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Crítica
14 de Março de 2018   Estética

Intenção e interpretação na literatura

Jerrold Levinson
Tradução de Vítor Guerreiro

As questões acerca da interpretação de textos literários e da relação entre essa actividade e as intenções dos autores ao escreverem os textos são longevas e dão poucos sinais de virem a ser definitivamente resolvidas a curto prazo. Na verdade, o debate acerca do intencionalismo na literatura parece ter ganho um novo fôlego nos últimos anos, graças ao surgimento nos estudos literários de tendências pragmatistas, neo-historicistas e autobiográficas, bem como de uma concomitante contra-reacção aos excessos da teoria desconstrutivista.

O que farei neste ensaio é explicitar a que considero a posição mais defensável acerca da questão central disputada entre intencionalistas e anti-intencionalistas e, tendo-o feito, dirigir-me selectivamente a outros que escreveram recentemente acerca da questão, à luz da perspectiva a que cheguei.1

A perspectiva que defendo acerca da interpretação e do significado das obras literárias, estritamente falando, nem é intencionalista nem anti-intencionalista, do modo como essas perspectivas são normalmente delineadas, mas antes aquilo que designarei como intencionalismo hipotético (ou construtivo).2 O intencionalismo hipotético difere lógica e relevantemente do intencionalismo efectivo, que decerto terá os seus seguidores,3 distinguindo-se também do anti-intencionalismo, que se apoia na força das convenções para gerar significado, e que deu à Nova Crítica das décadas de 1940, 1950 e 1960 o seu fundamento teórico.4

I

Quando nos perguntamos o que os textos literários significam e como dão corpo a esse significado que têm, creio que para responder a essa pergunta dispomos apenas de quatro modelos por onde escolher. Um é o de que esse significado corresponde ao significado da sequência verbal (por exemplo, uma frase) simpliciter. Outro é o de que corresponde ao que o falante (autor) quis dizer numa dada ocasião. Um terceiro assimila-o antes ao significado elocutório gerado numa dada ocasião em circunstâncias específicas.5 Um último modelo representa-o, de um modo sumamente liberal, em termos daquilo a que se poderia chamar “significado lúdico”.6

O significado da sequência verbal, aproximadamente, é o significado “de dicionário” — o significado (ou como é habitual, significados) que se atribui a uma sequência de palavras tomada em abstracto em virtude das regras operativas sintácticas e semânticas (incluindo as conotativas) da língua específica, temporalmente indexada, em que se considera que essas palavras ocorrem. O significado do falante é o significado que um agente intencional (falante, escrevente) tem em mente ou em vista comunicar pelo uso de um dado veículo verbal. O significado elocutório, por outro lado, é o significado que esse veículo acaba por comunicar no seu contexto de elocução — um contexto que inclui o ser proferido por tal-e-tal agente. O significado lúdico, por fim, abrange quaisquer significados que se possa atribuir ou a um texto bruto (uma sequência-verbal-numa-língua) ou a um texto-como-elocução, em virtude do jogo interpretativo, não limitado senão pelas mais lassas exigências de plausibilidade, inteligibilidade ou interesse.

Parece claro que não se pode simplesmente equacionar o significado literário a uma sequência verbal (ou frase) desligada, pois é crucial à tarefa de interpretação supor que as frases de um texto literário provêm de uma única mente,7 têm um propósito e são o veículo de um acto específico de comunicação, amplamente concebido. Não tratamos os textos literários do modo como trataríamos colecções aleatórias de frases, como as que se poderiam formar na areia de uma praia ou ser regurgitadas por programas de computador. As frases que compõem uma obra literária, num patamar fundamental, não são uma mera colecção ou colagem mas o corpo e substância do que se supõe ser um acto unitário de expressão.

É igualmente claro, porém, que o significado literário não pode ser equacionado tout court ao significado do falante, pois isso dissolveria a distinção entre a actividade prática linguística normal — em que o mais importante é comunicar o que o falante ou escrevente pensa ou quer dizer — e a comunicação no modo literário, em que se supõe que o texto tem um certo grau de autonomia, que é algo para interpretarmos, até certo ponto, em função de si mesmo e que, portanto, não é em princípio descartável caso pudéssemos simplesmente chegar, de um modo mais directo, ao que o autor tinha em mente dizer-nos. Quando um poeta nos revela, em linguagem chã, o que um certo poema enigmático seu poderia significar, não reagimos a isso pondo de parte o poema em benefício do resumo que nos foi dado. Nas interacções verbais comuns, o que uma pessoa quis dizer tem precedência ou sobrepõe-se ao que a linguagem usada pela pessoa tal como esta a proferiu pode acabar por significar a um interlocutor adequadamente informado. Não parece que suceda claramente assim na esfera da produção literária. Por fim, aquilo a que chamei “significado lúdico” — que se relaciona com o que Arthur Danto postulou como o objecto ou resultado da interpretação “profunda”8 — é um candidato impróprio pelo menos para o significado fundamental dos textos literários, quanto mais não seja porque o pressupõe de modo a ter pernas para andar.

Isto deixa-nos somente com o significado elocutório — o significado que um veículo linguístico tem num dado contexto de apresentação ou projecção, um contexto que provavelmente inclui, além das características observáveis do acto elocutório, algo das características do autor que projecta o texto, algo do lugar do texto numa obra e cultura envolventes e possivelmente outros elementos também. Mas em que consiste tal significado, no caso de uma tipicamente complexa obra de literatura? Como chegamos a ele e o que pretendemos ao procurá-lo? A tais questões William Tolhurst deu uma resposta instrutiva:

Compreende-se melhor o significado elocutório como a intenção que um membro da audiência visada teria maior justificação para atribuir ao autor, com base no conhecimento e atitudes que tem, em virtude de ser um membro da audiência visada. Assim, o significado elocutório é para conceber como aquela hipótese acerca do significado do falante para a qual há maior justificação, com base nas crenças e atitudes que se tem enquanto ouvinte ou leitor visado.9

Ao compreender uma elocução construímos uma hipótese acerca da intenção, tal que o melhor modo de compreender a elocução é concebê-la satisfazendo essa mesma intenção [ênfases minhas].10

Assim, o significado elocutório distingue-se logicamente do significado do falante, tendo com este, ao mesmo tempo, uma ligação conceptual necessária: chegamos ao significado elocutório procurando o significado do falante, do modo mais abrangente e informado de que somos capazes enquanto receptores visados da elocução. A intenção efectiva do falante, portanto, não é o que determina o significado de uma oferenda literária ou de outro discurso linguístico, mas antes essa intenção enquanto objecto de uma hipótese ideal, dados todos os recursos que nos estão disponíveis na estrutura interna da obra e no contexto de criação envolvente relevante, em toda a sua especificidade legitimamente invocada.11 O núcleo do significado elocutório pode ser analiticamente concebido como a nossa melhor projecção apropriadamente informada do significado visado pelo autor, a partir da nossa posição como intérpretes visados.

O compromisso entre o intencionalismo e o anti-intencionalismo sugerido pela abordagem de Tolhurst, portanto, é o seguinte: que o núcleo do significado literário, como sucede com qualquer exemplo de discurso apresentado publicamente, não é o significado (os muitos significados) das palavras e frases tomadas em abstracção do autor, nem necessariamente o exacto significado que o autor efectivamente pretendia comunicar, mas a nossa melhor atribuição hipotética de significado, formada a partir da posição da audiência visada. Evidentemente, subentende-se que esta última tenderá amiúde (por exemplo, em casos bem-sucedidos) a coincidir com o significado efectivamente pretendido, mas a distinção fundamentada entre os dois é ainda importante, quer para ver claramente o que fazemos quando procuramos fixar com algum grau de precisão os significados — possivelmente diversos — de uma obra literária, quer pela luz que lança sobre disputas interpretativas em casos difíceis.

Este é um momento oportuno para observar como a ideia da melhor atribuição hipotética de uma intenção a um autor é ela mesma mais bem compreendida. Tenho em mente que isto seja feito com uma certa dualidade. Sobretudo, uma melhor atribuição hipotética é a epistemicamente melhor — a que tem a maior probabilidade de ser correcta, dada a totalidade dos indícios disponíveis a quem está na posição de leitor ideal. Porém, secundariamente, uma melhor atribuição de intenção a um autor pode envolver, de acordo com um princípio de caridade, a escolha de uma interpretação que torna a obra artisticamente melhor, havendo lugar para a escolha, desde que a sua atribuição ao autor seja plausível dado o pleno contexto de escrita. Por outras palavras, se podemos conceber que o autor criou uma obra mais inteligente ou mais impressionante ou mais imaginativa, sem violar a imagem das suas obras sustentada pela totalidade disponível dos indícios textuais e contextuais, talvez o devamos fazer. Será então essa a nossa melhor projecção de intenção — “melhor” em dois sentidos — como leitores informados e compreensivos. Isto, todavia, não autoriza a que vejamos uma obra sob uma interpretação na qual ela surge como artisticamente boa se não pudermos, com boas razões, associar epistemicamente essa interpretação ou imputá-la ao autor histórico, como em geral o compreendemos.

