, para algo ser uma nota de dez dólares tem de ser considerada como tal, ser usada como tal e ser aceita como tal, e para algo ser um beberete tem de ser aceito como tal, considerado como tal, tratado como tal, e assim por diante. Searle observa que isso se aplica ao tipo (ou espécie) em geral, embora nem sempre para cada espécime individual do tipo. No caso da nota de dez dólares, o tipo em geral tem de ser considerado como tal, embora possa haver um espécime individual que nunca chegue a entrar em circulação, nunca se tornando realmente objeto de crença por parte de alguém enquanto nota de dez dólares (suponha que a nota cai diretamente da impressora para uma rachadura do assoalho). Apesar disso, seria ainda uma nota de dez dólares. Mas no caso do beberete cada espécime individual precisa ser considerado como tal; caso contrário, não se trata de um beberete. Muito embora Searle por vezes escreva como se para algo ser dinheiro nada mais fosse preciso além de ser pensado como tal, ele também indica que na sua perspetiva essa é uma condição necessária e não suficiente. Por exemplo, Searle (2006, 14) afirma que “[...] uma condição necessária para ser dinheiro é que as pessoas têm de ter a intenção de que o seja, e pensar que o é”. Mas como veremos, essa é uma condição necessária algo forte, no sentido em que ele pensa que é quase suficiente (nesse e em muitos casos similares).3
Searle identificou uma característica interessante de determinadas espécies sociais, como dinheiro e guerra, que considera ontologicamente subjetivas no sentido de a sua própria existência depender das nossas atitudes proposicionais acerca delas. Mas a sua perspetiva parece deixar de fora muitas espécies sociais, se não mesmo a maioria. Algumas espécies sociais têm o caráter que Searle identificou, mas outras não correspondem à sua análise. Isso foi persuasivamente defendido por Thomasson (2003a; 2003b), que critica Searle por não reconhecer que a existência de muitas espécies sociais não depende de as pessoas terem pensamentos acerca das próprias espécies. Como ela faz notar, isso pode ser verdadeiro relativamente à espécie dinheiro, mas não relativamente à espécie recessão (cf. inflação, racismo, pobreza). Thomasson (2003a, 276; ênfase no original) escreve que “um dado estado econômico pode ser uma recessão mesmo que ninguém pense que o é, e mesmo que ninguém considere seja o que for como recessão ou quaisquer condições como suficientes para contar como recessão”. Analogamente, ela defende que “algo ou alguém pode ser racista sem que qualquer pessoa considere coisa alguma como racista [...]” (2003a, 276). É plausível que havia racismo antes de essa espécie ser identificada e antes de qualquer pessoa ter quaisquer atitudes proposicionais envolvendo a própria categoria do racismo. Em um trabalho mais recente, Searle (2010, 116–117) reconhece a existência espécies como recessão, que não dependem de termos atitudes acerca delas. Mas sustenta que são “consequências” ou “repercussões sistemáticas” de outras espécies de espécies sociais, cuja existência de fato depende de termos atitudes acerca deles. Embora não explique o que quer dizer ao certo por “consequências” ou “repercussões sistemáticas” (por exemplo, se são consequências causais ou conceituais), ou justifique detalhadamente a tese, para os nossos propósitos é suficiente o fato de Searle ter vindo a reconhecer que há algumas espécies de espécies sociais cuja existência não depende de termos atitudes acerca delas.4
Esta discussão sugere que há três espécies de espécies sociais. Primeiro, há espécies sociais cuja natureza é tal que a sua existência não pressupõe que os seres humanos tenham qualquer atitude proposicional acerca delas (e.g. recessão, racismo). A existência dessas espécies depende da existência de seres humanos e de esses seres humanos terem certas atitudes proposicionais. Só pode haver racismo em uma sociedade se alguns membros dessa sociedade tiverem preconceitos relativamente a outros, ou adotarem atitudes de superioridade ou desprezo relativamente a eles por serem membros de um grupo distinto. Mas os membros dessa sociedade não precisam ter quaisquer atitudes proposicionais que envolvam a própria categoria racismo. Podem nunca ter conscientemente formulado essa categoria ou conceito; na verdade os racistas podem negar que têm essas atitudes e as vítimas do racismo podem nunca ter articulado o conceito. Não obstante, não há dúvida de que certas atitudes proposicionais humanas precisam estar presentes para o racismo existir.5
A segunda espécie de espécie social inclui aquelas cuja existência depende pelo menos parcialmente de atitudes específicas que os seres humanos têm acerca delas, embora essas atitudes não precisem se exprimir relativamente a cada uma das suas instâncias particulares para que sejam instâncias dessas espécies. Isso parece ser verdadeiro com respeito a espécies sociais como dinheiro ou guerra. Nesses casos, pelo menos alguns membros da sociedade têm de ter atitudes proposicionais envolvendo essas próprias categorias. Para o dinheiro existir, precisamos ter uma prática e atitudes que fazem menção à categoria dinheiro. Mas, como diz Searle, pode haver espécimes desse tipo acerca dos quais ninguém tem quaisquer atitudes proposicionais, como no caso da nota de dez dólares que caiu na rachadura. Analogamente, Searle pode estar correto quanto à ideia de que para a guerra existir realmente é preciso haver algo como declarações de guerra; a prática da guerra depende de atitudes que envolvem o conceito guerra e conceitos relacionados. Porém, muito embora Searle não pareça concordar, talvez qualquer ato individual de guerra pudesse ter sido uma guerra sem que fosse considerado como tal pelas partes envolvidas (ou sequer por