Na história recente da estética, poucos foram os ensaios tão influentes como os três escritos nos anos cinquenta por Paul Ziff, Morris Weitz e W. E. Kennick.1 Apesar de os seus atractivos, teses e argumentos variarem em muitos aspectos, todos chegaram a uma conclusão wittgensteiniana comum: a tarefa filosófica de refinar uma definição unívoca e analítica de arte2 a partir das imperfeições do uso comum é fundamentalmente mal orientada e fútil. Estes cépticos tiveram uma notável influência sobre Monroe Beardsley, que fez concessões ao cepticismo sem que, para dizer a verdade, alguma vez se tenha tornado num dos seus vigorosos paladinos. Em Aesthetics, Beardsley diz acerca da tarefa de definir arte que “o uso é tão variável que esta tarefa seria muito difícil, talvez mesmo impossível”.3 Na sua investigação, Beardsley opta por explicar a expressão artística “objecto estético”, em vez de definir a expressão, filosoficamente incómoda, “obra de arte”.
Mais recentemente, o cepticismo semântico em estética sofreu um declínio, em grande medida devido aos ataques de George Dickie, que se tornou conhecido pelas suas tentativas reiteradas de dar uma definição institucional de arte capaz de responder às melhores objecções dos cépticos. Mas só recentemente Monroe Beardsley inverteu aquilo que considera actualmente ser a sua “perversa”4 e, devo acrescentar, prolongada hesitação em oferecer uma definição de arte ou de obra de arte.
“Uma obra de arte é ou uma combinação de condições destinadas a serem capazes de proporcionar uma experiência de carácter marcadamente estético, ou (incidentalmente) uma combinação pertencente a uma classe ou um tipo de combinações tipicamente destinados a ter esta capacidade”.5
Aqui, Beardsley tenta definir obra de arte de uma forma essencialmente semelhante à sua definição de valor estético, em termos da função psicológica do objecto ou acontecimento e, mais exactamente, em termos da noção de experiência estética.
Neste ensaio, não reclamo nem argumento a favor de uma forma geral de cepticismo em estética. Mas espero recuperar algum terreno para os cépticos semânticos, contra as definições psicológicas de arte propostas por Beardsley e outros. Defendo que, se os argumentos dos primeiros cépticos semânticos tinham alguma validade, eram bons argumentos contra o programa filosófico de definir a classe das obras de arte em termos de função psicológica.
De certa forma, o debate em torno da legitimidade da nova definição de arte de Beardsley já ocorreu. Os argumentos a favor e contra a noção de experiência estética, noção central nas definições, quer de obra de arte quer de objecto estético, de Beardsley, têm sido exaustivamente testados ao longo dos últimos vinte e cinco anos. Pouco se ganha, penso, em investigar as bem conhecidas objecções e contra-argumentos ao seu entendimento de “uma experiência com carácter marcadamente estético”. Além de ser intensa, a disputa foi frustrantemente não decisiva,6 por razões que espero que a minha argumentação acabe por tornar finalmente claras.
Ao invés de entrar na querela sobre os pormenores da noção de experiência estética de Beardsley, vou considerar as teses de outro proponente de definições psicológicas de arte, George Schlesinger. Existem razões para este desvio. A perspectiva de Schlesinger, defendida em “Aesthetic Experience and the Definition of Art”,7 é, em muitos aspectos, idêntica à de Beardsley. Não é de estranhar que, no post-scriptum que introduz a nova edição de Aesthetics, Beardsley tenha em grande medida sancionado, com algumas reservas, a posição de Schlesinger.8 No entanto, a definição psicológica de arte de Schlesinger é muito mais simples que a de Beardsley, uma vez que, do seu ponto de vista, é inútil deixarmo-nos enredar na complexa fenomenologia da experiência estética. Ele considera que podemos evitar esse terreno pantanoso e, ainda assim, construir uma definição psicológica de arte. Dado que os meus argumentos não estão direccionados contra os pormenores fenomenológicos específicos da definição de Beardsley ou de qualquer outra definição psicológica de arte, a simplicidade do ponto de vista de Schlesinger é apropriada à minha estratégia argumentativa. No entanto, a formulação de Schlesinger tem as suas complexidades específicas, que são merecedoras de atenção. Assim, as minhas observações irão dividir-se entre, por um lado, a clarificação e críticas menores à definição psicológica específica proposta por Schlesinger e, por outro, uma crítica mais aprofundada às definições psicológicas em sentido mais geral.
O principal pressuposto de qualquer definição psicológica de arte é que existe uma certa classe de experiências, que podemos rotular de “experiência estética”, cujos membros estão causalmente relacionados com coisas que são obras de arte. Em última instância, espero mostrar que, mesmo que concedamos este pressuposto principal, por muito dúbio que possa ser, nenhum apelo à experiência estética pode justificar um conjunto de juízos estéticos (ou seja, identificações de obras de arte) de preferência a uma infinidade de outros conjuntos incompatíveis. Deste modo, nenhuma definição psicológica de arte pode ser considerada satisfatória. Os meus argumentos devem muito às Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, e ao “argumento” da linguagem privada, mas nenhuma das minhas teses assenta directamente em teses ou argumentos contidos nas Investigações. Por esta razão, não faço apelo directo à autoridade de Wittgenstein ou da sua obra e espero que nada do que afirmar neste artigo seja interpretado como um contribuito para o estudo de Wittgenstein.9
Schlesinger inicia a sua exposição de uma teoria psicológica de arte com sugestões metateóricas sobre semântica e definições. Depois de avaliar as razões preliminares para se suspeitar da existência de uma essência unificadora do conjunto de todos os objectos que são genuinamente obras de arte, Schlesinger faz o levantamento das várias tentativas contemporâneas de construção de uma definição de arte. Não pretendo reconsiderar as suas críticas a estes pontos de vista, excepto para sublinhar que ele recusa a conhecida definição institucional de arte de George Dickie, com o seguinte fundamento:
“Não questiono a tese de Dickie de que as suas condições são simultaneamente suficientes e necessárias. Parto do princípio de que são. Mesmo assim, não podemos escapar a uma curiosa insatisfação provocada pela definição. Penso que essa insatisfação advém de um sentimento de que a sua explicação não serve de muito. Esperamos de uma boa descrição de arte um esclarecimento sobre a natureza da arte. Mas a descrição de Dickie diz-nos muito pouco acerca do que a arte realmente é”. (pp. 169–179)
Percebemos desde já o que está em causa no projecto da estética de fornecer uma definição de arte. Compete a uma definição revelar a verdadeira natureza, a essência, as propriedades comuns contidas sob as aparências de todas as coisas que são obras de arte, e não ocultas sob coisa alguma que não seja uma obra de arte. As águas da essencialidade são profundas; temos de acreditar que as definições nos permitem sondar as suas profundezas.