Tal é a perspectiva do significado literário que orienta a minha reflexão ao longo deste ensaio. Antes de prosseguir, porém, temos de abordar certos problemas inerentes à formulação da perspectiva por Tolhurst e considerar modos de os enfrentar.

II

A noção de significado de uma obra literária, e portanto a de interpretação correcta do mesmo, está apropriadamente ligada, como afirmei, não à intenção efectiva, nem sequer à intenção bem-sucedidamente realizada do artista, mas antes à nossa melhor interpretação da mesma, dados os indícios na obra e a informação de fundo apropriadamente obtida acerca da intenção do artista de querer dizer isto-ou-aquilo à sua audiência visada.12 Resumidamente, isto sucede porque a produção literária, bem como a produção artística em geral, é muito semelhante a um acto de fala, ou seja, é em sentido amplo o empreender de um acto de comunicação, de um género indirecto. Como tal, os seus produtos — as obras de literatura — devem ter o tipo de significado que os produtos ou resultados dos actos de fala — as elocuções — crucialmente têm, nomeadamente, o significado elocutório. E pode-se argumentar ainda, como fez Tolhurst, que o significado elocutório é captável pela ideia da melhor hipótese contextualmente informada acerca do que um falante/escrevente procura comunicar à sua audiência visada.

A proposta de Tolhurst, porém, foi criticada por Daniel Nathan, por diversas razões.13 Tratarei primeiro das que considero menos problemáticas e prosseguirei então para a que me parece ter maior peso. Nathan começa por criticar Tolhurst por este ter uma noção demasiado estreita do que seja o significado de uma sequência verbal, abstraindo desnecessariamente das “características conotativas das palavras”.14 Esta objecção parece-me infundada. Tolhurst poderia aceitar a inclusão de todas as conotações gerais das palavras, abrangendo o todo da língua e temporalmente indexadas, no significado de uma sequência verbal, e não obstante insistir que o significado pleno de uma elocução, em muitos casos, difere ainda claramente do que os significados denotativos e conotativos das palavras envolvidas sustentarão por si só, e que, ao invés, esse significado é por fim estabelecido pelas características do contexto individual e pragmático da elocução.

Nathan defende em seguida que os exemplos de Tolhurst, em particular o seu apelo a Uma Proposta Modesta, de Swift, dependem essencialmente de se ignorar os textos completos de que os seus excertos fazem parte. Mas seguramente que a questão teórica que Tolhurst persegue se mantém ainda — a de que poderia muito bem haver textos literários tais que a sua completude, deixando de lado o contexto elocutório, justificava ou uma leitura literal ou irónica mas que, dado esse contexto, ajuizaríamos claramente ou como irónicos ou como não irónicos. Consideremos o seguinte exemplo, que serve também para ilustrar a dependência relativamente ao significado elocutório no contexto activo e a sua independência relativamente ao significado efectivo do falante.

Emília é uma estudante de pós-graduação em história, cujo orientador, Basílio Silvestre, a abandona para aceitar um cargo noutra universidade. Como é do conhecimento geral entre os seus amigos, Emília tem sentimentos ambivalentes e amargos acerca do seu algo egoísta e inacessível mentor, embora ele, felizmente, ignore este facto. Ela, todavia, continuará no futuro próximo a ter necessidade do seu apoio externo. Após uma apresentação de despedida em sua honra, pouco antes de ele partir, Emília escreve-lhe uma breve nota, cujo propósito é garantir a sua contínua boa vontade para com ela nos anos seguintes:

Caro Professor Silvestre:

Foi um enorme prazer assistir, na semana passada, ao seu discurso de despedida. As homenagens, embora impressionantes, não lhe fizeram jus. A sua ausência será por todos sentida com uma tristeza imensurável e esperamos que tenha bastantes oportunidades de visitar os amigos e colegas que deixa para trás na Universidade de Wunderwelt.

Atenciosamente,
Emília Pé-de-Leão

O sentido do texto anterior, enquanto carta remetida ou a remeter ao Professor Silvestre, é grosso modo de apreciação ou louvor e afável solicitação. Essa é a essência do significado elocutório do texto usado desse modo — é como o Professor Silvestre, ou o receptor de uma semelhante missiva em circunstâncias semelhantes, naturalmente a entenderia. Chame-se-lhe “Carta Aberta”. Por outro lado, como um texto que circula ou é para fazer circular no círculo de amigos da estudante, dado o conhecimento que têm e apropriadamente aplicam à leitura da mesma, as expressões do texto adquirem um conteúdo irónico que não tinham enquanto parte de uma carta escrita abertamente ao homenageado: as “homenagens” não lhe fazem jus porque são insuficientemente críticos, a “tristeza” será imensurável porque diminuta, e assim por diante. O significado elocutório desta entidade — chame-se-lhe “Epístola Privada” — é muito diferente do da Carta Aberta. É em grande medida acusatório, aliviante, e duramente crítico, pois é essa a intenção autoral efectiva que seria mais naturalmente projectaria nas palavras a audiência visada ou apropriada da Epístola Privada. Os textos — os textos completos — da Carta Aberta e da Epístola Privada, todavia, são absolutamente idênticos.15

Chego assim à objecção mais preocupante de Nathan. A proposta de Tolhurst, como ele observa, é motivada pelo desejo de escapar ao intencionalismo forte e aos problemas que o acompanham, apelando ao invés somente a uma intenção autoral conjecturada. Mas Tolhurst não reparou que a sua proposta está ainda apoiada nas intenções efectivas do autor, por meio dessa intenção, nomeadamente, a que discrimina uma determinada classe ou tipo de leitor como incumbido da projecção justificável do significado autoral visado, definidor do significado da obra. Esta referência à intenção do autor, afirma Nathan, é ao mesmo tempo perniciosa e ineliminável. A razão é que

Tolhurst reconhece casos em que não é possível identificar a audiência visada com base em razões públicas, ou seja, a audiência visada é diferente daquela a que o autor efectivamente se dirige... Além disso, não se fixando limites à estreiteza da audiência visada, o autor pode falar numa língua cujo significado somente ele e a sua família conhecem... Tolhurst afirma que o autor não ocupa uma posição privilegiada relativamente ao que escreveu, que qualquer membro da audiência partilha o acesso a esse significado. Mas a determinação da audiência visada é em princípio uma questão privada, pelo que em última análise também o significado o é.16

Como deveria um intencionalista hipotético responder a isto? Creio que há duas opções. Uma delas é tentar mostrar que a identificação intencional por um autor de uma audiência visada difere significativamente da determinação intencional por um autor do significado do seu texto, como defendem os intencionalistas radicais, e é menos problemática do que esta. A outra opção consiste em abandonar a noção de uma audiência visada, substituindo a esta a noção de uma audiência apropriada, em que tal não depende da determinação autoral.

Seguindo o primeiro caminho, podemos notar que o conteúdo de uma intenção identificadora da audiência é no mínimo menos problemática do que o conteúdo de uma intenção semântica, especialmente a que suporíamos reger uma obra literária complexa no seu todo. A audiência visada de Dostoyevsky ao escrever Os Irmãos Karamazov, se o pudéssemos determinar, seria algo como: os leitores competentes da língua russa, familiarizados com a narrativa ficcional, cientes da história russa, familiarizados com as tradições religiosas russas, e assim por diante. Mas a intenção significativa abrangente de Dostoyevsky para Os Irmãos Karamazov tem por objecto algo muito dificilmente imaginável independentemente do próprio romance e de uma interpretação exaustiva do mesmo. Dada esta grande diferença de nível entre as duas, portanto, poderia parecer algum progresso que uma análise, embora não evitando por completo intenções de dúbia acessibilidade, pelo menos substituísse, a uma cujo escopo é deveras desconcertante, outra mais terra-a-terra no papel de fixar o significado, de outro modo indeterminado, de uma obra.

Note-se em seguida que a natureza da audiência intencionalmente visada por um autor não nos é, afinal, particularmente opaca. Consideremos o esboço parcial que fiz aqui da audiência a que Os Irmãos Karamazov indubitavelmente era dirigido. Não consultei qualquer oráculo para o fazer, nem estudei os diários de Dostoyevsky ou os registos deixados pelo seu médico pessoal. Obviamente, limitei-me a considerar o próprio romance, as exigências de compreensão inerentes ao mesmo e o seu contexto de criação (por exemplo, a Rússia do século XIX). Esta observação, todavia, desloca-nos para a segunda opção, a de uma audiência apropriada, por contraste com uma audiência autoralmente visada, na medida em que invoca de facto um conjecturar da audiência visada, ou seja, daquela audiência que teríamos maior justificação para supor que o autor tinha em mente — sendo o “nós” deste “teríamos” agora compreendido simplesmente como os ajuizadores racionais, munidos da informação contextual relevante. Mas se é este o ponto a que chegamos, talvez seja melhor abandonar simplesmente a referência a audiências, ainda que se trate de conjecturas razoáveis de audiências visadas, e falar apenas numa audiência apropriada (ou ideal) para uma dada obra, como ajuizado segundo o que pareceria um requisito à compreensão apropriada dessa obra. Vejamos onde nos leva essa ideia.