fosse quem fosse). Podemos constatar que uma escaramuça fronteiriça entre a Ruritânia e a Lusitânia, que teve lugar sem uma declaração de guerra proferida por parte de qualquer dos países, se intensificou e se prolongou a ponto de poder ser considerada uma guerra, embora na ocasião ninguém a tenha considerado uma guerra. A razão por que isso parece possível é que espécimes individuais de guerra não dependem unicamente das atitudes dos membros da sociedade, mas também parcialmente de certas propriedades causais. Pode não haver condições rígidas que uma sequência de eventos tenha de satisfazer para ser corretamente considerada uma guerra, mas há certos critérios que os historiadores, jornalistas e outros poderiam usar. Eles poderiam, por exemplo, ponderar o número de tropas mobilizadas, o número de baixas, a duração dos conflitos e outras características para ajuizar se um dado conflito pode efetivamente ser considerado uma guerra. As declarações de guerra são sem dúvida importantes, mas elas podem nem ser necessárias nem sequer suficientes. Se uma guerra for declarada sem que um único tiro seja disparado antes de se alcançar uma solução diplomática, pode ser incorreto considerar que uma guerra de fato ocorreu. Pelo que a segunda espécie de espécie social pode incluir espécies como guerra, bem como dinheiro, pois os espécimes desses tipos podem ocorrer ainda que ninguém os considere como tal. Poderia haver guerra sem crenças envolvendo o conceito guerra, i.e. crenças acerca da própria categoria? Em outras palavras, poderia guerra estar na primeira categoria (juntamente com recessão e racismo) e não na segunda? Parece implausível. Uma guerra não é simplesmente qualquer eclosão de violência em larga escala, mas uma que é organizada, planejada e conduzida segundo certas regras (ainda que sejam mais frequentemente violadas do que observadas). Uma vez que essas regras têm de resultar de processos mentais humanos que envolvem a própria categoria (ou as suas contrapartes próximas), não é evidente que a prática poderia se iniciar na ausência de algumas atitudes proposicionais envolvendo a própria categoria. O mesmo se dá com dinheiro. Onde há diversas denominações monetárias, certamente há um conjunto de regras ou convenções, sejam elas explícitas ou implícitas, e a introdução dessas convenções exige que haja pensamentos envolvendo a própria categoria.
A terceira espécie de espécie social inclui aquelas cuja existência, assim como a das suas instâncias, depende das atitudes que os seres humanos têm acerca delas. Nesse caso, não só alguns membros de uma sociedade têm de ter atitudes relativamente à própria espécie, como cada espécime individual da espécie só pode ser um espécime dessa espécie caso seja considerado como tal por alguns membros da sociedade. A fim de ilustrar — embora eu ponha daqui a pouco em causa que essa seja uma boa ilustração — Searle (1995, 34) descreve um beberete onde as coisas se descontrolam:
Se, por exemplo, organizarmos um enorme beberete, convidando toda a gente em Paris, e as coisas se descontrolam a ponto de o índice de vítimas no beberete superar o da Batalha de Austerlitz — ainda assim, não se trata de uma guerra; é somente um beberete extraordinário; ser considerado uma guerra faz parte do que é ser uma guerra.
Neste caso, Searle (1995, 34) argumenta que “a atitude que adotamos perante o fenômeno é parcialmente constitutiva do fenômeno”. Ele não afirma que ser um beberete nada mais envolve senão o fato de o considerarmos como tal, mas pensa de fato que serem considerados como tal é uma condição necessária para que os espécimes individuais de beberetes o sejam. Argumentei previamente que isso não sucede relativamente às guerras, e nem obviamente no caso dos beberetes. Não é descabido uma reunião social ser um beberete, embora ninguém a considere tal coisa (digamos, uma angariação de fundos para uma causa política na qual não se angaria quaisquer fundos). E não é certamente óbvio que o pandemônio parisiense de Searle seja efetivamente um beberete, embora seja largamente considerado como tal. Mesmo que os organizadores e participantes continuem a insistir que o evento não passou de um grande beberete caótico, não seria absurdo alguém (digamos, um transeunte, um juiz, ou um sociólogo) concluir corretamente que o que na verdade ocorreu foi uma briga de rua ou uma rixa. De fato, mesmo que todos concordem que se tratou de um beberete, não é certamente impossível estarem todos enganados acerca da real natureza do evento. Pelo menos no que respeita a algumas espécies sociais de cariz convencional ou institucional, mesmo que todos os agentes sociais concordem que algo conta como um espécime da espécie social E, isso não garante que o seja de fato. Além disso, mesmo que ninguém considere que algo é um espécime da espécie social E, pode ainda muito bem sê-lo. Repare que isso é diferente da ideia de Thomasson, que discuti previamente. Ela argumenta corretamente que no que toca a muitas espécies sociais (e.g. recessão) não precisamos ter qualquer atitude quanto a elas para serem as espécies que são. A minha ideia é que mesmo em relação a algumas das espécies institucionais ou convencionais referidas por Searle, para as quais algumas atitudes respeitantes à espécie têm de estar presentes, essas atitudes não têm de estar presentes para cada espécime da espécie: pode suceder que nenhum de nós tem a atitude de que algo é uma guerra quando realmente o é, e pode suceder que todos têm a atitude de que algo é um beberete quando na verdade não o é. Mas a ideia mais abrangente não é a de que há exceções, e sim a de que isso mostra que essas espécies não são puramente convencionais, mas antes, ao menos parcialmente, de natureza causal (como tentarei aprofundar na próxima seção).