Estamos, contudo, rodeados por definições. Aquilo que nos faz falta é um teste de adequação ou correcção, que nos permita escolher entre definições concorrentes de arte. Schlesinger sugere o seguinte:
“Não é despropositado esperar de uma definição adequada de obra de arte que qualquer pessoa que esteja na sua posse se encontre suficientemente equipada para, por exemplo, deambulando pelo deserto e deparando com várias dezenas de obras-primas de pintura, escultura, livros de literatura e poesia, gravações de música, seja capaz de conjecturar, depois de estudar esses objectos, que pelo menos alguns deles são obras de arte”. (p. 170)10
Chamo a esta espécie de teste de adequação de uma definição “o teste do armazém”, por deferência a W. E. Kennick, que foi quem primeiro o sugeriu, num artigo intitulado “Does Traditional Aesthetics Rest on a Mistake?”11 No exemplo de Kennick, devemos imaginar-nos deambulando por um armazém atulhado, desorganizado e repleto de objectos (e talvez também de acontecimentos). Ele argumenta que, se estivermos apropriadamente equipados com o conhecimento do que significa uma coisa ser uma obra de arte12, poderemos organizar correctamente os objectos contidos nesse armazém em dois conjuntos: o conjunto de entidades que cabem na extensão do termo e o seu conjunto complementar. Uma pessoa apropriadamente “equipada” com a definição de arte, ou seja, que a conheça, poderá usar o predicado “é uma obra de arte” para descrever entidades novas ou desconhecidas de uma forma suficientemente correcta. Em resumo, a definição permite a uma pessoa nomear correctamente ou escolher as obras de arte genuínas existentes no seu mundo.
Consideremos agora a definição de arte de Schlesinger. É bastante simples:
“Uma obra de arte é um artefacto que, em condições padronizadas, proporciona aos seus percipientes uma experiência estética”. (p. 175)
Por outras palavras, aquilo que torna algo numa obra de arte não são necessariamente as propriedades internas ou intrínsecas do objecto. Para ser uma obra de arte, determinado objecto tem de estabelecer a relação apropriada com o percipiente13. O objecto tem de exercer no sujeito o efeito psicológico exactamente adequado; tem de causar uma experiência de carácter “estético”, o que quer que isso seja. E, se presumirmos que o objecto, o artefacto, foi concebido para ter esse efeito psicológico, talvez também possamos supor que o objecto tem uma função ou finalidade psicológica.
A definição de Schlesinger, apesar de toda a sua simplicidade, tem alguns pressupostos controversos, que devem ser mencionados, apesar de não tencionar deter-me muito neles. Em primeiro lugar, será de objectar ao uso equívoco dos termos “arte” e “obra de arte”? Ou, para apresentar a mesma questão de outra maneira, será que, ao definir “obra de arte”, ele também definiu “arte”? Penso que não. O termo “arte” é frequentemente usado para referir o produto de determinado processo criativo, mas nem sempre. Por vezes, “arte” refere-se aos processos, às competências, às práticas e às instituições que rodeiam as obras de arte. Certamente que uma definição clara de obra de arte nos ajudará muito a definir a noção, mais abstracta e esquiva, de arte. Mas penso que é igualmente certo que estes dois conceitos não são idêncticos. Tomarei como seu principal objectivo uma clarificação do conceito de obra de arte.
Em segundo lugar, exigir que uma obra de arte seja um artefacto não é um acrescento inócuo a esta definição psicológica. Apesar da conotação do termo, nem tudo aquilo a que chamamos, tipicamente, obra de arte é também um artefacto. Referimo-nos a espectáculos musicais, teatrais e de bailado como “obras de arte”, apesar de, como é óbvio, não se tratar de artefactos. Concedo que esta condição pode ser desejável para excluir da classe das obras de arte os pores-do-sol e outros acontecimentos e entidades “naturais”, que não são produzidos, orquestrados ou apresentados através de acções humanas. Mas a artefactualidade é uma restrição, ou demasiadamente forte, ou demasiadamente enganadora.
Finalmente, Schlesinger normaliza a sua definição introduzindo a noção de “condições padronizadas de percepção”. Mas o que se entende por isto? Falar de condições padronizadas de percepção de um artefacto — de qualquer artefacto — é excessivamente vago. John Austin deitou esse mito por terra14. Podemos, contudo, ter alguma esperança de formular uma explicação das condições padronizadas de percepcção de um objecto como obra de arte. Tal teoria teria de incluir não apenas as exigências especiais feitas a um observador por parte de diferentes meios e formas artísticas, mas também as exigências peculiares, e talvez novas exigências, impostas ao sujeito por parte de obras de arte particulares. Não é tarefa fácil. A noção de condições padronizadas de percepção da arte introduz um emaranhado de complicações na discussão das definições psicológicas de arte, um emaranhado que pretendo evitar. Gostaria, no entanto, de fazer um pequeno reparo: tal teoria, a ser tentada, pode evoluir rapidamente para uma teoria avançada da atitude estética do tipo da proposta por Kant e outros, na medida em que uma análise das condições padronizadas de percepção pode impor limitações ao estado apropriado do percepiente ou sujeito.
Gostaria de avançar para aspectos mais importantes e centrais da definição psicológica de arte de Schlesinger. Para que a definição psicológica de arte de Schlesinger forneça um “esclarecimento sobre a natureza da arte”, é razoável esperar que lance alguma luz sobre a noção de experiência estética. Surpreendentemente, porém, ele recusa fornecer uma caracterização ou definição de experiência estética. Qualquer tentativa desse género, diz, constitui um exercício fútil:
“Não farei mais tentativas para descrever a experiência estética com o objectivo de as criticar. Não é necessário. Mesmo sem examinar qualquer dessas tentativas, deve ser óbvio, à partida, que nenhum esforço para definir ou descrever a experiência estética pode ser bem-sucedido. Tentar definir experiência estética é tão inútil como tentar definir qualquer outra experiência vivida. Uma pessoa que não tenha a mais pequena ideia do que é ter uma dada experiência não pode adquiri-la através das palavras, por muito abundantes que elas sejam. A pessoa tem de ser submetida à experiência, por forma a ter a noção do que se sente, e só então terá compreendido”. (p. 172)
Considerarei daqui a pouco a forma como Schlesinger pensa que a sua definição de arte fornece um esclarecimento sobre a natureza da arte sem definir a experiência estética. Mas primeiro gostaria de comentar a sua dúbia tese de que nenhuma experiência estética pode ser “descrita ou definida”.
