Em 1874 Karl Marx leu a obra Estatismo e Anarquia de Mikhail Bakunine, um dos fundadores do anarquismo como movimento revolucionário internacional e principal adversário de Marx na luta pelo controlo da primeira internacional. Marx não era passivo relativamente a qualquer coisa que fizesse e, ao ler Bakunine, copiou diversas passagens cruciais do livro acrescentando os seus próprios comentários. O manuscrito que daí resultou, que Marx nunca tencionou publicar, lê-se como uma discussão entre o principal anarquista e o principal comunista do século XIX. Eis um excerto do mesmo:
Bakunine: Sufrágio universal por toda população de representantes e dirigentes do estado — é esta a última palavra tanto dos marxistas como da escola democrática. São mentiras atrás das quais se esconde o despotismo de uma minoria governante, mentiras tanto mais perigosas quanto esta minoria se apresenta como expressão da chamada vontade do povo.
Marx: Sob a propriedade colectiva, a chamada vontade do povo desaparece para dar lugar à vontade real da sociedade cooperativa.
Bakunine: Resultado: governo de uma minoria privilegiada sobre a grande maioria da população. Mas, dizem os marxistas, esta minoria consistirá em trabalhadores. Sim, com efeito, mas de ex-trabalhadores que, mal se tornem representantes ou dirigentes da população, deixam de ser trabalhadores.
Marx: Tanto quanto um fabricante hoje em dia deixa de ser capitalista quando se torna membro da assembleia municipal.
Bakunine: E das alturas do estado começam a olhar de cima todo o mundo comum dos trabalhadores. Desse momento em diante deixam de representar a população para se representar a si próprios e às suas pretensões de governar a população. Quem é capaz de duvidar disto nada sabe acerca da natureza humana.
Marx: Se ao menos o Sr. Bakunine estivesse familiarizado com a posição de um gestor numa cooperativa de trabalhadores, podia mandar ao diabo todos os seus pesadelos acerca da autoridade.
A mais trágica ironia da história do passado século é que o registo de governos que se afirmaram marxistas mostra que Marx se enganou e que os “pesadelos acerca da autoridade” de Bakunine eram tristemente proféticos. A solução do próprio Bakunine para o problema da autoridade teria também indubitavelmente dado para o torto; mas quando sugere que alguém que defender perspectivas como a de Marx e dos seus seguidores “nada sabe acerca da natureza humana”, é difícil discordar. Tão-pouco foi o erro de Marx acerca da natureza humana uma aberração menor. Trinta anos antes, numa das suas célebres “Teses sobre Feuerbach” (VI), Marx escrevera:
... a essência humana não é uma abstracção inerente a cada indivíduo. Na sua realidade é o conjunto das relações sociais.
Segue-se desta crença que se se pode mudar totalmente o “conjunto das relações sociais”, pode-se mudar totalmente a natureza humana. Esta afirmação é de importância nuclear para o marxismo e para o pensamento marxista (com “m” minúsculo) em geral.
A esquerda precisa de um novo paradigma. O colapso do comunismo e o abandono do objectivo socialista tradicional de propriedade nacional dos meios de produção, por parte dos partidos social-democratas, privou a esquerda dos objectivos que acalentou ao longo dos dois séculos em que se formou e cresceu para uma posição de grande poder político e influência intelectual. Mas essa não é a única razão por que a esquerda precisa de um novo paradigma. O movimento sindical tem sido a força motriz e tesouro da esquerda em muitos países. O que os capitalistas não conseguiram fazer em um século de medidas repressivas contra os líderes sindicais, a Organização Mundial do Comércio, entusiasticamente apoiada pelos governos social-democratas de todo o mundo, faz por eles. Quando se remove as restrições à importação, os sindicatos nacionais são enfraquecidos. Hoje, quando os trabalhadores de países com salários mais elevados exigem melhores condições, os patrões podem ameaçar fechar a fábrica e importar os bens da China ou de qualquer outro país onde os salários são baixos e os sindicalistas não lhes causarão problemas. A única maneira de os sindicatos manterem a sua influência seria organizarem-se internacionalmente; mas quando as discrepâncias entre os níveis de vida dos trabalhadores são tão grandes como hoje são entre, digamos, a Europa e a China, os interesses comuns para o fazer estão ausentes. Ninguém gosta de ver o seu nível de vida cair, mas é improvável que os interesses de um trabalhador alemão em manter as prestações de um novo carro suscitem muita simpatia aos trabalhadores chineses que esperam poder pagar cuidados de saúde e educação adequados aos seus filhos.