Haverá algumas espécies sociais tais que tanto os seus espécimes como os seus tipos dependem de atitudes humanas do modo como Searle sugere? Talvez os melhores candidatos sejam os de caráter mais estritamente institucional ou convencional. Isto pode aplicar-se a uma espécie social como residente permanente em uma determinada jurisdição. Ter a categoria de residente permanente em um estado particular exige a existência de condições estabelecidas pelos oficiais daquele estado, o que implica terem atitudes envolvendo a própria categoria. Além do mais, nenhum indivíduo poderia ser um residente permanente daquele estado sem que determinadas autoridades tenham as atitudes exigidas em relação aos indivíduos (viz. de que satisfazem as condições). Nesse caso, para o tipo existir, pelo menos alguns membros da sociedade têm de ter certas atitudes proposicionais envolvendo a categoria, e para existir a instanciação de um espécime particular daquele tipo esses membros têm também de ter atitudes proposicionais envolvendo a categoria e que visem um indivíduo. A tese de Searle se aproxima mais do sucesso quando se trata de espécies sociais de cariz puramente convencional, ou seja, espécies cujas propriedades associadas ou condições de pertença são mais estritamente expressas em um conjunto de regras ou leis. Quando se trata de uma espécie social como residente permanente, em muitas jurisdições, estabelece-se exigências especificando as condições que alguém tem de satisfazer para ser um residente permanente daquela jurisdição (e.g. não ter ficha criminal). Além do mais, a questão de um qualquer indivíduo particular satisfazer ou não essas condições decide-se em função das crenças e outras atitudes dos membros da sociedade em causa. Por certo, não são as atitudes dos membros da sociedade como um todo que determinam o estatuto de alguém como residente permanente, pois isso é geralmente determinado pela atitude dos funcionários do estado informados pelas leis e estatutos apropriados. Os funcionários podem cometer erros no que diz respeito às condições que uma pessoa satisfaz (e.g. podem pensar que tem ficha criminal quando não tem), mas mesmo quando o fazem são geralmente as suas crenças ou palavras que determinam se alguém é um residente permanente ou não. Nesses casos, é a crença dos funcionários — informados por uma convenção explícita, ou lei — que determina se alguém é ou não um residente permanente. Considerações semelhantes se aplicam a uma espécia social como primeiro-ministro. Ninguém pode ser o primeiro-ministro de um determinado estado a menos que haja semelhante cargo político, regido por estatutos que especificam as qualidades, os meios de seleção, os deveres e as prerrogativas do detentor do cargo, e assim por diante, sendo que tudo isso implica ter atitudes que envolvem a própria categoria.6 É ainda mais evidente que não poderia haver algo como um primeiro-ministro individual a menos que essa pessoa fosse selecionada da maneira especificada e considerada como tal pelas autoridades relevantes, um processo que envolveria ter atitudes relativamente à pessoa. Poder-se-ia objetar que Péricles era efetivamente o primeiro-ministro de Atenas no período anterior à guerra do Peloponeso, embora não houvesse semelhante cargo e ninguém o considerasse explicitamente como tal. Plutarco afirmou acerca de Péricles que “por quarenta anos sucessivos manteve o lugar primeiro entre os estadistas [atenienses][...]”, e Xenofonte designou-o como governante principal do estado.7. Porém, descrevê-lo como primeiro-ministro seria falar figurativamente e propor uma analogia com sistemas de governo posteriores. Penso que é seguro concluir que a espécie social primeiro-ministro não poderia se manifestar a menos que houvesse leis ou convenções vigentes envolvendo a própria espécie, e nenhum indivíduo poderia ser uma instância da espécie primeiro-ministro a menos que fosse considerado uma instância dessa espécie. Em geral, as espécies sociais mais convencionais são de tal modo que a existência da espécie em geral pressupõe a presença de determinadas convenções, e os indivíduos só são instâncias daquela espécie se a convenção se lhes aplicar. Em ambos os casos, isso implica ter atitudes relativamente à própria espécie.
Resumindo, podemos fazer duas perguntas inter-relacionadas sobre as categorias sociais:
A primeira categoria de espécies sociais recebe uma resposta negativa a ambas as perguntas, ao passo que a segunda recebe uma resposta afirmativa à primeira e negativa à segunda, e a terceira categoria recebe uma resposta afirmativa a ambas. Além do fato de Searle inicialmente ignorar as espécies pertencentes à primeira categoria (e.g. racismo, recessão), inclui na terceira espécies que pertencem mais propriamente à segunda (e.g. guerra, dinheiro). Ademais, conjecturo que as espécies que pertencem à terceira categoria são os mais puramente institucionais ou convencionais (e.g. residente permanente, primeiro-ministro). A distinção entre as três espécies de espécies sociais pode ser resumida na forma de uma tabela (veja a Tabela 1).