Para ser exacto, Schlesinger argumenta que não é possível apresentar uma definição bem-sucedida de experiência estética. Mas então teremos de perguntar o que é uma definição bem-sucedida de experiência estética. E por que motivo é fútil construí-la. A resposta de Schlesinger seria possivelmente que “a definição de uma experiência” devia compensar, se fosse possível, “uma pessoa que não tivesse a mais pequena ideia do que é ter uma dada experiência”. De uma maneira geral, uma definição deve fornecer-nos uma “ideia” daquilo a que a coisa definida “se assemelha”. Mas este é um requisito de adequação demasiadamente fraco para uma definição. Esta condição para uma definição bem-sucedida parece ser facilmente satisfeita por definições bastante inexactas e, em geral, pouco claras. Há sempre semelhanças. Por consequência, atendendo à proximidade, de facto à inevitabilidade, de objectos que nos são familiares e que estão numa certa relação de semelhança com o objecto desconhecido, é fácil munir o leitor com uma “ideia” daquilo a que uma coisa desconhecida se assemelha, por mais desconhecida que seja. Certamente que posso descrever a um médico uma certa dor de forma suficientemente clara, tendo em vista o objectivo de o médico me receitar o medicamernto adequado. E certamente que o solícito médico não necessita de ter experiência da mesma dor, para poder adquirir uma ideia do que é ter essa dor. E, mesmo que o leitor seja apenas um aprendiz no que toca à apreciação de vinhos, não se deve afigurar muito difícil dar-lhe uma certa ideia do sabor de um vinho excepcionalmente bom, “apenas através das palavras”. Nem deve ser demasiadamente difícil dar-lhe uma ideia do prazer que é ouvir Bach, Beethoven e Brahms, mesmo que o leitor nunca tenha ouvido senão a Ágata, os Anjos e as Antilook. Em resumo, a semelhança é uma relação tão comum, que mesmo a pessoa mais inexperiente tem experiência suficiente para constituir uma enorme diversidade de analogias para experiências até então desconhecidas. E, estritamente falando, isso basta para que eu possa dar-lhe uma ideia do que é a minha experiência. Se tomarmos Schlesinger à letra, a sua tese é certamente falsa.
Temos, pois, de procurar uma interpretação mais caridosa. Talvez Schlesinger não esteja a defender que as palavras, as descrições e as definições não podem fornecer-nos a mais pequena ideia do que é uma experiência que nos é estranha15. Talvez a sua tese seja a de que nem todas as palavras do mundo, nem seja que quantidade for de descrições ou definições, podem proporcionar-nos uma experiência que não tenhamos tido. Isto é sugerido pela sua afirmação de que uma pessoa “tem de ser submetida à experiência, por forma a ter a noção daquilo em que esta consiste [...]”. E parece-me que isto está próximo da verdade — mas talvez esteja excessivamente próximo; cheira fortemente a tautologia: “temos de ter uma certa experiência para podermos ter essa experiência”. Uma vez mais, a caridade sugere que a interpretação tautológica da sua tese não é a que Schlesinger visava.
É possível uma terceira interpretação, nem tautológica nem obviamente falsa, apesar de também não ser obviamente verdadeira. O teste do armazém é aquilo que Schlesinger consideraria um teste de adequação para uma definição de arte. Penso que gostaria de aplicar o mesmo teste de adequação às definições de experiência estética. Neste sentido, a posição de Schlesinger pode ser entendida como se segue: nenhuma descrição, nenhuma definição, nenhum conjunto de palavras, por si, podem fornecer à pessoa não submetida à própria experiência uma compreensão dessa experiência suficiente para lhe permitir passar no teste do armazém, no que a essa experiência diz respeito. Assim, por exemplo, apesar de um cego congénito poder ter uma ideia da cor, essa ideia seria demasiadamente confusa para lhe permitir distinguir, a partir da sua experiência, e uma vez curada a cegueira, as sensações de vermelho das sensações de verde das sensações de azul, etc. E, apesar de eu considerar esta interpretação da posição de Schlesinger a mais plausível, não há qualquer boa razão para acreditar nela. Quando muito, a questão de saber até que ponto um cego congénito, preparado apenas através das palavras, consegue definir correctamente várias cores depois de recuperar a visão, só pode ser decidida empiricamente. Como é, quando muito, uma questão empírica saber até que ponto um completo ignorante, preparado apenas através das palavras, é capaz de identificar correctamente obras de arte, ou mesmo fornecer avaliações plausíveis sobre arte.
Embora as razões que apresenta para evitar definições de experiência estética não sejam convincentes, Schlesinger considera que uma definição psicológica de arte adequada requer apenas aquilo a que chama uma “quase-definição” de experiência estética, ou aquilo a que outros chamaram “definição ostensiva”.
“Obtém-se uma quase-definição de um género de experiências quando se parte de alguns exemplos ilustrativos de espécies de experiências pertencentes ao género e, a seguir, se define o género como o conjunto de espécies de experiências essencialmente similares aos membros da classe amostra”.