Sugiro que nos podemos orientar na identificação de uma audiência apropriada para uma dada obra, cuja melhor projecção de intenção autoral será, como antes, constitutiva do significado básico da obra, por meio de certas normas e convenções entendidas como o que define a esfera da produção e recepção literárias.17 Assim, o perfil de um leitor apropriado, para algo que se apresenta no enquadramento da literatura, poderia ser traçado em geral como alguém versado na, e conhecedor da tradição na qual a obra surge, familiarizado com a restante obra do autor e talvez familiarizado também com a identidade ou persona literária e intelectual públicas do autor. Trata-se de princípios básicos, por assim dizer, da actividade literária, do contrato implícito entre escritor e leitor, e não é claro que um autor possa unilateralmente revogar tal compreensão a favor de uma audiência especificada cuja informação ou capacidades diferem significativamente das que estão envolvidas no perfil que acabo de esboçar.

Assim, a melhor resposta à crítica levantada por Nathan ao resíduo de intencionalismo efectivo na concepção de Tolhurst, como se corporiza na ideia de audiência visada pelo autor, poderá ser a excisão desse resíduo, apoiando-nos ao invés numa noção de leitor apropriado, em que o significado da mesma é preenchido em ambas pelo que pode ser visto, a partir da própria obra, como incontroversamente necessário à compreensão textual — por exemplo, competência na língua usada, incluindo dialectos da mesma, conhecimento das referências e alusões embebidas no texto, e assim por diante — e determinados pressupostos do “jogo de linguagem” cultural a que escritor e leitor estão vinculados, envolvendo um pressuposto de conhecimento partilhado das tradições, obras, identidades literárias e coisas semelhantes.18

Por fim, para sublinhar o facto de que o significado central de uma obra literária deve ser concebido como afim ao de uma elocução num dado contexto, por contraste quer com o que um texto significa isoladamente do seu bastante específico contexto de origem, quer com o que o autor-falante pretende comunicar, mas para fazer sobressair mais claramente a sua condição escrita e modo de apresentação mais formal, podemos introduzir o termo “literação” para referir o que as obras literárias são. Os poemas, romances, contos são literações — textos apresentados e projectados em contextos literários, cujo significado, como este é entendido por autor e audiência, será — embora de maneiras que nenhum dos dois poderia claramente prever — uma função das potencialidades do texto como tal, e limitado por elas, juntamente com a matriz generativa dada pelo facto de provir do indivíduo A, que tem a persona pública B, num momento do tempo C, sobre um pano de fundo cultural D, à luz dos predecessores E, à sombra dos eventos contemporâneos F, em relação com a restante obra literária G de A, e assim por diante.

III

Como ilustração da posição intencionalista hipotética que defendo acerca da interpretação, consideremos o conto de Kafka, “Um Médico da Província”. Nesta singular ficção, o médico do título é subitamente despertado durante a noite e chamado à cabeceira de um rapaz que sofreu um terrível ferimento, deixando a sua criada à mercê do ameaçador palafreneiro. Embora o rapaz não tenha salvação, o médico é levado a tentar uma cura bizarra, que envolve partilhar a cama com o paciente. A cura é, naturalmente, fútil e o médico dificilmente se consegue libertar da situação para regressar ao que teme não serem senão os destroços do lar que deixou para trás escassas horas antes. A informação de fundo relevante, ou o contexto de compreensão específico do autor, para uma interpretação desta enigmática narrativa incluiria decerto o seguinte: que Kafka não raro trabalhava de noite, que Kafka considerava a escrita “medicinal”, “terapêutica”, “uma vocação”, que Kafka não separava a sua escrita da sua vida, que Kafka estava familiarizado com A Interpretação dos Sonhos de Freud, e que “Um Artista da Fome” de Kafka, escrito cinco anos após “Um Médico da Província”, acerca de um homem que a si próprio inflige publicamente a fome, como performance artística e admissão de que os alimentos comuns não tinham para ele qualquer atractivo.

Dado esse pano de fundo e dada a substância intrínseca do texto, poder-se-ia oferecer prontamente a seguinte interpretação: “Um Médico da Província” é o relato de um sonho estilizado. O seu conteúdo é basicamente o conflito entre a vida comum, sensual, como representada pela serva Rosa, a confortável casa do médico, e a própria vocação: curar, edificar, dar assistência espiritual. O médico é na verdade um artista, como também o é, de um modo mais transparente, o artista da fome no conto posterior de Kafka. Vê-se preso na indecisão entre uma e outra, nu e desorientado, como estava Kafka entre os seus deveres e desejos literários e domésticos. E o rapaz doente é como o eu mais jovem do médico — por meio da arte Arzt procuramos sobretudo curarmo-nos a nós próprios e só secundariamente outros.19

Assim, a nossa melhor interpretação, enquanto leitores informados, do que este escritor específico, Kafka, procurava comunicar — do que estava empenhado em comunicar — ao escrever “Um Médico da Província”, poderá ser algo como o que atrás escrevi. Faz sentido atribuir tal significado ou conteúdo ao autor, na medida em que é acessível a nós, os seus leitores apropriados, sensíveis ao contexto.

Ainda assim, poderíamos simplesmente descobrir — pelo diário secreto de Kafka, digamos, ou um informante próximo, ou até alienígenas avançados que na altura tivessem sondado os pensamentos de Kafka — que a intenção imediata e explícita de Kafka ao escrever “Um Médico da Província” era na verdade criticar as práticas médicas do meio rural, ridicularizar a típica impreparação e falta de materiais e denunciar a profunda ignorância acerca dos camponeses checos. O texto mal poderia suportar tal significado, tanto quanto “o meu carro não tem gasolina” possa talvez conseguir ser o veículo de um significado visado que inclua vagões e nuvens de cloro.20 Contudo, creio que isto não se sobreporia à interpretação dada antes acerca do que a obra, num contexto específico a Kafka e acessível ao leitor, significa. A nossa melhor construção, no sentido dual especificado atrás, do que Kafka, o escritor, comunica em “Um Médico da Província” sobrepor-se-ia à nossa descoberta do que Kafka, a pessoa, poderia estranhamente ter pretendido dizer, na ocasião em que compôs o conto. É certo que a possibilidade de divergência entre a intenção efectiva específica e a melhor intenção conjecturada é bastante escassa, dada a totalidade de informação apropriada do leitor, mas nem por isso se reduz a zero. E a diferença é teoricamente importante para a filosofia da crítica literária.

IV

Temos ainda de confrontar brevemente outro problema para qualquer concepção intencionalista hipotética do significado literário. Suponhamos que o significado nuclear de uma obra literária é o significado elocutório — ou seja, o que um texto diz num contexto de apresentação específico do autor, a um leitor apropriado ou munido da devida informação de fundo. Ainda que concordemos que esse significado é dado pela melhor projecção-em-contexto, por parte de um leitor, do que o autor do texto pretendia dizer, parece que restam ainda aspectos do significado elocutório — do que é dito numa obra — que vão além disso. Pode-se defender com justeza que há implicações não visadas e não plausivelmente visáveis, ressonâncias imprevistas e não plausivelmente previsíveis, significados ocultos, e coisas semelhantes, de um dado texto que são ainda apropriadamente abrangidas pelo significado literário como acabámos de o definir. Estas poderão parecer parte do que é literariamente comunicado mesmo que não sejam razoavelmente atribuíveis ao autor como o conjecturámos com base no nosso conhecimento de fundo relevantemente aplicado.

Três estratégias se sugerem para lidar com significados não visados mas apropriadamente atribuídos a uma obra literária, da perspectiva do intencionalismo hipotético. Uma primeira estratégia consiste em reconhecê-los directamente mas qualificá-los como secundários. O significado literário primário, poder-se-ia afirmar, tem ainda de se alinhar com a intenção razoavelmente projectável, mesmo que os significados secundários, atribuíveis a uma obra uma vez centralmente interpretada, não tenham de se conformar a esse padrão de projectibilidade.

Sem alguma indicação de como se poderia distinguir os significados secundários dos primários, tal estratégia permanece reconhecidamente algo programática. Mas eis algumas sugestões que vão nesse sentido. Os significados secundários são secundários, podemos conceder, primeiro, na medida em que não podem ser legitimamente atribuídos antes de o significado literário primário, discernido à luz de intenções comunicativas plausivelmente conjecturadas, ter sido atribuído, pelo menos provisoriamente. Segundo, na medida em que têm de pelo menos ser coerentes com o significado primário atribuído numa perspectiva intencional plausível e não o subverter. Terceiro, na medida em que não podem eles mesmos figurar no núcleo de uma interpretação, em que se compreende as interpretações literárias como explicações estruturadas do significado de uma obra, sendo os elementos dessa explicação ordenados do mais central para o mais periférico.