Tabela 1: A distinção entre três espécies de espécies sociais |
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A existência da espécie depende de termos atitudes proposicionais quanto a ela? | A existência de instâncias da espécie depende de termos atitudes proposicionais quanto a elas? | Exemplos | |
Primeira espécie de espécie social | Não | Não | racismo, recessão |
Segunda espécie de espécie social | Sim | Não | guerra, dinheiro |
Terceira espécie de espécie social | Sim | Sim | residente permanente, primeiro-ministro |
Delineei na seção anterior três espécies de espécies sociais. A primeira espécie depende da mente no sentido de que pelo menos alguns estados mentais humanos têm de estar presentes para que a espécie exista realmente, mas os estados mentais não têm de visar a própria espécie. A segunda depende da mente num sentido mais forte; aqui, certas atitudes específicas em relação à própria espécie têm de estar desde logo presentes para que esta exista, mas os espécimes individuais daquela espécie poderiam vir a existir sem que aquelas atitudes se manifestassem relativamente a eles. À terceira espécie pertencem espécies sociais cuja própria existência depende de atitudes específicas acerca da própria espécie, e cujas instâncias individuais têm também de ser consideradas como tal pelo menos por algumas pessoas para serem membros da espécie. Tendo estabelecido essa classificação tripla das espécies sociais, passo a argumentar que essa classificação permite determinar o que impediria algumas espécies sociais de serem espécies naturais. Em lugar da dependência da mente, proporei uma razão distinta pela qual algumas espécies sociais não são espécies naturais.
Há inúmeras explicações das espécies naturais na bibliografia filosófica, mas um denominador comum entre muitas é a ideia de que estão associadas a propriedades causais. Normalmente considera-se que uma espécie natural não corresponde a uma propriedade individual mas a um conjunto ou aglomerado delas, e pensa-se que estas são causais. Quando essas propriedades associadas a uma espécie natural são manifestas ou co-ocorrentes, dão causalmente origem a variadíssimas outras propriedades, ou iniciam um ou mais processos causais em que essas propriedades se manifestam. Tomando um exemplo incontroverso, o isótopo químico lítio-7 está associado às propriedades número atômico 3 e número de massa 7. O que faz o lítio-7 ser uma espécie natural não é somente a co-ocorrência regular dessas duas propriedades na natureza, mas o fato de variadíssimas outras propriedades se seguirem causalmente dessas duas, tais como valores característicos de densidade, ponto de fusão, condutividade elétrica, meia-vida, e assim por diante. Essoutras propriedades são consequências causais de uma ou de ambas as propriedades associadas a esse isótopo químico. Assim, as categorias que correspondem às espécies naturais figuram em leis causais e generalizações. Formam também a base de diversas inferências indutivas e se repetem de uma amostra para outra ou de uma instância para outra. Alguns filósofos podem considerar minimalista essa explicação das espécies naturais, já que não estipula que as propriedades causais associadas às espécies naturais sejam microestruturais (como no exemplo acima), ou que sejam simultaneamente condições necessárias e suficientes para a pertença à espécie, ou que sejam modalmente necessárias, e assim por diante. Pelo menos algumas dessas condições adicionais são exigidas pelas explicações essencialistas das espécies naturais. Mas as condições essencialistas para as espécies naturais não parecem se aplicar nem mesmo às categorias biológicas e podem ser também questionadas por razões independentes.8 Uma vez que não posso justificar esta tese no âmbito deste artigo, prosseguirei considerando que é uma condição necessária para espécies naturais, ideia esta partilhada por diferentes perspectivas. Se as espécies sociais não puderem satisfazer essa condição mínima, não serão consideradas espécies naturais.
Em princípio, pareceria que essa condição causal para as espécies naturais poderia bem ser satisfeita por ao menos algumas espécies sociais ou humanas. Não há qualquer razão para pensar que não existem no domínio social ou humano propriedades e relações causais. Argumentei já que a existência de instâncias individuais de espécies sociais como guerra depende pelo menos parcialmente das suas propriedades causais. Isso parece também aplicar-se a espécies sociais como dinheiro. Por exemplo, seria um exagero dizer que não há quaisquer restrições causais ou físicas sobre espécimes de espécies sociais como dinheiro. O dinheiro não poderia de modo algum ser feito de gelo (pelo menos em lugares onde as temperaturas normalmente ultrapassam os 0°C), ou de um isótopo radioativo com uma meia-vida muito curta, ou de uma pedra do tamanho da Lua. Pelo que a natureza dessas espécies é significativamente restringida por fatores causais e não simplesmente pelas atitudes dos seres humanos. Um argumento no mesmo sentido foi recentemente apresentado por Guala (2010, 260), que acerca da espécie dinheiro escreve: “O que conta como dinheiro não depende meramente da aceitação coletiva de algumas coisas como dinheiro, mas também das propriedades causais de quaisquer entidades que realizem funções afins às do dinheiro [...]”.9 Isso se aplica, ainda mais claramente, aos exemplares da primeira espécie de espécie social, como recessão. Um dado período da história econômica conta como uma recessão ou não dependendo de transações econômicas, procura de mercadorias, balança comercial e atividade industrial, taxa de desemprego, e assim por diante. Esses fenômenos envolvem ações de seres humanos ou processos nos quais os seres humanos participam e que envolvem a manifestação de propriedades causais. As propriedades causais dos humanos em um arranjo social diz respeito à sua capacidade de realizar certas funções enquanto seres sociais; seja em coordenação com os outros ou em oposição a eles. Esses poderes causais podem ser sobrevenientes relativamente aos poderes físicos, mas são genuinamente distinguíveis deles, assim como os poderes biológicos são distinguíveis dos físicos.10
No que diz respeito às primeiras duas espécies de espécies sociais, cuja natureza depende ao menos em parte das suas propriedades causais e não somente dos estados mentais humanos, nada há que as impeça de serem espécies naturais. Mas quando se trata da terceira espécie de espécie social, tanto a existência do tipo como a dos espécimes depende diretamente de estados mentais humanos, e as propriedades associadas tendem a ser explicitamente expressas num conjunto de regras ou convenções. Logo, se essa espécie for associada a um conjunto de propriedades, isso não ocorre em virtude de haver conexões causais entre essas propriedades, ou porque estejam ligadas por leis ou generalizações empíricas. Ao invés, é porque uma instituição social ou comunidade decidiu associar essas propriedades à espécie. Quaisquer relações entre as propriedades não resultam de processos causais, antes são consequência de uma ligação convencional entre elas.