O seu exemplo principal é a quase-definição de experiência auditiva:
“Consideremos uma pessoa que nada ouve. Podemos pressupor que, apesar de completamente surda, é possível reproduzir nela as várias sensações auditivas que se podem ter através da estimulação directa da parte apropriada do seu cérebro. Suponhamos que, aos doze anos, antes dos quais não teve qualquer experiência auditiva, estimulamos o seu cérebro para que tenha a sensação de ouvir certas notas de violino, outras de clarinete e ainda outras de piano. Informamo-la de que as experiências que acabou de ter se chamam experiências auditivas. Depois, continuamos a estimular-lhe o cérebro, produzindo a sensação de ouvir um som S, que difere em intensidade, frequência e timbre de qualquer dos outros sons anteriormente ouvidos. A audição de S seria para ela, evidentemente, um tipo inteiramente novo de experiência. No entanto, apesar da sua total falta de contacto anterior, a pessoa chegaria por si à conclusão de que estava a ter outra experiência auditiva. Assim, as experiências auditivas, embora muito diferentes em espécie, pertencem, no entanto, ao mesmo género de experiências”. (p. 173)
A partir deste convincente caso hipotético, Schlesinger generaliza para uma quase-definição de experiência estética. Pede-nos para imaginarmos como seria expor um completo ignorante a uma vasta amostragem de várias espécies de obras de arte não musicais. Ao fazermos isso, provocamos uma grande diversidade de experiências nessa pessoa, ao mesmo tempo que a informamos de que todas essas experiências são instâncias de experiências estéticas. Depois, Schlesinger imagina o nosso aprendiz a ser exposto, sem aviso prévio, a uma “execução musical de nível superior”. Diz ele:
“Estou bastante convicto de que esta pessoa seria capaz de concluir, sem qualquer auxílio, que o prazer que o concerto lhe proporciona está fortemente relacionado com o prazer que lhe proporcionaram as pinturas, as esculturas, os romances, os poemas e as peças de teatro. E, uma vez que já lhe tinha sido dada uma quase-definição de prazer estético, também seria capaz de reconhecer que o prazer que estava a ter naquela ocasião também era prazer estético”. (pp. 173–174)
Esta inocente especulação empírica adquire razoável plausibilidade devido à óbvia semelhança com o modo como aprendemos a usar os termos “arte” e “obra de arte”. Claro que existem muitas maneiras de aprender a usar estes termos, mas julgo que o procedimento mais comum é ensinar e aprender por exemplificação e ilustração. Em teoria, sei usar correctamente estes termos porque estive em contacto com uma grande diversidade de obras de arte e, de alguma forma, esse contacto condicionou correctamente a minha inclinação linguística futura, levando-me a só usar o termo “obra de arte” para me referir àquelas coisas propriamente assim chamadas. Schlesinger explica este “de alguma forma” introduzindo no enredo da história as experiências estéticas, em jeito de inflexão psicológica. A minha formação linguística condiciona-me a reconhecer e identificar os meus próprios estados psicológicos como estados de carácter estético ou não estético. E, porque também me ensinaram que o objecto da percepção, a causa externa de tal experiência, é uma obra de arte, sou capaz de, indirectamente, identificar artefactos e acontecimentos como obras de arte.
O acrescento da inflexão psicológica a esta história tem um importante benefício filosófico. Quando descobrimos que não há qualquer propriedade intrínseca comum a todas as coisas a que chamamos correctamente “arte” e “obras de arte”, a nossa competência linguística, exibida no uso desses termos genéricos, parece misteriosa. Esta seria a dificuldade com que nos confrontamos quando consideramos as propriedades internas ou não relacionais das obras de arte. As definições psicológicas, por outro lado, permitem que as propriedades internas das obras variem de forma indeterminada, desde que a função psicológica de qualquer obra de arte seja da espécie exigida16. As definições psicológicas de arte permitem aos teóricos da estética continuar a procurar a essência da arte e a explicar a nossa competência linguística para o uso dos termos “arte” e “obra de arte”, apesar da imprevisível diversidade que encontramos na arte do século XX.
Não obstante estes felizes resultados, estes estados psicológicos têm um defeito qualquer. Passo a considerar algumas objecções, em primeiro lugar objecções preliminares, e depois uma crítica de fundo.
Em primeiro lugar, é difícil evitar a impressão de que a definição de arte de Schlesinger é circular. Não será tão circular como o já clássico círculo da definição de Clive Bell, que é também uma definição psicológica, entre os termos “forma significante” e “emoção estética”? A forma significante, a propriedade comum a todas as obras de arte, define-a Bell como quaisquer formas em arte, “organizadas e combinadas de acordo com certas leis, desconhecidas e misteriosas”, que causem em nós uma emoção estética17. E define emoção estética como a emoção causada pela qualidade comum a todas as obras de arte, nomeadamente a forma significante18.
Schlesinger é rápido a prever e a rejeitar esta acusação (p. 175). E, estritamente falando, temos de admitir que não formulou um par circular de definições. Para que duas definições sejam definidas de forma rigorosamente circular, o definiendum da primeira definição tem de ocorrer no definiens da segunda, e o definiendum da segunda no definiens da primeira. Não tendo fornecido duas definições, Schlesinger não podia ter definido os dois termos de forma circular. A sua primeira definição, a definição de arte, inclui no definiens a noção de experiência estética. A experiência estética é, pois, quase-definida, apontando, por assim dizer, instâncias paradigmáticas da experiência estética. O facto de o método ou a técnica usados para dirigir a nossa atenção para estas experiências estéticas envolver uma obra de arte não torna as definições circulares. Encontramos uma certa forma de circularidade na explicação de Schlesinger, mas esta não reside na definição propriamente dita. Retornarei a este ponto mais tarde.
Em segundo lugar, a quase-definição de experiência estética só pode ser bem-sucedida na tarefa de definir a arte se de facto houver uma semelhança notória entre as experiências relacionadas causalmente com objectos que são genuinamente obras de arte. E esta semelhança tem de ser uma relação diferente da própria conexão causal com as obras de arte; tal sugestão reduziria verdadeiramente as definições à circularidade. Os opositores da definição psicológica de arte têm resistido, persistente e vigorosamente, a este pressuposto fundamental das definições psicológicas de arte.
Além do mais, dado que se apoia numa quase-definição de experiência estética, Schlesinger tem de pressupor a seguir que os utilizadores dos termos “arte”, “obra de arte” e “experiência estética” reconhecerão efectivamente a semelhança essencial entre as suas próprias experiências estéticas. Dado o procedimento de Schlesinger, é concebível que o nosso aprendiz, tendo sido exposto a uma vasta série de experiências estéticas exemplificativas sem conseguir reconhecer a semelhança essencial entre todas, também não consiga identificar adequadamente outras obras de arte. Em resumo, só quando as experiências causalmente relacionadas com obras de arte são essencialmente semelhantes, e só quando são reconhecidas como tal, poderá haver alguma esperança de se obter uma definição bem-sucedida de arte pela via indirecta da quase-definição de experiência estética.
Apesar de tudo, revelou-se filosoficamente frustrante resistir a este pressuposto fundamental das definições psicológicas de arte. A forma tradicional de atacar uma definição psicológica de arte é negar que exista uma experiência estética associada a obras de arte. O ataque assenta em duas formas de contra-exemplos: os críticos têm insistido em que há casos incontroversos de obras de arte em conexão com as quais não há qualquer experiência estética, ou que existem experiências que satisfazem a definição de experiência estética, mas que são causadas por algo que, nitidamente, não é uma obra de arte — contra-exemplos que procuram provar tanto a não necessidade como a não suficiência da experiência estética. Mas este debate enreda-se invariavelmente em querelas sobre quando e em que circunstâncias uma experiência é correctamente chamada “estética”.