Uma segunda estratégia consiste em propor uma noção mais ampla do significado visado pelo autor como conjecturável por um leitor apropriado, que considere a existência de significados específicos, passíveis de descoberta mas não visados e não razoavelmente atribuíveis numa elocução literária, como razoavelmente atribuíveis, como classe, ou colectivamente, ao autor em virtude da sua entrada no domínio literário e aceitação implícita de um princípio que, de modo aproximado, sanciona o discernir de significados-não-explicitamente-visados-embora-possíveis-para-o-autor,21 emergindo directamente de ou sugeridos por um texto centralmente interpretado em conformidade com uma intenção razoavelmente projectada, mesmo quando esses significados não são individualmente atribuíveis ao autor como dotados de alguma probabilidade de terem sido visados.

Uma terceira estratégia, indo mesmo além de uma noção ampliada do significado visado pelo autor, seria apelar ao que alhures designei como perspectivas justificadas a respeito de uma obra historicamente situada embora não acessíveis ao seu autor e portanto não plausivelmente projectáveis nele. Tais perspectivas poderiam ser consideradas justificadas, bem como os aspectos da obra por elas revelados como parte do seu conteúdo literário, caso se pudesse mostrar estarem enraizadas, abstracta ou embrionariamente, nas preocupações do autor historicamente construível.22

Porque a minha principal preocupação neste ensaio é o significado primário ou literário central, e porque creio que o intencionalismo hipotético nos dá a melhor explicação do mesmo, não procurarei aqui decidir definitivamente esta questão dos significados não visados apropriadamente-atribuíveis-à-obra-mas-improvavelmente-atribuíveis-ao-autor, mas suponho que um tratamento que siga uma ou outra das vias acabadas de esboçar seria em última análise adequado.

V

Embora me tenha distanciado, na esteira de Tolhurst, do intencionalismo hirschiano como explicação do significado das obras literárias, considero ainda assim que determinadas intenções efectivas influem ineliminavelmente, ainda que de modo indirecto, nesse significado e na apreciação e avaliação das obras de arte em geral. Além disso, essas intenções são tais que permanecem extrínsecas às próprias obras, em última análise, no sentido de não haver garantia de estarem implícitas numa obra ou no seu modo observável de produção e serem daí extraíveis, mas residirem ao invés nas posições e decisões do criador de uma obra, elas próprias talvez corporizadas somente em disposições comportamentais.

Temos de distinguir entre dois tipos de intenções relevantes para a produção e recepção da arte: intenções categoriais, por um lado, e intenções semânticas, por outro. A intenção de um autor quando quer dizer algo com ou por meio de um texto T (uma intenção semântica) é uma coisa, ao passo que a intenção de um autor, de que T seja classificada ou considerada de algum modo específico ou geral (uma intenção categorial) é outra bastante diferente. As intenções categoriais envolvem o enquadramento e posicionamento do produto pelo seu criador relativamente à sua audiência projectada; envolvem a concepção pelo criador do que produziu e para que é, num patamar bastante básico; essas intenções regem não o que uma obra há-de significar mas como é para ser fundamentalmente concebida ou interpelada. A mais geral das intenções categoriais que aqui nos interessa seria a intenção de que algo seja encarado como literatura (ou como arte) de todo, que obviamente prescreve certos modos de interpelar, por contraste com outros.

Um escritor moderno poderia pretender que um texto projectasse uma atitude de reverência pela natureza e no entanto este não o fazer, devido à falta de destreza do escritor ou às suas crenças erróneas acerca do reino vegetal. A sua intenção semântica não seria bem-sucedida. Mas se o escritor tem a intenção de que o seu texto seja um poema — por contraste com um conto, um monólogo dramático, uma peça de arte visual caligráfica ou uma mera entrada num diário — essa intenção será de um género e ordem diferentes, e praticamente não pode deixar de ser bem-sucedida — desde que o texto em causa pelo menos permita ser considerado, entre outras coisas, como um poema. Além disso, é claro que seja qual for o significado que o texto-como-obra acabe por adquirir, não será independente de ser ou não apropriadamente interpretado como pertencendo a uma categoria ou género ou medium em vez de outro, isto é, de ser ou não para ler como um poema, ou inspeccionado como um design, ou imaginado como uma passagem para ser encenada, ou tratada — desviando o olhar — como uma confissão privada sem qualquer relação pretendida com qualquer audiência.23 As intenções semânticas, como a do nosso desafortunado escritor, não determinam o significado, mas as intenções categoriais, como as que dizem respeito à concepção básica que um criador de literatura tem do que fez, em geral determinam como um texto é para ser conceptualizado e abordado num patamar fundamental e assim afectam de modo indirecto o que este consequentemente dirá ou exprimirá. As intenções categoriais servem para orientar um leitor relativamente a um texto, num patamar muito básico, e sem conhecimento daquelas ficamos incapazes sequer de começar a discernir os significados deste, se é que tem algum, procurando leituras que possam ser, com a maior razoabilidade, atribuídas ao seu criador contextualmente situado.

VI

Colin Lyas esboçou persuasivamente uma explicação neo-wittgensteiniana das intenções literárias, de acordo com a qual estas, como sucede com as intenções noutras esferas, são corporizadas em e através de actos concretos e situações que regem e de que são inseparáveis.24 Mas creio haver uma questão real sobre se semelhante explicação servirá ou não para todo o género de intenções artísticas, e as intenções categoriais para com textos ou objectos susceptíveis de serem conceptualmente encarados de diversos modos, que invocámos atrás, são um caso ilustrativo. Simplesmente não é claro que todas as intenções artísticas sejam exibidas numa obra em si mesma ou por meio de uma, ou sequer no acto de a produzir. As restrições acerca da corporização propostas por Lyas parecem-me aplicar-se algo vigorosamente às intenções semânticas, mas muito menos às categoriais. As anteriores podem não ter corporização numa obra, ou na actividade observável da sua criação, mas somente, por assim dizer, nas proximidades da mesma.25

Uma intenção categorial, ao contrário de uma semântica, é literalmente parte do fazer ou criar a obra em causa. Quando alguém acaba de aplicar tinta a óleo numa superfície rectangular, ou de moldar o barro numa determinada forma e o cozer, ou de escrever frases consecutivamente num caderno, ou de inscrever números e símbolos numa ficha catalográfica, não fez ainda uma pintura, ou uma escultura, ou um poema, ou uma peça de arte conceptual, a menos que num dado momento no processo decida e exprima (pelo menos para si próprio) que a primeira é uma pintura (e não meramente algo para tapar um buraco), a segunda uma escultura (e não somente um calço para uma porta), a terceira um poema (e não uma lista de compras), e a quarta uma peça conceptual (e não o mero rabisco que aparenta ser). Porque as intenções categoriais fazem inerentemente parte da produção artística e porque se tem de permitir aos artistas constituírem as suas obras como desejarem, fazerem-nas seja de que modo for, dentro de limites naturais e lógicos, que pretendam que elas sejam, se não para as fazer significar, por fiat, seja o que for que queiram que signifiquem, há que reconhecer às intenções categoriais um estatuto diferente das semânticas.26

Contra Lyas, nem todas as intenções relevantes para a apreciação de uma obra de literatura podem ser eficazmente situadas internamente à obra ou ao seu processo de produção. As que dizem respeito ao que o autor procura comunicar quando escreve de um certo modo talvez possam, em geral. Mas decerto não as que dizem respeito a como o texto é para ser encarado como um todo, a um nível mais fundamental. Essas intenções geralmente residirão fora do texto em si mesmo ou das suas condições de origem observáveis, pois um dado texto, seja produzido de que maneira for, poderia ser projectado de vários modos diferentes — por exemplo, como ficção ou como não-ficção, como um exemplo de poesia tradicional (isto é, puramente verbal) ou concreta (isto é, parcialmente gráfica) — pelo mesmo autor e essa projecção poderia basear-se somente no comportamento hipotético do autor ou em indicações auxiliares (por exemplo, os diários do escritor, notas de programa, entrevistas) para lá das fronteiras da obra e da acção de a criar, propriamente falando. Uma revisão completa da situação artística confronta-nos inelutavelmente com intenções que não se pode pressupor terem sido inteiramente corporizadas no acto, objecto ou circunstância públicos.