O principal impedimento a que algumas espécies sociais sejam naturais tem a ver com o fato de as propriedades a elas associadas o estarem por conta de uma regra ou convenção social. Isso sugere que essas espécies são inventadas e não descobertas. As suas propriedades são explicitamente inscritas nelas e podem ser tão arbitrárias quanto se queira. Se um órgão legislativo decidisse impor uma condição aos residentes permanentes de uma certa jurisdição, segundo a qual teriam de ser capazes de percorrer a nado cem metros debaixo de água, então essa se tornaria uma propriedade de todos os residentes permanentes naquela jurisdição. Entretanto, embora se trate de uma propriedade causal dos seres humanos, a conexão entre a propriedade de ser um residente permanente e a de ser capaz de percorrer a nado cem metros debaixo de água não constitui uma relação causal genuína. Porque surgiu em resultado de um fiat legislativo, não reflete uma conexão causal entre as propriedades envolvidas. A categoria residente permanente não pode ser considerada uma espécie natural com base nesse gênero de ligações convencionais. Em outras palavras, nesse cenário hipotético nenhum sociólogo conseguiria uma bolsa de pesquisa para investigar a ligação entre ser um residente permanente e ser um mergulhador competente (embora talvez fosse interessante apurar o porquê de os legisladores terem imposto essa condição).
É importante ver que não se trata de a terceira espécie de espécies sociais não poderem participar em processos causais; na verdade, parece haver duas maneiras principais de o poderem fazer. Primeiro, pode ser que as propriedades associadas e as condições de pertença à espécie tenham sido formalizadas com base em padrões causais que existiam antes de se ter elaborado as regras e os regulamentos. Assim, o estatuto de metecos (residente permanente) na Atenas antiga foi regulamentado e formalizado na constituição de Clístenes, em 508/7 AC, mas esse estatuto tinha já sido conferido informalmente antes desse desenvolvimento jurídico. Alguns dos papéis sociais que os metecos desempenhavam ou não, como participar nas transações econômicas e no serviço militar e não participar no processo político e na aquisição de propriedade, muito provavelmente vigoravam já antes de serem formalizados pela constituição de finais do século VI a.C. Mas certamente se poderia objetar que, na medida em que tinham essas propriedades, elas lhes foram conferidas por outros. Não é que não tivessem o poder causal bruto de serem titulares de uma propriedade, mas antes que os outros não lhes vendiam propriedade, talvez em resultado de preconceito ou de uma convenção informal. Ainda que isso seja verdadeiro, as propriedades causais no mundo social são frequentemente uma questão relacional, e isso também se aplica a algumas propriedades causais exteriores ao domínio social. Considere uma propriedade como a aptidão biológica ou adaptatividade: essa não é geralmente uma questão de puro poder causal da parte de um organismo, mas de propriedades relacionais que envolvem o organismo e o seu meio. Se o meio se altera, um organismo outrora apto ou adaptado não mais o será. Logo, pode haver propriedades causais no domínio social que são posteriormente codificadas segundo regulamentos ou leis. As ligações convencionais que têm importância central para a terceira espécie de espécie social podem resultar da codificação de certas ligações causais preexistentes, as quais são então regulamentadas em consequência de regras formais. Nesse caso, a codificação dessas ligações causais torna as espécies convencionais em vez de causais, ainda que possam persistir resquícios das relações causais.
Há uma segunda maneira de a terceira espécie de espécie social poder se envolver em relações causais bem como convencionais. Depois de fixadas as condições de pertença à espécie por via de uma convenção ou da lei, as propriedades associadas à espécie podem vir a participar em novos padrões causais que não existiam antes da criação da espécie social. Por exemplo, poderíamos descobrir que na sua maioria os residentes permanentes de um certo estado são residentes urbanos.11 Isso seria bastante diferente de descobrir que a maior parte dos residentes permanentes não tem ficha criminal (pelo menos no momento em que se tornaram residentes permanentes) porque essa condição foi diretamente inscrita na própria categoria. Nesses casos, ainda que a espécie tenha surgido como convencional, pode vir a participar em processos causais num determinado contexto social, permitindo-lhe, assim, potencialmente se tornar uma espécie natural.