A troca de argumentos entre Monroe Beardsley e Marshall Cohen é ilustrativa das frustrações provocadas por estes debates sobre a experiência estética. Marshall Cohen alega que:
“Certamente que a experiência de apanhar um metro superlotado ou de ser violentamente espancado têm, pelo menos, um grau de unidade tão grande como (e são mais seguramente atravessadas por uma qualidade individualizadora do que) a experiência de ouvir muitas sonatas ou suites sinfónicas, ou de ler muitos romances picarescos ou guiões teatrais”.19
Monroe Beardsley responde como se segue:
“Será que a experiência de apanhar um metro superlotado tem realmente unidade, ou é um amontoado de impressões discordantemente diversas e confusas, sem estrutura dramática nem desenvolvimento formal? Até num “guião dramático” o aparecimento e desaparecimento de personagens importantes estão bem mais inter-relacionados do que a chegada e partida dos passageiros do metropolitano. (Tenho de acrescentar que só confirmei esta impressão na semana passada, enquanto viajava na linha de metro Broadway, 7.ª Avenida.)”20
Esta guerra de introspecção e intuição não tem quaisquer perspectivas de resolução pacífica. Espero mostrar, entre outras coisas, por que motivo as definições psicológicas de arte são tão resistentes à crítica e por que motivo tendem a gerar tão intratáveis disputas.
A táctica que emprego na minha principal linha de crítica é muito diferente. Não nego que as nossas experiências podem ser caracterizadas como estéticas e não estéticas. Estou até disposto a aceitar que existe uma relação causal fiável entre as experiências a que chamamos “experiências estéticas” e os objectos a que chamamos “obras de arte”. Pretendo conceder o pressuposto fundamental dos que propõem definições psicológicas de arte. Vou ainda mais longe, concedendo que, durante um período longo, mas finito, o uso que eu e o leitor fazemos destes termos podem concordar completamente e que, por causa disso, podemos ter todas as razões para supor que dispomos de uma compreensão adequada do que é a experiência estética e uma definição adequada de arte. Mas pretendo argumentar que, mesmo depois de fazer todas estas concessões, não podemos considerar que uma definição psicológica de arte seja adequada.
Consideremos o tipo de caso imaginado por Schlesinger. Imagine-se que tenho a responsabilidade de ensinar a um aprendiz, a um desconhecedor absoluto, o que é uma obra de arte. Avanço indirectamente, expondo o aprendiz a uma vasta gama de experiências estéticas, através do expediente indirecto, e repetido, de o expor a um certo número de pinturas, execuções musicais, danças, esculturas, poemas e outros objectos e acontecimentos que estou convencido, e bem, de serem formas fiáveis de induzir uma experiência estética. Além do mais, suponhamos que vou ajudando o aprendiz, aconselhando-o a prestar atenção às suas próprias reacções psicológicas nestas ocasiões. Até posso, apesar dos protestos de Schlesinger, arriscar-me a descrever ao aprendiz aqueles aspectos da sua experiência aos quais ele deve estar especialmente atento. Posso dizer-lhe para reparar como a sua experiência tende, nessas ocasiões, a ser aprazível, consistente, a parecer una, coerente, completa, complexa e intensa — ou qualquer coisa do género. E suponhamos, finalmente, que o aprendiz reage positivamente às minhas instruções. Que descreve as suas reacções psicológicas a estes objectos da mesma maneira que eu. Que concorda que todos esses objectos causam experiências essencialmente similares e que agora sabe designá-las como “experiências estéticas”. Até pode satisfazer-me continuando, de forma independente, a identificar correctamente novas obras de arte.
Desta forma, apetrechei o aprendiz com a mais clara definição psicológica de arte de que sou capaz. Além disso, confirmei, para minha satisfação, que ele captou correctamente esta definição. Agora, quando o soltar no atulhado armazém do mundo, posso esperar que o aprendiz distinga correctamente, de entre os objectos que estão no armazém, o conjunto de todas as obras de arte do seu conjunto complementar? Em resumo, a minha definição passará no teste de adequação do armazém?
Bem, sim, se supusermos que o aprendiz vai continuar a dividir o conteúdo do armazém da forma que está convencido ser a correcta, que lhe parece consistente com tudo aquilo que aprendeu sobre a arte e as experiências estéticas, e totalmente consistente com a sua prática anterior. E, se a minha inclinação for dividir o conteúdo do armazém da mesma maneira, então sentir-me-ei certamente inclinado a dizer que ele distinguiu o conteúdo do armazém de maneira correcta. Mas, se a minha inclinação for dividir o conteúdo armazém de forma diferente, também me sentirei inclinado a dizer que ele dividiu os objectos do armazém de forma incorrecta. E estas são as duas respostas que me sentirei inclinado a dar, dependendo daquilo que o aprendiz fizer.
Mas aqui é que está o problema. Se eu disser que ele operou incorrectamente (afinal de contas, eu sou o professor) e ele insistir terminantemente que não, que fundamentos tenho eu para defender que foi ele que errou e não eu? O que torna o meu juízo correcto e o dele incorrecto?
Esta decisão deverá evidentemente ser tomada, não por nós, mas por uma definição, se for adequada. E, se eu definir a arte em termos da sua função psicológica, hei-de apelar ao carácter das nossas respectivas experiências. Se o aprendiz continuar a chamar obras de arte a dicionários e flocos de neve, aparas de borracha e saídas de emergência, uma coçadela ou um dedo decepado, eu direi que não compreendeu o que se pretende dizer com experiência estética, porque seguramente não pode ter tido uma genuína experiência estética associada à percepção destas coisas. Mas que fundamento tenho eu para insistir nisto? Suponhamos que digo que não pode ter tido experiências estéticas associadas a estes objectos porque, sejam quais forem as experiências que teve, o levaram a identificar como obras de arte coisas que manifestamente não o eram; nesse caso, comprometi-me com uma justificação circular dos meus juízos e as minhas práticas linguísticas, em detrimento dos dele. Justifiquei o meu uso do termo “obra de arte”, de preferência ao dele, apelando à autoridade das minhas sensibilidades estéticas. E justifiquei a autoridade das minhas sensibilidades estéticas apelando ao meu uso, presumivelmente correcto, do termo “obra de arte”.
E esta é justamente a circularidade que se esconde por detrás da definição psicológica de arte de Schlesinger, uma circularidade, não entre um par de definições, mas entre os fundamentos passíveis de justificar um par de definições, ou uma definição e uma quase-definição.