Além disso, mesmo no que diz respeito a intenções semânticas, creio que a intimidade entre elas postulada por Lyas e o significado publicamente determinável dos textos é algo excedentário relativamente ao que se justifica. Mesmo que uma intenção de significar tal-e-tal por meio de um texto possa ser mais intimamente analisada em termos do produto observado e das circunstâncias do que uma intenção de que um texto seja conceptualizado ou encarado de certo modo, há ainda assim, creio, um resíduo psicológico irredutível dessa intenção nem sempre inerente à superfície exterior do texto e o pleno contexto de apresentação do mesmo. Ao discutir as elocuções — e implicitamente as literações — Lyas observa correctamente que parte do significado das mesmas é constituído pela força, ou ímpeto ilocutório, do que é proferido. Passando à observação de que uma dada elocução não vem a ter uma força particular em virtude de factos acerca da vontade do falante, Lyas nota que isto poderá sugerir que a referência à intenção não é um requisito quando lidamos com questões acerca da força de uma elocução. Mas apesar das aparências, tal, segundo afirma, não sucede:

A verdade é que o facto de uma elocução ter ou não uma força evidente não é algo que se decida perguntando ao falante que força ele ou ela pretendia que tivesse. Por tudo isso, a força por vezes torna-se clara produzindo uma elocução num determinado contexto. Quando se a torna clara, o que se esclarece é uma intenção da parte do falante em fazer algo ao falar, por exemplo, fazer uma ameaça ou uma promessa. Portanto referir a força de uma elocução é referir a intenção de quem a profere [ênfase minha], ainda que o que essa força seja não tenha de ser determinado perguntando ao falante que intenção era essa.27

O problema aqui é que o significado do falante e o significado elocutório estão, uma vez mais, em risco de se tornarem idênticos. Quando a força de uma elocução é clara, pelo seu contexto lexical, o contexto em que surge, e qualquer informação que seja relevante notar acerca do falante como interveniente público numa dada comunidade linguística, então trata-se de um elemento do significado elocutório, e isso, como vimos, pode ser identificado com a intenção mais plausivelmente atribuída ao falante de fazer tal-e-tal quando fala. Mas isto não é ainda o mesmo que a intenção efectiva e concreta do falante, a menos que falemos como um verificacionista, pois esta última pode, mesmo em tais casos, residir em aspectos da situação fora daquelas indicações públicas que fixam o significado elocutório e em particular a força. Portanto, ainda que eu pudesse conceder que as intenções semânticas de um falante ou escrevente são amiúde transparentemente evidentes na elocução ou literação significativa resultante, isto parece-me ainda uma questão de inferência, por muito natural e automática que seja. Há sempre alguma possibilidade de divergência. A inferência é sempre revogável. A intenção mais plausivelmente atribuível no contexto, na perspectiva de uma audiência, pode mostrar-se errónea.28 O significado elocutório, em suma, nunca é constitutivo do significado do falante, por muito que seja um bom guia para o mesmo, na maioria das circunstâncias.

VII

Gary Iseminger, na esteira de Hirsch, produziu um argumento claro e elegante que provisoriamente denominou “uma demonstração intencional”, ou seja, uma demonstração de que o intencionalismo efectivo na interpretação literária está correcto.29 Como exemplo ilustrativo oferece a estrofe inicial de um poema por Gerard Manley Hopkins, “Henry Purcell”, acerca do célebre compositor inglês do século XVII.30 Duas afirmações interpretativas possíveis acerca do poema de Hopkins são as seguintes: 1A) “Henry Purcell” exprime o desejo de que Henry Purcell tenha sido afortunado, e 1B) “Henry Purcell” não exprime o desejo de que Henry Purcell tenha sido afortunado.

Eis aqui a demonstração de Iseminger:

  1. A estrofe anterior é compatível quer com a afirmação 1A quer com a afirmação 1B acerca de “Henry Purcell”.
  2. Exactamente uma das duas afirmações 1A e 1B é uma afirmação interpretativa verdadeira acerca de “Henry Purcell”.
  3. Se exactamente uma de duas afirmações interpretativas acerca de um poema, cada uma das quais compatíveis com o texto, for verdadeira, então a verdadeira é aquela que está conforme ao significado visado pelo autor.
  4. Logo, das duas afirmações 1A e 1B, a verdadeira é a que está conforme ao significado visado pelo autor.31

Parte de mim gostaria de conceder esta demonstração. Desde logo, concordo com duas das suas três premissas. Segundo, partilho muito da motivação de fundo do argumento, em particular o desejo de distinguir entre os textos brutos e as obras literárias, e a convicção de que o que faz um texto ser um poema, e em parte o que o faz ser o poema que é, é uma intenção que reside fora do texto como tal.

Infelizmente, vim a não acreditar na sua conclusão, nomeadamente, na coincidência entre o significado literário e o significado autoralmente visado. Na minha perspectiva, naturalmente, o culpado neste argumento é a terceira premissa, que defende que se somente uma de duas interpretações opostas dessa estrofe inicial, ambas compatíveis com o texto bruto, ou seja, a sequência verbal em inglês por volta de 1880, for verdadeira, então a verdadeira é a que está conforme ao significado visado por Hopkins. A justificação para isto, evidentemente, é que se o significado da estrofe — e por extensão, do poema — há-de ser determinado, de modo a pelo menos sancionar ou uma dada afirmação interpretativa ou a sua negação a respeito da mesma, então essa determinação apenas pode ser razoavelmente fornecida pelos versos que significam o que o poeta efectivamente pretendia que significassem ao escrevê-los. E é identificando o poema em parte com significados efectivamente desejados ou visados que se pode distinguir entre o poema e o texto bruto, que é em potência um ingrediente de outras obras poéticas distintas.

Não surpreenderá, de modo algum, nesta fase a razão por que acho insuficientemente persuasivo o breve raciocínio a favor da premissa 3. A determinação em causa, defendo, pode com a mesma facilidade e razoabilidade provir da melhor hipótese contextualmente informada, por uma audiência, acerca da intenção autoral numa dada passagem, uma vez ponderados todos os elementos. Assim, no caso sob discussão, em particular, se tomarmos em conta as práticas métricas e gramaticais de Hopkins noutros poemas, as suas conhecidas perspectivas e inclinações religiosas (é significativo que, embora tendo nascido no seio da Igreja Anglicana, Hopkins se tenha convertido ao catolicismo em 1866, tendo posteriormente sido ordenado), a sua apreciação documentada da música de Purcell e as exigências de coerência com o resto do poema, sucede que a melhor projecção por um leitor informado acerca do que Hopkins procurava comunicar na estrofe inicial estabelecerá determinadamente que o desejo da boa fortuna pretérita em questões espirituais, em vez de seja o que for que a exclua, é o que se exprime.32 Além de garantir a determinação como representada pela premissa 2, essas intenções semânticas optimamente conjecturadas, em combinação com intenções categoriais efectivas, são mais do que suficientes para distinguir entre o poema e o texto em si mesmo, e outros poemas potenciais que usem o mesmo texto, escritos por poetas que não Hopkins, ou pelo próprio Hopkins numa situação histórica e cultural diferente, ou mesmo por um Hopkins mais contrafactual, conjurado pela alteração de aspectos da situação em que “Henry Purcell” foi de facto composto.

Além disso, não só é o intencionalismo hipotético com base no contexto igualmente eficaz a sustentar a determinação mínima do significado e constituir um poema a partir de um mero texto, como me parece ter duas vantagens assinaláveis sobre o intencionalismo efectivo nesta matéria. Uma delas é preservar a diferença intuitiva entre o que acaba por ser dito (ou comunicado) numa situação discursiva complexa, literária ou não literária, e o que um dado agente procurava (ou almejava) dizer, isto é, o que alguém — e não uma dada obra — queria dizer.33 A segunda, intimamente relacionada, está em reconhecer os interesses especiais e as decorrentes restrições da prática ou actividade de comunicação literária, segundo a qual as obras — desde que interpretadas com máxima atenção ao contexto específico do autor e assim realmente como as obras de fulano de tal — são em último caso mais importantes do que os indivíduos que as criam e suas vidas interiores, distinguindo-se deles. As obras de literatura retêm assim, em última análise, uma certa autonomia relativamente aos processos mentais efectivos dos seus criadores durante a composição, pelo menos no que diz respeito ao significado resultante. É esta pequena mas crucial dimensão de discernibilidade entre o significado do agente e o significado da obra — mesmo quando se entende o último como aproximadamente a melhor projecção por parte de um leitor acerca do primeiro, a partir do texto-no-seu-contexto-pleno — a qual é obliterada pelo intencionalismo efectivo mas salvaguardada pela sua versão hipotética.

É interessante notar que, em princípio, diferentes obras literárias se mostram ambíguas de acordo com o intencionalismo hipotético (IH) e de acordo com o intencionalismo efectivo (IE), embora não seja óbvio que um maior número delas se mostram ambíguas de acordo com o primeiro do que de acordo com o último. Os casos em que não há uma intenção optimamente projectável para uma dada passagem, mas em que há uma intenção autoral clara (ainda que fora do alcance de um indivíduo na posição de leitor ideal) serão ambíguos de acordo com o IH mas não de acordo com o IE, ao passo que os casos em que um leitor ideal contextualmente informado pode chegar à melhor intenção atribuível, embora não exista nem tenha existido uma clara intenção autoral semelhante, serão ambíguos de acordo com o IE mas não de acordo com o IH. Especialmente de notáveis seriam os casos em que há duas projecções divergentes embora igualmente defensáveis, ponderados todos os aspectos, da intenção autoral — ou seja, duas “boas” projecções possíveis, que indicariam uma obra com um significado inerentemente dual ou disjuntivo. Nesses casos, vemos uma vez mais que o significado de uma obra de acordo com o IH pode exceder o seu significado de acordo com o IE: tenha o autor efectivamente apenas uma das duas intenções optimamente projectáveis que se acabou de postular.

