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Crítica
10 de Fevereiro de 2007   Estética

Naturalizemos a estética

Denis Dutton
Tradução de Vítor Guerreiro

Naquele que para os professores é talvez o mais destacado ensaio de estética, o primeiro capítulo de Art, Clive Bell faz uma observação tipicamente estranha e excessiva:

“O leitor dar-se-á conta de que quem é incapaz de emoções estéticas puras recorda-se dos quadros que observou em virtude do seu tema; ao passo que quem é capaz de tais emoções normalmente desconhece o tema de uma pintura. Nunca prestou atenção ao elemento representativo, de modo que quando discute pintura fala das formas, da relação e distribuição da cor”.

Nunca me deparei com alguém que ao falar das pinturas que observara fosse capaz de recordar rectângulos azuis, manchas verdes e nódoas castanho-rosadas sem poder lembrar-se se estes eram carros, árvores ou pessoas. Suspeito que Bell está apenas a tentar convencer-nos da verdade do formalismo através do choque, mas ao fazê-lo encaixa perfeitamente na linha dominante em estética nos últimos duzentos anos.

O formalismo é um conjunto complicado de ideias que procuram dar sentido a algumas das nossas intuições básicas sobre a arte, embora negue ou exclua sistematicamente outras. A estética “pura”, segundo o formalismo, preocupa-se apenas com a forma e a estrutura. Há um certo apelo intuitivo a este modo formalista de pensar em estética e os filósofos profissionais continuam sob a sua influência pelo menos desde Kant.

Mas há situações contra-intuitivas, e na estética como em tudo na filosofia, é possível dedicar toda uma carreira académica a tentar reconciliar tais conflitos de intuição, a mostrar que não existem, ou a explicar por que um dos lados está inequivocamente certo e o outro errado.

Subjacente a tudo isto há uma questão que raramente colocamos: de onde nos vêm as intuições? Eis um exemplo do problema: nos anos setenta, publiquei um ensaio acerca do que há de mal com as falsificações. Arthur Koestler e Alfred Lessing defendiam que nada havia de mal com as falsificações desde que fossem “esteticamente” indiscerníveis dos originais, ou de algum modo parecessem tão boas quanto os originais. Segundo a posição de Lessing/Koestler, rejeitar uma falsificação que tenha excelência estética seria puro snobismo.

A minha resposta começava com o apelo a uma experiência imaginária: a sensação aguda de desilusão e desapontamento que sentiríamos ao saber que a gravação de uma interpretação ao piano plena de brilhantismo e virtuosismo que muito admirávamos era na verdade o produto de uma falsificação, pois fora acelerada electronicamente. A partir daqui, construí uma perspectiva geral da arte como algo que envolve necessariamente a execução técnica e o mérito.

Continuo convencido de que tinha razão, embora o meu argumento tivesse uma falha embaraçosa. Todo ele dependia de um efeito psicológico profundo e impressionante — um choque, diria mesmo um sentido de traição. Mas não dispunha de uma maneira de explicar a existência de tal efeito. Pelo menos um autor, Leonard B. Meier, havia tratado a admiração pela técnica como um produto cultural contingente — como se pudéssemos imaginar uma cultura onde a destreza não fosse objecto de admiração. Isto parecia improvável. A admiração pela técnica sofisticada, pelos feitos de virtuosismo, é um valor universal, transcultural. Não afecta apenas o mundo da arte mas possivelmente toda a actividade humana, por exemplo, as actividades desportivas onde quer que estas sejam encorajadas.