Na maior parte do tempo, venho tratando as espécies sociais como se pertencessem exclusivamente a uma ou outra das três espécies, mas algumas espécies sociais podem pertencer a mais de uma, em diferentes contextos. Pode haver interpretações mais ou menos convencionais de algumas dessas categorias e as ligações causais e convencionais podem estar inter-relacionadas de determinadas maneiras. Em vez de considerar algumas espécies sociais como se pertencessem a uma ou a outra categoria sem restrições, poderíamos distinguir entre versões mais ou menos convencionais de algumas dessas espécies. É o que sucede com a espécie residente permanente na antiga Atenas, que pode ter passado por uma transformação ao migrar da segunda categoria de espécies sociais para a terceira, à medida que o estatuto de residente permanente se formalizou na legislação. Mas poderia ser razoável considerar que ele tem um pé em cada categoria.
A discussão da seção anterior sugere que o que impediria algumas espécies sociais de serem naturais é estarem associadas a um conjunto de propriedades por via de ligações convencionais e não causais. Mas poderia se objetar que isto ignora o fato de as três espécies de espécies sociais que identifiquei dependerem da mente, e sem dúvida que é esta dependência que as torna ontologicamente subjetivas, como diz Searle. Além disso, a sua subjetividade ontológica é um obstáculo a serem espécies naturais, já que se presume que estas são características objetivas da realidade. Defenderei que esta abordagem do estatuto ontológico das espécies sociais, e do realismo em geral, é inadequada.
Se tornou comum entre os filósofos falar acerca de uma “realidade independente da mente” ou usar a independência da mente como um critério a favor do realismo quanto a um conjunto de entidades. Nas palavras de Devitt (2005, 768):
A doutrina geral do realismo acerca do mundo exterior se compromete não só com a existência desse mundo mas também com a sua “independência da mente”: não é feito de “ideias” ou “dados sensoriais” e a sua existência e natureza não dependem das atividades cognitivas e capacidades de nossas mentes.
Não é difícil ver o impulso fundamental por detrás dessa ideia. Na medida em que somos realistas, queremos excluir da nossa ontologia entidades ficcionais que meramente concebemos ou conjecturamos e que só existem porque ocorrem em nossas cogitações mentais. A condição de independência da mente parece captar a ideia de que as entidades reais não podem ser produtos da nossa imaginação ou postulados de outros processos mentais. Mas é evidente que há muitos produtos da mente humana que não pertencem menos à realidade do que qualquer outra coisa. Artefatos e espécies artefatuais são em grande medida criações humanas, mas também muitas espécies químicas e biológicas o são, por exemplo, elementos ou compostos sintetizados em laboratório, como o roentgênio e o polietileno, ou plantas e animais híbridos, selecionados artificialmente e geneticamente modificados, como o triticale, canoa, cães e cavalos. Na verdade, pelo menos segundo muitos filósofos, os próprios estados mentais são reais e pelo critério da independência da mente seriam automaticamente excluídos como candidatos a entidades reais. Pelo que parece errado escorar o realismo na independência da mente, pois isso assimilaria espécies sociais e psicológicas como cavalos e guerra a espécies ficcionais como unicórnios e bruxaria.
Duas estratégias poderiam ser adotadas para tentar salvar a independência da mente como critério em favor do realismo. A primeira seria traçar uma distinção entre a independência da mente em termos causais e em termos constitutivos. Por vezes se afirma que a independência da mente em termos causais não é hostil ao realismo acerca de indivíduos ou espécies, ao passo que a independência da mente em termos constitutivos o é. Assim, Boyd (1989, 22) escreve o seguinte:
O realista difere do construtivista na medida em que (como faz o empirista tradicional neste caso) nega, ao passo que o construtivista afirma, que a adoção de teorias, paradigmas, enquadramentos teóricos, perspectivas, etc., de algum modo constitui, ou contribui para a constituição, dos poderes e relações causais entre os objetos que os cientistas estudam no contexto dessas teorias, enquadramentos, etc. O realista não nega (na verdade tem de afirmar) que a adoção de teorias, enquadramentos conceituais, linguagens, etc., é ela própria um fenômeno causal e assim contribui causalmente para o estabelecimento, por exemplo, desses fatores causais que são explicativos na história da ciência e das ideias. O que o realista nega é que haja qualquer gênero ulterior de contribuição (lógica, conceitual, socialmente construtiva, ou similar) da adoção de teorias, etc., para o estabelecimento de poderes causais e relações.
Entretanto, o “gênero ulterior de contribuição” e a noção relevante de constituição, ou dependência da mente em termos constitutivos, não parecem ter sido claramente articulados pelos proponentes desse critério. Além do mais, há razões que não são ad hoc para duvidar de que a distinção entre constituição e causalidade pudesse ser usada para traçar o limite no lugar certo. Podemos ter uma intuição clara de que os unicórnios são constituídos pelas mentes humanas, ao passo que os cavalos são meramente causados por elas. Mas se os unicórnios são constituídos pelas mentes humanas, também o são as próprias espécies de estados psicológicos, como crenças, desejos, dores e depressões. Pelo que qualquer tentativa de demarcar as entidades reais fazendo uso do critério de dependência da mente em termos constitutivos excluiria os estados psicológicos e consideraria a sua existência em paridade com a das espécies ficcionais. Seja o que for que se diga sobre a existência de crenças, desejos, dores e depressões, certamente não devemos relegá-los para o mesmo estatuto dos unicórnios e da bruxaria. Uma segunda tentativa de modificar o critério de dependência da mente poderá aludir a considerações modais. Enquanto as espécies que necessariamente dependem da mente não podem ser reais, as que só contingentemente dela dependem podem-no. A ideia aqui seria a de que enquanto o polietileno e os cavalos poderiam vir a existir na ausência de mentes, os unicórnios e a bruxaria não poderiam fazê-lo. Mas essa modificação não colocaria somente as espécies psicológicas, mas também as sociais na mesma categoria dos unicórnios e da bruxaria, uma vez que a existência de mentes é certamente necessária para que tanto as espécies psicológicas como as sociais existam.