Passo agora à ontologia específica que Iseminger recomenda como parte integrante do intencionalismo efectivo a que dá preferência. Trata-se de uma ontologia, como já observámos, à qual sou largamente favorável, tomando a sua raison d’être a partir da evidente não identidade entre as obras literárias e os textos brutos de que, num certo sentido, são compostas. A minha simpatia, contudo, não chega ao completo acordo, por duas razões. Uma delas está na minha crença de que a proposta particular de Iseminger tem algumas consequências contra-intuitivas. A outra é que tenho a minha própria proposta ontológica previamente desenvolvida e semelhantemente motivada acerca das obras-de-arte-tipo, a qual creio que responde melhor aos dados críticos e da experiência.

Iseminger oferece-nos a seguinte tese, que denomina Tese da Identidade Revista: “Uma obra literária (típica) é uma estrutura conceptual textualmente corporizada, cuja componente conceptual é (idêntica) à estrutura — compatível com o seu texto — que o seu autor visava (tinha em mente) ao compô-la.”34

Por outras palavras, vendo claramente que os textos brutos, isto é, as sequências verbais numa língua, não são suficientes para individuar poemas, ou seja, obras de literatura com significados específicos e qualidades enraizadas nas identidades dos seus autores e mundos experienciais, Iseminger chega à sugestão plausível de que um poema é a soma ou complexo do texto e do conteúdo literário específico de que é o veículo, ou seja, um conjunto de pensamentos ou ideias. Uma obra literária é, com efeito, um par ordenado de um texto (estrutura verbal) e um significado (estrutura conceptual). Embora haja, de um modo abstracto, textos sem autores, não há obras literárias sem autores, pois só sendo usado para comunicar um certo significado um texto se transforma numa obra de literatura.

A minha primeira reserva acerca desta sugestão é de ordem perceptiva. O leitor pode ler um poema — sendo esse um modo de acesso central a tais coisas — mas poderá ler uma estrutura conceptual, que faz parte do poema, de acordo com a proposta de Iseminger? Poderá o leitor assinalar a métrica, recitar, contar o número de linhas, ou apreender o esquema de rimas de uma estrutura conceptual — ainda que se trate de uma estrutura conceptual textualmente corporizada? De acordo com a fórmula de Iseminger, um poema deixa de ser um objecto fundamentalmente verbal para se tornar um objecto fundamentalmente conceptual — ou pelo menos um objecto tão conceptual quanto verbal. Mas acabámos de ver que isto é um erro. Temos antes de reter a ideia de que um poema é basicamente uma estrutura de palavras, de modo que as actividades fundamentais apropriadas aos poemas continuem a fazer sentido, ao mesmo tempo que de algum modo reconhecemos que o poema não é o texto bruto — a sequência verbal simpliciter — fora de toda a ligação com um autor e um acto de escrita particulares. A minha própria preferência é ver um poema como um texto-como-indicado-num-contexto, o qual, consequentemente, tem um certo significado ou conteúdo conceptual sem que seja isso, ainda que apenas em parte.35 Adquire esse conteúdo por via de ser indicado ou projectado por um autor A, com características artisticamente relevantes R, num contexto literário C, não necessariamente pelo que o escritor pretende que signifique. O que determina o conteúdo que tem — e não aquilo que é — consiste, uma vez mais, na melhor hipótese acerca do significado autoral a que chegam audiências plenamente cientes de A, C e R.

A minha principal objecção à proposta de Iseminger é, assim, o facto de esta distorcer o tipo básico de coisa que um poema é. Aqui, porém, a objecção que levanto é outra. Segundo a proposta de Iseminger, um dado indivíduo, num certo dia, poderia escrever dois poemas, no mesmo género literário, redigindo o mesmo texto de oito versos duas vezes, alternando inscrições de cada frase, mas pensando/visando construções conceptuais diferentes a cada inscrição, gerando assim estruturas conceptuais distintas. Mas isto parece muitíssimo implausível. Se os poemas com textos idênticos são distintos, têm de ser diferenças no contexto de produção, e portanto no posterior contexto apropriado de compreensão, o que os diferencia.36 Uma diferença de origem ou projecção, e não somente a interpretação autoral fugaz, tem de sustentar a diferença artística entre estruturas idênticas.

Uma pessoa poderia ser capaz de querer dizer coisas diferentes no discurso comum, proferindo as mesmas palavras duas vezes no espaço de poucos minutos, em virtude dos seus estados interiores durante essas elocuções; mas a natureza do “jogo de linguagem” literário não permite, creio, que textos idênticos resultantes da mesma pessoa, ao mesmo tempo, contem como diferentes em significado — pelo menos não em virtude das intenções semânticas concomitantes do escritor. É antes por ter uma intenção categorial diferente, não por querer dizer ou conceber coisas diferentes durante a escrita, que um texto poderia, por pouco, gerar um poema diferente do outro. E para que essas intenções categoriais subtilmente matizadas sejam eficazes — mesmo para o artista — o poeta teria aparentemente de se servir de algum dispositivo interno de individuação, por exemplo, títulos diferentes, ou diferentes datas afixadas aos dois textos, e assim por diante.

Uma última objecção, que vai no sentido inverso da anterior. Segundo a proposta de Iseminger, duas pessoas com diferentes identidades literárias e contextos de origem escreveriam ainda assim o mesmo poema se produzissem o mesmo texto e tivessem em mente o mesmo significado. Porém, há razões para pensar que haveria diferenças artísticas entre esses poemas (por exemplo, em virtude de diferentes relações, ressonâncias, com outras obras dos seus respectivos autores), confundindo assim a suposição da sua identidade.37

VIII

Este é um momento oportuno para observar que distinguir entre textos e obras literárias do modo como sugeri praticamente extingue, ao passo que a preferida por Iseminger não faz senão atiçar as chamas de uma preocupação que perturba uma série de escritores: a da esquiva identidade das obras literárias, que parecem mudar à medida que se passa de uma interpretação sua para a seguinte. Para Michael Krausz, digamos, a obra literária ou objecto-de-interpretação, varia à medida que variam as interpretações.38 Assim, acerca do familiar poema lírico de Wordsworth, “A slumber did my spirit seal” há, segundo Krausz, “A slumber...” de F. W. Bateson, e há também “A slumber...” de Cleanth Brooks. Estes objectos-de-interpretação, não sendo estritamente idênticos entre si, sobrepõem-se ainda suficientemente para os propósitos da crítica, por exemplo, a comparação e confrontação mútua, cuja sobreposição é então denominada “unicidade”.

Estas são, todavia, complicações desnecessárias, um produto quer de inclinações metafísicas construtivistas quer da decisão, que partilho com Iseminger, de ver uma obra literária no patamar ontológico como constituída em parte pelo seu significado ou conteúdo sob uma interpretação. Mas isto é confundir uma propriedade ou aspecto da coisa com a própria coisa. Não há dificuldade alguma em afirmar que há somente um poema (“A slumber...” ou “Henry Purcell”), embora haja porventura numerosas interpretações ou leituras do mesmo — desde que reconheçamos que o poema não é, evidentemente, o texto bruto que inclui mas antes o texto poeticamente projectado num contexto específico, vinculado a uma pessoa, tempo e lugar particulares. Esse vínculo, juntamente com a ortografia completa do texto, é suficiente para fixar a identidade de uma obra, no que à crítica diz respeito, pelo que não há necessidade de nela introduzir significados, complexos conceptuais ou posturas interpretativas. Um poema, como sugiro que o concebamos ontologicamente irá decerto gerar significados e estruturas conceptuais sob uma interpretação, correctos ou incorrectos, múltiplos ou singulares. Mas o próprio poema não é para identificar, nem sequer parcialmente, com esses significados, conceitos, pensamentos ou perspectivas.

IX

Uma ideia fundamental no fascinante ensaio de Noël Carroll sobre as questões de que nos ocupamos é a de subverter aquela oposição ao intencionalismo que resulta da crença de que o contexto do discurso literário difere significativamente do da conversação comum, de modo que o intencionalismo, sendo uma perspectiva sobremaneira natural no último caso, não seria apropriado ao anterior.39 Concordo em parte com essa ideia, visto defender, juntamente com Carroll, que uma disjunção dos dois contextos mais absoluta do que se justifica é característica de uma série de recentes teorias do significado literário que exercem bastante influência, como a “Nova Crítica” beardsleyana e a “morte-do-autor-ismo” barthesiana. Mas contra Carroll, creio haver diferenças residuais entre os contextos e as regras e procedimentos de decifragem que neles predominam.