Não tenho respostas para o enfraquecimento do movimento sindical, nem para o problema que coloca aos partidos políticos que têm obtido muito da sua força a partir desse movimento. Aqui foco-me não tanto na esquerda como força politicamente organizada mas na esquerda como corpo alargado de pensamentos, um espectro de ideias acerca de se alcançar uma sociedade melhor. A esquerda, nesse sentido, precisa urgentemente de novas ideias e novas abordagens. Quero sugerir que uma fonte de novas ideias que podia revitalizar a esquerda é uma abordagem ao comportamento social, político e económico humano firmemente baseado numa compreensão moderna da natureza humana. É tempo de a esquerda levar a sério o facto de que somos animais que evoluíram e que trazemos os indícios da nossa herança, não só na nossa anatomia e no nosso ADN, mas também no nosso comportamento. Por outras palavras, é tempo de desenvolver uma esquerda darwinista.
Poderá a esquerda substituir Marx por Darwin e continuar a ser esquerda? Para responder a esta questão temos de responder a outra: o que é essencial para a esquerda? Permita-se-me responder a esta questão de um modo mais pessoal. No ano passado concluí um documentário televisivo e um livro acerca de Henry Spira. Esse nome nada significará para quase toda a gente, mas Spira é a pessoa mais notável com quem tive o privilégio de trabalhar. Quando tinha doze anos, a sua família vivia no Panamá. O pai geria uma pequena loja de roupas, que não estava a dar resultado, e para poupar dinheiro a família aceitou a oferta de um amigo rico para se alojarem em alguns quartos da sua casa. A casa era uma mansão que ocupava um quarteirão inteiro da cidade. Um dia, dois homens que trabalhavam para o proprietário perguntaram a Henry se queria ir com eles enquanto faziam a cobrança das rendas. Foi com eles e viu em primeira mão como era financiada a luxuriosa existência do benfeitor do seu pai. Eles entravam nos casebres onde as pessoas pobres eram ameaçadas pelos cobradores de rendas armados. Na altura, Henry não fazia ideia do que fosse “a esquerda”, mas desse dia em diante fez parte dela. Mais tarde Spira foi viver para os Estados Unidos, onde se tornou trotskista, trabalhou na marinha mercante, entrou para a lista negra na era McCarthy e depois de recuperar o direito a trabalhar em navios, tornou-se uma figura central num grupo reformista que desafiou os patrões corruptos do Sindicato Nacional da Marinha. Em 1956 foi para o sul para apoiar os negros que boicotavam os autocarros locais porque queriam o direito a sentar-se nos mesmos lugares que os brancos. Quando Fidel Castro derrubou a ditadura de Batista, Spira foi para Cuba ver o processo de reforma agrária em primeira mão e ao regressar aos Estados Unidos tentou mobilizar apoio contra as tentativas da CIA em derrubar Castro. Abandonou os trotskistas porque estes tinham perdido o contacto com a realidade e ensinou miúdos do gueto no sistema de ensino público de Nova Iorque. Como se não bastasse para uma vida, em 1973 Spira leu um ensaio meu intitulado “Libertação Animal” e decidiu que havia outro grupo de seres explorados que precisavam da sua ajuda. Subsequentemente, ao longo dos últimos vinte anos, Spira tornou-se o mais eficaz activista do movimento de direitos animais norte-americano.
Spira tem um talento para formular as coisas de modo directo. Quando lhe perguntei por que razão passou mais de meio século a trabalhar para as causas que mencionei, respondeu simplesmente que está do lado dos fracos e não dos poderosos, dos oprimidos e não dos opressores, dos dominados e não dos dominadores. E fala na enorme quantidade de dor e sofrimento que existe no nosso universo e no seu desejo de fazer algo para o reduzir. Penso que a esquerda tem sobretudo a ver com isto. Há muitas maneiras de estar na esquerda, e a de Spira é apenas uma delas, mas o que o motiva é essencial para qualquer esquerda genuína. Se encolhemos os ombros perante o sofrimento evitável dos fracos e dos pobres, dos que são explorados e espoliados, ou que simplesmente não têm o que baste para manter um nível decente de vida, não somos da esquerda. Se afirmamos que isso é apenas a maneira como o mundo é, sempre será e nada podemos fazer quanto a isso, não fazemos parte da esquerda. A esquerda quer fazer alguma coisa relativamente a esta situação.