Refletindo no assunto, parece problemático escorar o realismo na dependência da mente, uma vez que nada há de inerentemente irreal acerca de todas as entidades que de algum modo dependem da mente. A mente, como a vida, é um fenômeno no mundo natural relativo a certos sistemas complexos e não há razão para considerar que qualquer constituinte do universo que seja dependente da mente é, de algum modo, ontologicamente impuro. A dependência da mente é um indício enganoso no que diz respeito à objetividade ontológica. Há diversos fenômenos que, embora não sejam irreais, dependem da mente humana (tanto causalmente quanto constitutivamente), porém não do mesmo modo que as entidades ficcionais. Ainda assim, não haverá um sentido em que todas as espécies sociais são ontologicamente subjetivas, como afirma Searle? O fato de que não existiriam na ausência de mentes humanas não as torna ontologicamente diferentes de outras espécies? Podemos ganhar alguma perspectiva quanto a estas questões refletindo mais sobre a analogia entre a mente e a vida. Considere espécies biológicas como tigre, larva e metabolismo. Não há dúvida de que dependem da vida, no sentido em que não existiriam na ausência de vida. Mas isso não parece impugnar a sua objetividade ontológica, e tão-pouco deverá isso suceder a respeito da dependência da mente no caso das espécies sociais (e psicológicas). Além do mais, é questionável até que ponto se pode ou não encetar um compromisso, como Searle procura fazer, entre a subjetividade ontológica e a objetividade epistêmica. Searle sustenta que os fatos acerca das espécies sociais podem ser epistemicamente objetivos, ainda que as próprias espécies sejam ontologicamente subjetivas. Mas não é evidente que ele possa levar a sua avante em ambas as frentes. É plausível defender que personagens ficcionais como Sherlock Holmes são ontologicamente subjetivos e que quaisquer fatos ou juízos acerca deles serão, consequentemente, epistemicamente subjetivos, como sucede com o “fato” de Holmes morar no 221B da Baker Street. Podemos querer traçar uma distinção entre “fatos” acerca de Sherlock Holmes que são consistentes com os escritos de Arthur Conan Doyle e os que não o são (e.g. que Holmes morava no 221A da Baker Street, ou que tinha um cão chamado “Rover”), mas os primeiros não são fatos objetivos acerca do mundo. Se há indivíduos ou espécies que sejam genuinamente subjetivos em termos ontológicos, não é claro que se possa defender que os fatos acerca deles são epistemicamente objetivos. Pelo que está longe de ser óbvio alguém poder consistentemente afirmar que as espécies sociais são ontologicamente subjetivas e que os fatos acerca delas são epistemicamente objetivos.
Embora se possa dizer que todas as espécies sociais dependem da mente, há razões genuínas para distinguir entre as duas primeiras espécies de espécies sociais e a terceira. A principal diferença é que as primeiras se caracterizam por ligações causais entre as suas propriedades associadas, ao passo que as propriedades associadas da última são ligadas por convenções. Esta é uma diferença importante entre as diferentes espécies de espécies sociais e é argumentavelmente a razão pela qual algumas espécies sociais não podem ser consideradas naturais. O que diferencia a terceira espécie social das outras não é a dependência da mente, mas a dependência da convenção ou regulação.
Neste artigo distingui três espécies de espécies sociais, todas dependentes da mente, embora de maneiras significativamente distintas. As da primeira espécie dependem das atitudes proposicionais humanas mas não de atitudes quanto à própria espécie, enquanto as da segunda dependem de atitudes quanto à própria espécie, embora a existência de membros individuais da espécie possa não depender dessas atitudes. A terceira espécie de espécies sociais dependem, para existir, de atitudes proposicionais quanto à própria espécie e os membros individuais da espécie dependem, para existir, de alguém ter as atitudes relevantes para com eles. Este terceira espécie de espécie social coincide com as espécies sociais mais convencionais. As instâncias da terceira espécie de espécie social não podem ser espécies naturais não porque dependem da mente mas antes porque as propriedades associadas estão convencional e não causalmente ligadas.