Uma diferença, parece-me, entre situações literárias e conversacionais é que o significado do falante tem uma importância praticamente absoluta nas últimas, ao passo que o significado do próprio veículo, se oposto ao anterior, praticamente não conta para coisa alguma. Concordo que quando um autor apresenta um texto como literatura a uma audiência literária, tal como quando ele ou ela se dirige a outros num contexto comum, o autor participa num jogo de linguagem público, uma arena comunicativa, mas sugiro que se trata de uma arena com diferentes fins e entendimentos dos que se aplicam em contextos conversacionais normais, de um para um ou até de muitos para muitos. Embora no discurso informativo procuremos apropriadamente, antes e acima de tudo o mais, o significado intencionado, na arte literária estamos autorizados, se tenho razão, para considerar quais os significados que texto verbal diante de nós, visto no contexto, poderia ser usado para comunicar, e para então formar, se podemos, de acordo com a prática da comunicação literária que tanto autor como leitor implicitamente subscreveram, a nossa melhor hipótese acerca do que o texto é usado para comunicar, identificando isso, em última análise, com o significado da obra. O que distingue o nosso formar dessa hipótese a respeito de uma obra literária, por contraste com um trecho de conversação, é que o fazemos em função de si mesmo, sendo o veículo de significado, inserido num contexto, indispensável na literatura, e não algo a contornar a favor de um acesso mais directo ao significado pessoal quando ou se tal está disponível.

Assim, parece-me que temos de distinguir entre a comunicação linguística literária e a prática, pelo menos em alguns aspectos. Carroll erra ao negar ou minimizar qualquer diferença nas condições e critérios operativos de ambos. Nisto estou de acordo com Richard Shusterman, nas suas reflexões recentes acerca do nosso tópico.40 Mas estou muito longe de firmar a distinção entre modos literários e práticos de comunicar, como faz Shusterman, atribuindo aos primeiros a interpretabilidade historicamente não restringida e centrada no leitor. Podemos reconhecer diversos tipos de interpretação literária, respondendo a interesses que não os da verdade, expressão e comunicação, mantendo ainda assim a possibilidade de situar entre eles aquilo a que chamei “interpretação básica”, e caracterizar de uma maneira razoavelmente estável aquilo para que tem de se orientar. Só relativamente aos resultados da interpretação básica, respeitando autor-e-história, podem esses modos suplementares de interpretação ter um suporte e justificação apropriados. Shusterman afirma que ainda que o significado textual (ou seja, aquilo a que eu chamaria “significado da obra”) seja, como insistem Knapp e Michael, inelutavelmente intencional, não há razão para pensar que tem de ser sempre as intenções dos autores o que está em causa.41 O significado textual é inseparável da intenção, reconhece Shusterman, mas talvez as intenções do leitor sejam tão relevantes quanto as dos autores para determinar o significado textual ou contribuir para o mesmo. Esta investidura das intenções, propósitos ou perspectivas do leitor, não constrangida pelo objectivo de reconstruir hipoteticamente a melhor intenção autoral, é uma boa ilustração do modelo lúdico da interpretação, mencionado atrás, tomado como preeminente. Por contraste, uma virtude do intencionalismo hipotético destaca-se claramente, como seja a de mediar entre uma posição, o intencionalismo efectivo, que concede um pouco demais aos autores como pessoas, e uma posição lúdica como a de Shusterman (ou uma posição mais extrema, como a de Rorty, Barthes ou Derrida), que concede demasiado aos leitores e ameaça subverter as motivações dos autores para cumprirem a sua parte no contrato literário implícito.42 Para evitar ser mal compreendido, permita-se-me observar que considero a interpretação lúdica, acerca da qual nada mais terei a dizer neste ensaio, como um exercício potencialmente excitante e gratificante em si mesmo, além de inofensivo — desde que não desaloje o projecto crucial, de discernir o significado literário fundamental, escorado no autor, se não mesmo autoralmente determinado.

Porém, regressando ao ensaio de Carroll, há muito nele que me parece congenial. Carroll observa com justeza que tendo provisoriamente aceitado a relevância básica da intenção autoral, podemos evitar ser novamente conduzidos ao anti-intencionalismo pelo problema dos pronunciamentos autorais aberrantes, pois não temos de os aceitar sem reservas: não raro a obra acabada tornará incríveis certas intenções proclamadas. E Carroll concorda em geral com Lyas, muito sensatamente, em como as intenções mais relevantes para as obras literárias ou cinematográficas são aquelas cuja presença nas próprias obras é em grande medida evidente, aqui incluindo as intenções bem-sucedidas e as que não o são, e que se deveria entender estas não à maneira de episódios mentais privados mas, ao invés, de uma maneira neo-wittgensteiniana, como plenamente corporizadas no comportamento e no que daí resulta.

É o passo seguinte no resumo de Carroll que me preocupa:

Na medida em que se identifica a intenção como a estrutura teleológica da obra, esta intenção é o enfoque do nosso interesse na obra de arte e da atenção que lhe dedicamos... seguir a pista à intenção — a estrutura teleológica da obra — é o propósito mesmo da apreciação... A mais atraente perspectiva neo-wittgensteiniana da intenção não só torna a intenção autoral relevante para a interpretação das obras de arte, como sugere que ao interpretar uma obra de arte, procuramos determinar as intenções do autor.43

Estou inclinado a concordar com o que aqui é dito, mas só se transposto para a tonalidade do intencionalismo hipotético, ou se entendido caridosamente como portador de um sentido compatível já com o mesmo. A estrutura teleológica discernível da obra pode ser identificada com a intenção do autor, diria eu, só se por esta última nos referimos na verdade à melhor interpretação da intenção autoral, da perspectiva de um leitor ideal, imbuído da informação de fundo que esboçámos anteriormente. Porquanto, com ou sem Wittgenstein, é ainda possível as intenções semânticas de um autor a respeito de uma obra, no seu todo ou em parte, não estarem plenamente corporizadas nessa obra mais o seu contexto de produção acessível a um leitor ideal.44 E embora seja verdade que “ao interpretar uma obra de arte procuramos determinar as intenções do autor”, as intenções efectivas do autor funcionam aqui sobretudo como um objectivo heurístico, e o sucesso nesta tentativa é para ser medido não por meio de se chegar correctamente a essa intenção efectiva que pode ainda, apesar do internismo confiante de Lyas e Carroll, basear-se em questões exteriores ao contexto literário total, mas pelo processo de interpretar, projectar ou conjecturar a mais plausível intenção autoral, à luz quer do texto quer das circunstâncias de relevância literária na sua produção, tendo chegado satisfatoriamente a uma conclusão.

O exemplo porventura mais impressionante que Carroll dá de uma obra de arte cuja correcta interpretação supostamente requer que façamos menção às intenções efectivas do autor, ainda que possamos, ignorando tais intenções, chegar a uma interpretação que torna a obra esteticamente mais gratificante, diz respeito a um filme de ficção científica série B (ou C) de 1959, Plan 9 from Outer Space, de Edward Wood. Carroll afirma que o filme de Wood, que contém incoerência narrativa e descontinuidades de edição, não é apropriadamente visto como algo que “transgride arrojada e provocadoramente os códigos de Hollywood” (como sugeriu o crítico de cinema de Village Voice, J. Hoberman) porque Wood não tinha as mesmas intenções cinematográficas dos vanguardistas das décadas de 1970 e 1980, com quem Wood é agrupado nesta sugestão. Concordo certamente com Carroll em rejeitar a interpretação de Hoberman — por contraste com uma recomendação prática para lidar com o lixo de um modo tão gratificante quanto possível — mas não estou convencido de que as intenções semânticas efectivas de Wood tenham de ser chamadas à discussão. Pois não poderemos nós afirmar que uma intenção expressiva como a que Hoberman atribui a Wood simplesmente não é a nossa melhor hipótese acerca dessa intenção, dados todos os indícios apropriados, internos e externos, como o sólido historial de filmes a metro realizados por Wood? Na verdade, se o lermos atentamente, é precisamente isso o que Carroll parece dizer:

Todos os indícios sugerem que Edward Wood não tinha as mesmas intenções, de subverter o estilo cinematográfico de Hollywood, que os vanguardistas contemporâneos. Na verdade, dado o espaço em que Wood se movia , parece que a melhor hipótese acerca das suas intenções é a de que ele procurava imitar o estilo cinematográfico de Hollywood do modo mais reles possível. Dado o que sabemos acerca de Edward Wood e o mundo do cinema série B em que este praticava o seu ofício, é implausível atribuir-lhe a intenção de procurar subverter os códigos cinematográficos de Hollywood [ênfases minhas].45

Assim, a intenção autoral [ou, neste caso, do realizador...] conjecturada é perfeitamente adequada para lidar com o exemplo do filme de Wood, ou seja, evitar atribuir-lhe um significado e mérito vanguardistas. Embora a intenção do realizador na nossa interpretação hipotética do significado cinematográfico seja um foco crítico, daqui não se segue que a intenção semântica efectiva de um realizador, plausivelmente conjecturável ou não, é determinante desse significado.46

X

Carroll reúne outras considerações, todavia, que denomina “ontológicas”, argumentando contra o anti-intencionalismo radical de Barthes e de Beardsley. Barthes afirma que quando a linguagem se divorcia dos propósitos comunicativos normais e é narrada “intransitivamente”, como na literatura, o autor e as suas intenções tornam-se imediatamente irrelevantes e o leitor é, ao invés, libertado “para explorar o texto em todas as suas associações intertextuais.”47 A resposta de Carroll a isto é astutamente céptica:

Não estou certo de que uma vez que a linguagem seja usada “intransitivamente”, o autor se torne irrelevante, visto que a identificação de tal uso parece depender de se fixar a intenção de trabalhar em determinados géneros ou formas [ênfase minha] pelo autor, nomeadamente, nas que funcionam de modo intransitivo. Ou seja, como há-de o intérprete saber que o escrito em causa é do género apropriado para ler de uma maneira conscientemente literária sem menção de intenções autorais?48

Isto acerta em cheio no alvo, mas a ideia a assinalar é que as intenções autorais reais que é crucial entendermos bem aqui são as intenções categoriais, não as semânticas, ou seja, as expressivas ou simbólicas.