A circularidade das minhas justificações enfraquece a minha reinvindicação de autoridade. Mas talvez ainda mais importante é o facto de o aprendiz poder argumentar a favor da autoridade da sua prática e dos seus juízos, exactamente da mesma maneira que eu posso argumentar a favor da autoridade dos meus. Ele pode responder ao meu círculo vicioso com o seu, e tentar denunciar os meus juízos acerca de obras de arte e a minha sensibilidade estética com fundamentos exactamente análogos aos que uso para recusar os seus juízos e a sua sensibilidade. Ele pode argumentar que os meus juízos acerca de obras de arte se baseiam numa má compreensão da experiência estética. E pode argumentar que não devo estar a identificar correctamente as minhas experiências, porque me levaram a não identificar como tais aquilo que ele presume serem genuínas obras de arte.
Pode parecer que a inacessibilidade pública dos estados psicológicos do aprendiz é responsável pelo facto de as minhas justificações estarem encurraladas nesta circularidade. Isto é, dado que não posso aceder às suas experiências para as examinar, não tenho forma de determinar com segurança se os seus perversos juízos estéticos se baseiam em experiências estéticas genuínas21. Por isso, sou forçado a recorrer, em última análise, a justificações circulares.
Contudo, isto é um erro. Para se perceber por quê, imaginemos que eu tenho acesso directo ao carácter das experiências do aprendiz. Que posso partilhar directamente das suas experiências e compará-las com as minhas. Será que o meu recém-adquirido acesso privilegiado às suas reacções psicológicas e sensibilidades estéticas me confere autoridade para recusar os seus juízos estéticos, por serem confusos ou incorrectos?
Por que haveria de conferir? Por um lado, posso descobrir que, para minha grande surpresa, o aprendiz aplica o termo “obra de arte” a uma estranha colecção de objectos, mas com base em experiências estéticas genuínas. Quer dizer, posso descobrir que as experiências que o levaram a usar o termo “obra de arte” num sentido que anteriormente considerei incorrecto me levariam a usar o termo da mesma forma. Neste caso, se mantiver a definição psicológica de arte, terei de reconhecer que esta não tem maneira de impedir a possibilidade de um relativismo estético radical. Ou seja, dado que diferentes pessoas podem ter diferentes sensibilidades estéticas, então, de acordo com uma definição psicológica de arte, não posso dizer que aquilo que conta como obra de arte será necessariamente o mesmo para quaisquer duas pessoas.
Por outro lado, depois de examinar as experiências do aprendiz, posso descobrir que as sua sensibilidade estética não é diferente da minha, mas que, muito simplesmente, ele descreve como experiências estéticas algumas experiências que eu diria que são manifestamente não estéticas. Afirmarei então que, apesar da minha diligência como professor, ele não compreendeu correctamente a noção de experiência estética e, consequentemente, a noção derivada de arte.
Mas esta tese, ou acusação, não é diferente daquilo que tenho vindo a defender: que o aprendiz não compreendeu o conceito de experiência estética. Mas como posso justificar essa acusação? Mais exactamente, de que maneira ter acesso directo às suas experiências me autoriza a justificar os meus juízos linguísticos, as minhas inclinações ou práticas de experiências estéticas e obras de arte de um modo que era circular, mas deixou de ser? Se eu apelar para os juízos derivadamente “incorrectos” do aprendiz sobre as obras de arte para justificar a minha tese de que ele não compreendeu o conceito de experiência estética, então as minhas justificações ficam novamente envoltas em circularidade. Tenho, pois, de encontrar outros fundamentos para recusar os juízos do aprendiz acerca do que é uma experiência estética.
Talvez possa tentar argumentar que os juízos do aprendiz sobre obras de arte e experiência estética, não só são inconsistentes com os meus juízos, mas também são inconsistentes com os seus próprios juízos anteriores, produzidos durante o seu período de tutela linguística. Em consequência, poderei argumentar que os seus juízos e as suas práticas anteriores estavam correctos e em concordância com os meus, mas que, depois de entrar no armazém, ele alterou os seus juízos e as suas práticas de um modo desviante e incorrecto. Poderei defender que o aprendiz percebeu o que era uma experiência estética, e portanto também compreendeu o que era uma obra de arte, mas que, por qualquer razão estranha, já não compreende.
Mas não poderá o obstinado aprendiz, e agora aparentemente perverso, insistir em que fui eu que me afastei da minha anterior prática e não ele? Não poderá ele, novamente, virar o meu argumento contra mim? Com certeza que pode e, se pode, como hei-de salvar a autoridade do meu juízo?
Se dispuséssemos de uma definição rigorosa de experiência estética, talvez eu pudesse insistir em que, anteriormente, o aprendiz apenas chamara “estéticas” às experiências que se ajustavam à definição, mas que passou a usar o termo para se referir a experiências que não se ajustam a ela. Por consequência, argumentaria eu, pode-se demonstrar que, de acordo com os parâmetros desta definição, os seus primeiros juízos linguísticos são inconsistentes com os últimos.
Mas esta táctica não nos proporciona qualquer progresso. O aprendiz pode negar a adequação da minha definição apelando para aquilo que ele considera ser a história consistente e abalizada dos seus juízos linguísticos, no que diz respeito ao uso da expressão “experiência estética”. O aprendiz insiste, muito simplesmente, em que, se a definição de experiência estética não se adequa às experiências que o levaram a chamar a determinados objectos “obras de arte”, tanto pior para a definição.
Ou então, pode novamente virar o jogo contra mim. Pode concordar que a minha definição de experiência estética é perfeitamente correcta, mas que, mais uma vez, fui eu, e não ele, que me desviei do uso correcto da expressão, atendendo à sua, agora correcta, interpretação da definição.
É claro que, na definição psicológica de arte de Schlesinger, eu nem sequer podia recorrer à autoridade adaptável de uma definição de experiência estética. Estava reduzido a apontar, de certa maneira, para a alegada experiência estética do aprendiz, dizendo: “Mas não vês que a experiência que te leva a chamar às raspas de borracha “obra de arte” nada tem a ver com aquelas experiências a que te ensinei a chamar “experiências estéticas”?” Mas, mesmo que o aprendiz seja do tipo honesto e não do tipo maliciosamente contraditório, a única resposta que posso e devo esperar dele é: não, claro que ele não vê a diferença, pelo menos não vê qualquer diferença essencial. Mas o pior é que ele pode colocar-me a mesma presunçosa e incrédula questão sobre mim e os meus juízos acerca da experiência estética.