Há um aspecto mais geral desta discussão que ultrapassa o problema da classificação das espécies sociais, ou mesmo o problema de algumas delas poderem ou não ser espécies naturais. Uma consideração do estatuto ontológico das espécies sociais sugere que a independência da mente simplesmente não é relevante para o problema do realismo acerca das espécies. A independência da mente é um indício enganoso nesse contexto, porque não consegue distinguir entre espécies sociais e espécies meramente imaginárias ou ficcionais. O que parece marcar a diferença entre as espécies sociais que são pelo menos candidatas prima facie ao estatuto de espécies naturais e as outras é que as primeiras estão associadas a propriedades causalmente relacionadas, ao passo que as últimas estão associadas a propriedades convencionalmente relacionadas. É esse aspecto convencional, e não a independência da mente, o que impede algumas espécies sociais de serem naturais.12
No que se segue tentarei aderir a uma distinção entre categorias, que dizem respeito às nossas linguagens ou teorias, e espécies, que dizem respeito ao próprio mundo. Em outras palavras, pressuponho que as categorias são conceitos-espécie (conceitos de espécie). Além do mais, irei geralmente colocar em itálico os termos usados para denotar categorias ou espécies, mas não quando referem as suas manifestações ou instâncias (embora a distinção entre as próprias espécies e as suas instâncias seja por vezes difícil de traçar).↩︎︎
Em todo o texto, usarei “atitudes” para referir atitudes proposicionais ou estados mentais que representam explicitamente as espécies em causa. Por essa razão, ao dizer que temos uma atitude acerca dessas espécies, não quero sugerir que adotamos uma postura valorativa ou conativa perante eles, mas somente que os representamos mentalmente de algum modo. Poder-se-ia indagar: quem tem de ter as atitudes apropriadas relativamente ao dinheiro para que seja dinheiro (e.g. a maioria das pessoas numa sociedade, os mais experientes nessa sociedade, etc.)? Segundo a explicação de Searle, a existência dessas espécies sociais depende da “intencionalidade coletiva” e ele tem uma perspectiva peculiar do que é isso. Entretanto, colocarei esse problema entre parênteses, visto não pensar que tenha grande importância para os nossos propósitos, na medida em que essas espécies sociais dependem de algum modo de atitudes proposicionais, sejam individuais sejam coletivas.↩︎︎
Uma vez que Searle pensa que as espécies sociais são ontologicamente subjetivas, poderia ser considerado um defensor de uma teoria do erro acerca de espécies sociais, mas ele também alega que os fatos acerca dessas espécies podem ser epistemologicamente objetivos, o que sugere uma perspectiva mais realista. Mais à frente, na seção 4, levantarei dúvidas acerca da compatibilidade dessas duas teses.↩︎︎
No caso de recessão, é plausível afirmar que a existência da espécie depende de haver outras espécie, como o dinheiro, que pertencem à segunda espécie de espécie social. Mas uma questão interessante (e em aberto) é se todas as espécies sociais que não exigem que tenhamos crenças acerca delas são ou não consequências causais de espécies sociais que o exigem. Searle não tenta justificar essa afirmação geral e parece que fazê-lo envolveria uma investigação empírica considerável.↩︎︎
Curiosamente, Searle continua a insistir que o racismo pertence à segunda espécie de espécies sociais, cuja existência depende de termos atitudes acerca delas. Searle (2010, 118) escreve que os racistas atribuem um “estatuto deôntico” a certas pessoas e que esse “estatuto deôntico não pode existir sem ser representado como tal”. Mas isso não mostra que pertence à segunda e não à primeira espécie de espécies sociais, uma vez que a espécie que teria de ser explicitamente representada é a de raça e não de racismo.↩︎︎
Há condições necessárias e suficientes para um cargo político ser o de primeiro-ministro (por contraste com, digamos, o de presidente ou de monarca)? Talvez não, mas é de supor que uma condição saliente seria a de ter um sistema parlamentar de governo.↩︎︎
Sobre Plutarco, veja Life of Pericles, in https://classics.mit.edu/Plutarch/pericles.html (acesso em 24 Setembro de 2012); sobre Xenofonte, veja Memorabilia of Socrates, Livro I, Capítulo II, seção 40, em http://thriceholy.net/Texts/Memorabilia.html (acesso em 24 Setembro de 2012)↩︎︎
Para uma justificação mais detalhada destes aspectos, veja Khalidi (2013).↩︎︎
Searle por vezes concede que haja certas restrições físicas ao que poderia contar como, digamos, dinheiro. Mas considera essas restrições tão mínimas a ponto de serem quase triviais. Por exemplo, Searle (2006, 17) escreve: “A estrutura física é mais ou menos irrelevante, desde que satisfaça certas condições gerais (como ser fácil de ser reconhecido como dinheiro, fácil de ser transportado, difícil de falsificar, e assim por diante)”.↩︎︎
Alguns filósofos são céticos acerca da existência de propriedades e relações causais nos mundos social e psicológico, por razões ligadas ao “argumento da exclusão causal” (veja, e.g. Kim 1998). Mas se essas dúvidas fossem justificadas, se aplicariam igualmente a qualquer domínio além do das partículas elementares. Ademais, essas dúvidas não são universalmente compartilhadas e foram de fato questionadas por muitos filósofos (veja e.g. Block, 2003).↩︎︎
Segundo a Statistics Canada: “Praticamente todos os imigrantes que chegaram ao Canadá durante a década de 1990 — cerca de 1,8 milhões de pessoas — se estabeleceram em uma das 27 áreas de recenseamento metropolitanas do Canadá”. Disponível em https://www150.statcan.gc.ca/n1/daily-quotidien/040818/dq040818b-eng.htm (Acesso em 5 de Junho de 2012).↩︎︎
Estou grato à audiência da Western Canadian Philosophical Association (Victoria, 2012) pelos comentários feitos a uma versão anterior deste artigo, especialmente ao meu debatedor Christopher Stephens, cujos comentários levaram a diversos melhoramentos, assim como à apresentação de alguns de meus argumentos na forma de uma tabela (veja a Tabela 1). Devo também um agradecimento a um parecerista anônimo desta revista, cujos comentários construtivos levaram a diversas alterações para melhor.↩︎︎