Nesta fase podia entrar numa longa discussão acerca da base filosófica de uma sociedade mais igualitária a que a esquerda devia aspirar. Mas publicou-se acerca deste tópico livros suficientes para encher uma biblioteca pública de média dimensão, e não quero fazer acrescentos a essa bibliografia agora. Basta dizer que há muitas ideias diferentes de igualdade compatíveis com a imagem geral de esquerda que esboço aqui. A minha própria posição ética é utilitarista e o imperativo de reduzir o sofrimento brota directamente dessa posição. Embora como utilitarista não valorize a igualdade por si, estou bastante ciente do princípio de diminuição da utilidade marginal, que nos diz que enquanto uma dada soma de dinheiro, digamos, 100 libras, pouca diferença faz para a utilidade de alguém que já tem muito, pode fazer uma diferença enorme para a utilidade de alguém que tem muito pouco. Num mundo em que as 400 pessoas mais ricas têm uma riqueza líquida combinada superior à de 45 por cento da população mundial no limite inferior — cerca de 2,3 biliões de pessoas — e mais de um bilião de pessoas vive com menos de um dólar por dia, aquele princípio dá razões suficientes para nos encorajar a trabalhar no sentido de uma distribuição mais equilibrada dos recursos.
O erro compreensível mas infeliz da esquerda relativamente ao pensamento darwinista tem sido o de aceitar os pressupostos da direita, a começar pela ideia de que a luta darwinista pela existência corresponde à visão da natureza sugerida pela expressão memorável (e pré-darwinista) de Tennyson: “natureza de dentes e garras vermelha”. Desta perspectiva, parecia perfeitamente óbvio que se o darwinismo se aplica ao comportamento social humano, então de certa maneira um mercado competitivo justifica-se ou mostra-se “natural” ou inevitável.
Não se pode culpar a esquerda por ver a luta darwinista pela existência nestes termos grosseiros. Até à década de 1960, os próprios teorizadores evolucionistas não prestaram atenção ao papel que a cooperação pode desempenhar no melhoramento das possibilidades de sobrevivência e êxito reprodutivo de um organismo. John Maynard Smith afirmou que isto foi “em geral ignorado” até à década de 1960. Pelo que o facto de o darwinismo do século XIX agradar mais à direita do que à esquerda deve-se, pelo menos em parte, às limitações do pensamento darwinista daquele período.
Houve uma excepção notável à afirmação de que a esquerda aceitou a perspectiva “natureza de dentes e garras vermelha” sobre a luta pela existência. O geógrafo, naturalista e anarco-comunista Peter Kropotkin argumentou no seu livro Mutual Aid que os darwinistas (embora nem sempre o próprio Darwin) tinham ignorado a cooperação entre animais da mesma espécie como factor na evolução. Kropotkin antecipou assim este aspecto do darwinismo moderno. Não obstante, perdeu-se ao tentar explicar exactamente como a ajuda mútua podia funcionar na evolução, uma vez que não viu claramente que para um darwinista é um problema pressupor que os indivíduos se comportam altruistamente a favor de um grupo mais vasto. Pior, visto que durante cinquenta anos depois de Kropotkin ter escrito Mutual Aid, muitos teorizadores evolucionistas respeitados cometeram o mesmo erro. Kropotkin baseou-se no seu estudo sobre a importância da cooperação em animais e seres humanos para argumentar que os últimos são naturalmente cooperativos. O crime e violência que vemos nas sociedades humanas, argumentou Kropotkin, resultam dos governos, que estabelecem a desigualdade. Os seres humanos não precisam de governos e cooperariam mais bem-sucedidamente sem eles. Embora Kropotkin tenha tido bastantes leitores, as suas conclusões anarquistas separavam-no da esquerda convencional, incluindo, evidentemente, os marxistas.
Desde o próprio Marx que os marxistas em geral têm mostrado entusiasmo pela explicação que Darwin dá da origem das espécies, desde que as suas implicações para os seres humanos se limitem à anatomia e à fisiologia. Visto que a alternativa à teoria da evolução era a explicação cristã da criação divina, a hipótese arrojada de Darwin foi aproveitada como meio de quebrar a influência do “ópio das massas”. Em 1862 Marx escreveu ao socialista alemão Ferdinand Lassalle, dizendo que:
O livro de Darwin é muito importante e serve-me de base científico-natural para a luta de classes na história. Tem de se suportar o grosseiro método inglês de desenvolvimento, evidentemente. Apesar de todas as imperfeições, não só se dá aqui pela primeira vez o golpe mortal na “teleologia” nas ciências, como se explica empiricamente o seu significado racional...
Marx, no entanto, consistente com a sua teoria materialista da história, pensou também que o trabalho de Darwin era em si produto da sociedade burguesa:
É impressionante como Darwin reconhece entre os animais e plantas a sua sociedade inglesa com a sua divisão do trabalho, competição, abertura de novos mercados, “invenções” e a malthusiana “luta pela existência”.