Por esta altura, a inutilidade dos meus ataques aos juízos do aprendiz deve ser óbvia. Tentei desacreditar os seus juízos perversos acerca de obras de arte defendendo que eles não eram justificados por aquilo que entendo ser uma genuína experiência estética. Este passo fracassa quando ele constrói um argumento perfeitamente análogo — tão bom ou tão mau como o meu —, que conduz a uma conclusão contrária baseada no seu entendimento privado daquilo que conta como experiência estética. Depois, tentei desacreditar os seus juízos acerca das experiências estéticas mostrando que ele emprega uma definição incorrecta do conceito, ou mostrando que os seus controversos juízos são, de alguma forma, inconsistentes com os seus juízos anteriores, atendendo à minha interpretação dessa definição ou à minha descrição dos seus anteriores juízos. Esse passo fracassa quando ele constrói, uma vez mais, um argumento perfeitamente análogo, que o conduz à conclusão de que fui eu que me desviei da definição abalizada ou dos precedentes históricos, tal como ele os entende. Prosseguir esta regressão seria inútil: não posso justificar a minha prática linguística, em detrimento dos perversos juízos do aprendiz, apelando para os meus estados psicológicos ou a minha sensibilidade estética; por cada apelo que faço à autoridade da minha sensibilidade e das minhas experiências, ele pode fazer um apelo igualmente abalizado, mas contraditório, à sua sensibilidade e às suas experiências. O que tem de ser aqui estabelecido é a autoridade de um conjunto de juízos linguísticos, uma prática linguística em detrimento de outra, e isso não pode ser feito apelando a fundamentos privados de justificação, que as partes discordantes possuem em igual medida e com igual autoridade.
Nesta altura, penso que também podemos perceber por que motivo as disputas filosóficas acerca da presença e da natureza da experiência estética, e da sua relação com as obras de arte, são tão intratáveis. Desde que um filósofo esteja convicto das suas introspecções e intuições, não há virtualmente qualquer apelo racional que possamos fazer para convencê-lo a inverter os seus juízos.
O que mostram estes frustrantes exercícios no armazém imaginário? Aquilo que acho que não podemos nem devemos concluir, aquilo que prefiro não concluir, é que, muito simplesmente, não existe razão e falta dela no que aos juízos estéticos diz respeito ou que, quando o aprendiz chama “obras de arte” a dicionários, esfregões ou coçadelas, tem tanta razão como eu quando nego que essas coisas sejam obras de arte. Isso seria absurdo; uma pilha de aparas de borracha não pode ser e não ser simultaneamente uma obra de arte. Obviamente, não estou disposto a ceder aos absurdos do relativismo estético radical. Nem estou convencido de que o próprio projecto de definir arte seja, no fundo, uma tarefa totalmente impossível. Mas penso que temos de concluir que, seja como for que definamos a arte, não podemos fazê-lo da forma sugerida pelas definições psicológicas.
A nossa verdadeira questão não é apenas saber se o aprendiz apetrechado com uma definição psicológica de arte seria capaz de entrar pelo armazém dentro e dividir os objectos que encontra em duas pilhas, aquela a que chama “obras de arte” e aquela a que não chama “obras de arte”. A nossa verdadeira questão é saber se o nosso aprendiz apetrechado com uma definição psicológica seria capaz de dividir correctamente os objectos que estão no armazém.
O que é dividir correctamente os objectos que estão no armazém, de acordo com a definição psicológica de arte? Se fazê-lo correctamente significa, muito simplesmente, aplicar correctamente uma definição de arte aos objectos que estão no armazém, é claro que não só o aprendiz o fará correctamente como nem sequer pode deixar de o fazer correctamente. Aquilo que este demorado exemplo mostra é que a única forma de aplicar correctamente uma definição psicológica de arte é consultar a nossa sensibilidade estética e dividir os objectos do armazém de acordo com ela. Mas isto é apenas outra maneira de dizer que uma pessoa deve chamar a uma coisa “obra de arte” quando sente inclinação estética e linguística para o fazer; seja qual for a via por que decida optar para isso, será uma via correcta. Mas então, existirão tantas formas correctas de dividir o mundo entre obras de arte e não obras de arte como as diferentes inclinações relativas à maneira de o fazer. E, se nenhuma forma de fazer uma coisa é mais correcta do que qualquer outra, estamos a aplicar mal a própria noção de correcção, quando a aplicamos a um caso como este.
Se é concebível que o aprendiz possa ter dividido incorrectamente os objectos que estavam no armazém enquanto aplicava, honesta e diligentemente, a definição psicológica de arte, então não é o apelo a qualquer dos seus estados psicológicos que justifica ou garante o juízo de que o fez incorrectamente. Por outras palavras, aquilo que permite decidir se o fez correcta ou incorrectamente não é qualquer facto relativo aos seus estados psicológicos. Como penso que o exemplo mostrou, os seus estados psicológicos não podem desempenhar este papel. Mas, se é assim, não deveremos, pura e simplesmente, abandonar a tese de que a arte deve ser definida em termos psicológicos? Não acabámos por admitir que o que verdadeiramente determina quando uma coisa é correctamente chamada uma “obra de arte” é algo distinto de um estado psicológico seja de quem for?
O exemplo conduz a esta conclusão céptica porque não temos qualquer fundamento de justificação de que o teimoso aprendiz não disponha igualmente: eu apelo para os meus juízos e a minha sensibilidade, treinados e mesmo provados; ele apela para os dele. Mas é razoável argumentar que as nossas justificações são completamente diferentes. Vamos supor que os meus juízos se baseiam em anos de experiência, anos de experiência estética; que a minha sensibilidade estética foi refinada por anos de apreciação e de análise; que a minha autoridade foi confirmada, para lá de qualquer dúvida, por outras autoridades inquestionáveis. Em suma, a fim de imaginar o pior cenário para o aprendiz, vamos supor que eu sou um crítico mundialmente respeitado, um reconhecido especialista em belas-artes. Quando reconheço algo como uma obra de arte, estou a apelar para a minha experiência abalizada. O aprendiz, pelo contrário, é apenas isso mesmo, um aprendiz muito pouco formado. A sua experiência estética é do mais incipiente que há, é rigorosamente limitada. Se, no passado, fez juízos correctos, isso deve ser atribuído à sorte de principiante ou à simples imitação dos meus sábios juízos. Quando ele reconhece algo como uma obra de arte, apela à sua experiência estética, totalmente não abalizada.