Houve um período na estética anglo-americana em que era aceitável limitarmo-nos a descrever uma intuição e o modo como se manifestava na linguagem da arte e da crítica. Hoje há uma grande quantidade de bibliografia psicológica que podemos aplicar à reflexão sobre as origens das nossas intuições, incluindo os sentimentos e emoções expressos, suscitados ou representados na experiência estética. No caso da admiração pela destreza técnica, a universalidade deste fenómeno tem uma base evolucionista tanto quanto a apetência por alimentos ricos em gordura ou açúcar. Os povos que cultivavam o desenvolvimento de aptidões e a admiração pelas mesmas sobreviveram melhor que os seus concorrentes do Pleistoceno. Mas mais que a selecção natural, é provável que a selecção sexual tenha desempenhado um papel relevante na evolução da admiração pela técnica, dada a tendência dos nossos antepassados para considerarem atraentes como parceiros indivíduos que demonstrassem uma gama de aptidões manuais e intelectuais.

Muitos filósofos continuam relutantes quanto a psicologizar valores se isso significar naturalizá-los como componentes estáveis de uma natureza humana que foi objecto de um processo evolutivo. Mas porquê? O que há de tão vantajoso em usar “cultura” como a explicação multi-usos para todo e qualquer valor?

Tome-se em consideração a célebre experiência de Komar e Melamid que consistia em criar as pinturas favoritas para diversas pessoas de todo o mundo, com base em sondagens. As pinturas que obtêm com base nas preferências colhidas em tais sondagens são anedóticas (George Washington partilha uma cena no Rio Hudson com um hipopótamo), mas têm o mérito de apoiar de modo involuntário alguma investigação independente sobre as preferências transculturais em paisagens e pinturas de paisagens. Há uma lista transcultural de elementos que os seres humanos desejam ver nas paisagens — água, uma diversidade de áreas abertas com árvores às quais é possível trepar, mamíferos de grande porte, domésticos ou selvagens, estradas que desaparecem a uma distância convidativa (o que os psicólogos chamam elementos de “auxílio à navegação”), e assim sucessivamente. Além dos testes psicológicos de laboratório, estes elementos paisagísticos preferidos aparecem tanto nos calendários com paisagens como no design de jardins privados e parques públicos em todo o mundo. Tanto Komar e Melamid como a história da pintura paisagística na Europa e na Ásia sustentam este ponto de vista.

Eis aqui um desafio lançado à estética: por que não nos esforçamos um pouco mais por nos abrirmos às abordagens naturalistas da experiência estética que vão além do legado formalista e da sua “pureza”? As questões que levanta são fascinantes. Por que não colaborar com os psicólogos de modo a compreendermos melhor as preferências transculturais presentes no conteúdo de uma imagem? Existirão mecanismos psicológicos que dêem conta do prazer de cantar em grupo ou de partilhar uma experiência artística como membro de um público? Poderemos identificar e analisar em termos estatísticos os temas e ideias recorrentes no teatro e na literatura?

Os psicólogos evolucionistas insistem na ideia de que onde quer que na vida humana encontremos um prazer intenso, este provavelmente estará ligado a uma vantagem reprodutiva ou de sobrevivência. A arte tem um escasso valor prático, mas pode proporcionar um prazer intenso. Porquê? Estetas, por favor, expliquem isto.

Uma perspectiva verdadeiramente naturalizada e portanto darwinista da experiência estética seria até certo ponto especulativa, mas estaria particularmente aberta a provas empíricas que tendam a confirmar ou a infirmar decisivamente as suas hipóteses. Não se oporia a perspectivas da experiência estética baseadas na singularidade da expressão cultural, mas poderia enriquecê-las, inserindo-as numa perspectiva universal. Se a linguística de base científica não reduz a imensa diversidade de línguas humanas a um único código empobrecido, tão-pouco uma estética naturalizada poderia roubar à arte o seu poder vivo e exuberante.

Bell estava redondamente enganado. Não só estamos destinados a reparar nos temas das obras de arte que admiramos, como enquanto espécie temos a tendência constante para preferir alguns temas a outros. Os modernistas sofisticados podem não gostar da ideia, nem a malta pós-modernaça que insiste em reduzir tudo a política económica, racial ou sexual. Mas a fundamentação natural para o estímulo estético é algo que nós, enquanto profissionais, não nos podemos dar ao luxo de ignorar. E muito menos negar.

Denis Dutton
Previamente publicado em Aesthetics Online.

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