Friedrich Engels tinha um entusiasmo particular por Darwin. No discurso que pronunciou junto à sepultura de Marx, Engels prestou a Darwin o supremo elogio de comparar a descoberta da lei do desenvolvimento humano por Marx com a descoberta da “lei do desenvolvimento da natureza orgânica” por Darwin. Escreveu mesmo um artigo publicado postumamente com o título “O papel Desempenhado pelo Trabalho na Transição do Hominóide não Humano para o Homem”, que procura misturar Darwin e Marx. O artigo revela, contudo, que apesar de todo o seu entusiasmo Engels não compreendeu adequadamente Darwin: porquanto pensava que as características adquiridas podiam ser herdadas pelas gerações futuras, o modo como entendia a evolução era lamarckista e não darwinista. Décadas depois, o apoio ingénuo de Engels à transmissão de características adquiridas teve consequências trágicas quando foi usado pelos lamarckistas soviéticos para mostrar que a sua posição era consistente com o marxismo e o materialismo dialéctico. Isto preparou o terreno para a ascensão à fama, com o apoio de Estaline, do pseudocientista T. D. Lysenko, que afirmou ter tornado a agricultura soviética mais produtiva pelo uso de ideias lamarckistas, e para a rejeição, aprisionamento e homicídio de muitos dos principais geneticistas da União Soviética. Sob a influência de Lysenko, a agronomia soviética seguiu também o beco sem saída lamarckista, o que seguramente não contribuiu para melhorar o estado precário da agricultura soviética.
Por muito grave que tenha sido o lapso lamarckista de Engels, é um erro menos fundamental do que a sua ideia de que Darwin fez à história natural aquilo que Marx fez à história humana. Nessa caracterização fácil esconde-se a noção de que a evolução darwinista pára no amanhecer da história humana, e que as forças materialistas da história assumem o controlo. Tem de se examinar mais detalhadamente essa ideia.
Eis a própria afirmação clássica da sua teoria materialista da história, por Marx:
O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, político e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser mas, pelo contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência.
Por “modo de produção da vida material” Marx entende o modo como as pessoas produzem as coisas que lhes satisfazem as necessidades — através da caça e da recolecção, do cultivo, do uso do vapor para conduzir máquinas. O modo de produção, argumentou, dá origem a um conjunto particular de relações económicas, como as do senhor e do servo, ou do capitalista e do trabalhador, e esta base económica determina as sobrestruturas jurídicas e políticas, que formam a nossa consciência.
A teoria materialista da história implica que não há natureza humana fixa. Esta muda com cada mudança no modo de produção. A natureza humana mudou já no passado — entre o comunismo primitivo e o feudalismo, por exemplo, ou entre o feudalismo e o capitalismo — e pode mudar novamente no futuro. Numa forma menos precisa, esta ideia remonta a muito antes de Marx. No seu Discurso sobre a Origem da Desigualdade, Rousseau apresentou dramaticamente a ideia de que a introdução da propriedade privada mudou tudo:
O primeiro homem que, tendo delimitado uma parcela de terra, se lembrou de dizer “Isto é meu”, e encontrou pessoas suficientemente ingénuas para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. De quantos crimes, guerras e homicídios, de quantos horrores e infortúnios não poderia alguém ter salvo a humanidade, levantando arraial, ou tapando o fosso e gritando para os companheiros: “Livrem-se de dar ouvidos a este impostor; estarão perdidos se alguma vez esquecerem que os frutos da terra pertencem a todos e a própria terra a ninguém”.
A quem vê uma continuidade entre os seres humanos e os nossos ancestrais não humanos, parece implausível que o darwinismo nos dê as leis da evolução para a história natural mas pare no amanhecer da história humana. Na sua Dialéctica da Natureza, Engels escreve:
O mais que o animal pode alcançar é recolher; o homem produz, prepara, no sentido mais amplo das palavras, os meios da vida que, sem ele, a natureza não teria produzido. Isto torna impossível qualquer transferência imediata das leis da vida nas sociedades animais para as humanas.
A distinção que Engels faz entre os humanos e os animais é duvidosa — as formigas cultivadoras de fungos, por exemplo, cultivam e comem fungos especializados que não teriam existido sem a sua actividade. Mas, mesmo se fosse válida, por que haveria a diferença entre recolher e produzir ser tão importante a ponto de suspender as leis da evolução? Por que não estariam também as capacidades produtivas sujeitas às pressões evolutivas? Engels deixa estas questões sem resposta.