Gostaria de responder a este apelo à autoridade de duas maneiras. Em primeiro lugar, suponhamos que interpretamos este argumento anticéptico como um apelo absolutamente dogmático à autoridade: a minha experiência estética é abalizada, e os meus juízos estéticos são justificados, porque eu sou quem sou. Mas a experiência do aprendiz, e portanto os seus juízos estéticos, não é abalizada, porque ele é quem é — ou melhor, porque ele não é suficientemente parecido comigo. Mas, a partir do momento em que enveredamos por tão descarados apelos à autoridade para poder garantir os meus juízos e recusar os do aprendiz, que sentido, que vantagem existe em complicar o assunto com apelos indirectos à experiência estética? Por que não insistir simplesmente na autoridade dos meus juízos acerca de obras de arte, ignorando aquilo que se passa na minha cabeça? Os meus juízos estéticos são correctos porque são os meus juízos; os juízos do aprendiz são incorrectos quando são inconsistentes com os meus. Uma vez feito o apelo dogmático à autoridade, pouco há a ganhar com o recurso à via indirecta da experiência estética.
Em segundo lugar, suponhamos, de modo mais sensato, que interpretamos este apelo à minha autoridade como algo justificado pela sanção comunitária do “mundo da arte”. Os juízos do aprendiz, suponhamos ainda, não são sancionados dessa maneira. Quando os nossos juízos divergem, posso recorrer à sanção da minha comunidade; ele não.
Isto tornaria os nossos apelos desiguais de maneira relevante. Apesar de tudo, a disputa entre o aprendiz e eu não se resolve assim tão facilmente. Por um lado, suponhamos que a comunidade sanciona a minha autoridade em geral, mas é passiva no que diz respeito ao juízo particular que está em discussão entre mim e o aprendiz. Neste caso, é provável que o aprendiz e eu defendamos teses contrárias sobre qual dos nossos juízos, inconsistentes entre si, seria sancionado pela comunidade, se ela tivesse de julgar o referido caso particular. Cada um de nós teria a sua própria interpretação da prática anterior da comunidade, o que levaria, uma vez mais, a que cada um de nós se sentisse confiante em que a comunidade sancionaria o próprio juízo e não o do outro.
Por outro lado, suponhamos que a comunidade não é passiva no que diz respeito à nossa disputa em particular. Suponhamos que a comunidade toma activamente o meu partido, o partido da autoridade reconhecida. O juízo do aprendiz é ignorado, escarnecido, ridicularizado — sumariamente recusado. Ele não pode defender os seus juízos apelando para aquilo que a comunidade faria, se fizesse uma apreciação activa; a comunidade pronunciou-se. A nossa disputa deixou de estar encurralada nos nossos apelos inconsistentes a fundamentos privados de justificação. Uma terceira parte, a comunidade, veio resolver a disputa.
As coisas parecem estar feias para o aprendiz, mas nem tudo está perdido, mesmo depois de a comunidade se ter pronunciado. O aprendiz está certamente em desvantagem numérica, mas isso não abala necessariamente a sua confiança, nem torna a minha pretensão de autoridade obviamente menos gratuita ou ad hoc do que era antes. O que o aprendiz tem de fazer é pôr em causa a minha avaliação mais a da minha comunidade. Mas pode utilizar todos os expedientes que usou anteriormente para questionar e denunciar os meus juízos, com igual sucesso, para questionar e denunciar a minha avaliação mais a da minha congenial comunidade.
Em última análise, a minha comunidade e eu seremos forçados a fazer um apelo dogmático à nossa autoridade colectiva, recusando pura e simplesmente, através da indiferença ou da coerção, o aprendiz e os seus juízos estéticos. Para nós, o aprendiz parece estar a falar, mas não pode ser percebido.
Gostaria de concluir com uma nota conciliatória.
Sinto uma persistente necessidade de insistir na ideia de que as minhas experiências e as experiências de outros devem ter alguma coisa a ver com a forma como usamos os termos “arte” e “obra de arte”. Afinal, continuo a achar convincente e intuitiva a tese de Schlesinger de que podemos ensinar uma pessoa que foi surda a reconhecer uma infinita variedade de experiências auditivas a partir de uma amostragem razoavelmente limitada.
Esta necessidade pode ser satisfeita, penso, sem cair uma vez mais nas dificuldades das definições psicológicas de arte. Salientar o facto de o leitor e eu termos reacções psicológicas muito parecidas a certos objectos e acontecimentos pode ajudar a explicar como conseguimos coordenar as nossas práticas linguísticas. Afinal de contas, se eu reagisse ao mundo de uma forma completamente diferente, nem sequer isomórfica, da forma como o leitor reage ao mundo, seria inexplicável, de um ponto de vista fisiológico e psicológico, que conseguíssemos atingir qualquer coordenação dos nossos comportamentos, de maneira a atingirmos uma prática social mutuamente satisfatória. O facto de as nossas reacções psicológicas ao mundo serem similares ajuda a explicar como conseguimos comunicar e coordenar os nossos comportamentos. Além disso, direccionar um apreciador desviante para as suas reacções psicológicas pode ser instrutivo e persuasivo, no sentido em que pode permitir que os seus juízos se aproximem daquilo que é considerado a prática mais correcta. A durabilidade das definições psicológicas de arte poderá dever-se, mais do que a qualquer outra coisa, à simples utilidade retórica dos apelos à experiência estética.
Contudo, mesmo que a noção de experiência estética nos permita explicar a nossa prática linguística no uso dos termos “arte” e “obra de arte”, tal explicação não é, nem pode ser, uma justificação de qualquer das muitas práticas linguísticas que poderíamos adoptar, em detrimento de outras. As justificações são explicitamente normativas; as explicações não. Se posso justificar por que motivo faço uma coisa de determinada maneira, então posso afirmar que o fiz da maneira correcta. Se posso explicar como consegui fazer determinada coisa, continuo a não saber se fazê-lo dessa maneira foi correcto ou incorrecto, certo ou errado, ou mesmo se essas categorias se aplicam ao que fiz. Portanto, falar da experiência estética pode explicar alguns dos mecanismos fisiológicos e psicológicos que subjazem às práticas linguísticas de uma pessoa ou de uma comunidade, mas não justifica essa prática específica relativamente a muitas outras práticas alternativas. Na medida em que apelar a uma definição de determinado termo, como por exemplo “obra de arte”, é apelar a um enunciado acerca das condições sob as quais o termo é correctamente usado, nessa medida, apelar a uma definição é apelar à justificação de uma prática linguística em detrimento de outras. E não se pode justificar uma prática linguística em detrimento de outras simplesmente repetindo as inclinações pré-concebidas que subjazem à própria prática, bem como aos juízos que a constituem.