Noutra observação deste género Carroll afirma, à luz de trabalho realizado em cinema, dança e pintura, bem como literatura, que sucedendo que na arte nos interessamos frequentemente no fazer, temos também de estar interessados em intenções, pois uma acção só é a acção que é em virtude da intenção que a informa. Mas aqui eu deixaria a sugestão de que quando o “fazer” em causa é semântico, por exemplo, simbólico ou expressivo, por contraste com o criar, enquadrar, projectar, está-nos aberto atribuir esse “fazer” directamente à obra e só indirectamente ao artista, em virtude do seu “fazer” — a realização de acções — dessoutro género. E isso significaria que no respeitante à arte, o nosso interesse no que foi feito não nos levaria mais longe do que as intenções categoriais efectivas dos artistas, reconhecendo às intenções semânticas idealmente conjecturáveis um peso na fixação do que se quis dizer, se é que se quis dizer algo.

Isto leva-me, por fim, a uma sugestão dada por Carroll quando discute a tese de Beardsley, de como a literatura envolve sempre a representação de acções ilocutórias — declarar, questionar, relatar, discursar, arengar — e nunca a efectiva realização dessas acções — por exemplo, pelo autor. Depois de observar justamente que nem toda a literatura é, em primeiro lugar, ficcional, Carroll propõe que se justifica, mesmo tratando-se de ficção literária, postular universalmente um falante ou narrador implícito distinto do autor, isolando deste modo o declarar, questionar, e assim por diante, que não raro parece provir do indivíduo real cujo sangue, suor e lágrimas aparentemente entraram no livro. Carroll dá-nos a sua defesa mais forte a favor disto em conexão com o que se poderia denominar romances ensaísticos ou didácticos, tais como Guerra e Paz de Tolstoy, A Montanha Mágica de Mann e Em Busca do Tempo Perdido de Proust. Acerca das partes discursivas desses romances, por exemplo, o discurso sobre baleias em Moby Dick de Melville, Carroll afirma que “embora inseridos em ficções, nas quais desempenham inegavelmente uma função literária, trata-se também de ensaios cujos autores os produziram de modo a fazerem asserções. Ao interpretar estes interlúdios há que os abordar como faríamos com qualquer outra forma de discurso cognitivo.”49

Embora reconheça a motivação para querer ligar as perspectivas expressas em obras literárias aos autores dessas obras, creio que não se pode fazer isto tão facilmente como Carroll gostaria, mesmo no caso desses quase-ensaios. Isto porque as partes de “não ficção” numa obra essencialmente ficcional têm de ser, sob pena de incoerência, primeiro atribuídas a um orador ou narrador implícito, do género que Beardsley (na esteira de Wayne Booth) invoca. Procurarei explicar porquê. O narrador de um romance é fundamentalmente alguém acerca de quem concordamos fingir que nos fala acerca de pessoas e acontecimentos que, evidentemente, sabemos serem ficções. Ou seja, sabemos que, em geral, as pessoas no “mundo” do narrador não existem realmente e os acontecimentos desse “mundo” não tiveram realmente lugar. O narrador é, portanto, ele próprio um género de personagem ficcional, que está em “contacto” com coisas que desconhecemos e que “acredita” em coisas nas quais não acreditamos; ele ou ela não pode ser entendido como um indivíduo real exprimindo crenças reais. Mas as porções ensaísticas de textos como Moby Dick de Melville ou A Montanha Mágica de Mann são entendidas como emanando da mesma persona, a mesma voz que relata a narrativa das pessoas e acontecimentos ficcionais: há referências cruzadas, alusões, semelhanças estilísticas, auto-identificações explícitas, e assim por diante. Estes trechos ensaísticos têm, portanto, de ser as elocuções directas do ficcional narrador das ficcionais ocorrências do romance. Não podem logicamente ser pronunciamentos imediatos da pessoa real do autor — Thomas Mann, digamos — porque Mann, ao contrário do seu narrador, não é alguém que acredita em Hans Castorp e Clavdia Chauchat e que relata o encontro de ambos num sanatório suíço. Com isto não se nega que temos amiúde o direito, em virtude de uma mais abrangente compreensão do contexto total da comunicação literária envolvida, a inferir portanto, em certos casos, que o autor praticamente fala, chegando mesmo por vezes a pregar aos leitores na sua própria pessoa, por intermédio da pessoa do narrador. Mas num romance tradicional, que não é auto-desconstrutivo, o narrador continua a ser o locus imediato de todos os pronunciamentos ostensivamente directos.

Supor que os trechos narrativos e os ensaísticos, em A Montanha Mágica ou em Moby Dick, provêm de fontes diferentes ameaça a integridade artística dessas obras ambiciosas — tornam-se algo que nem é ficção nem não-ficção.50 Só se a premissa ficcional estiver em vigor do princípio ao fim, não importa quão transparentemente, será possível interpretar esses romances de um modo inteligível e favorável. Pois sem um tal pressuposto, a unidade mínima de voz ou identidade narrativa necessária para conceber os textos como totalidades desaparece.

Assim, esta tentativa de estabelecer o intencionalismo semântico, pelo menos para os trechos ensaísticos dos romances, não me parece ser bem-sucedida como Carroll sugere que seja. E se aqui não o é, poder-se-ia com razão perguntar, onde então o será?

XI

A posição a que dou preferência situa-se algures no espaço lógico entre a adoptada por Carroll, no ensaio que acabámos de discutir, e a defendida por Daniel Nathan, num ensaio que estou prestes a discutir.51 Discordo de Carroll, insistindo explicitamente que o intencionalismo mais defensável é do tipo hipotético ou construtivo. Poderíamos considerar isto uma versão “esquerdista” do intencionalismo. Discordo de Nathan, por outro lado, sugerindo que o anti-intencionalismo mais defensável — do qual o intencionalismo hipotético poderia ser visto como uma versão “de extrema-direita” — tem de reconhecer um contexto de recepção textual pelo leitor consideravelmente mais amplo e mais repleto do que aquele que Nathan se dispõe a considerar.

Nathan concede que um texto literário, para ser apropriadamente interpretado, tem de ser compreendido como algo que existe numa língua, num sentido relativamente pleno, ligado aos usos de um tempo e lugar particulares, com todos os aspectos conotativos e associativos intactos.52 Quando a língua do texto é assim compreendida e quando se tem o cuidado de considerar o texto completo envolvido, afirma Nathan, estamos numa posição adequada para atribuir a esse texto o melhor sentido que se lhe pode atribuir, inclusive tratando-se de um texto irónico ou metafórico. Deste modo, afirma, se justifica “a suficiência das convenções de uso públicas para resolver questões de significado.”53

Creio, porém, ser claro que se esta noção algo ténue do contexto público de um texto é suficiente em alguns casos para permitir discriminar o seu conteúdo literário, há muitos casos em que não o será — muitos casos em que confinar a nossa projecção do significado da obra ao que se pode fazer assentar no texto e na língua pública específica em que está escrito não corresponderá ao que a opinião crítica arreigada ou o juízo ponderado tomariam ao invés como seu conteúdo. A noção que Nathan tem de contexto é simplesmente demasiado restrita para o que se pretende — permitir que o conteúdo pleno de uma obra venha à superfície — porque não se trata de um contexto autoralmente específico. Dois escritores redigindo os mesmos textos na mesma língua pública de um dado tempo e lugar podem ainda assim acabar dizendo coisas diferentes, em virtude das suas identidades nacionais, do seu percurso no mundo, dos círculos a que pertencem, do modo como são as suas outras obras, e assim por diante, sendo tudo isto relevantemente aplicado por potenciais leitores, que irão assim especificar, de formas subtis, qual a elocução completa que cada escritor faz ao usar o texto em causa — em literá-lo, por assim dizer, a partir de quem ele ou ela é. Em ligação com isto, Nathan não vê que a informação específica acerca das outras obras de um autor, a posição geral deste na vida cívica, e assim por diante — e não somente o que é dado no texto ou no seu modo observável de apresentação — podem servir para modificar ou revogar aquilo que ele designa como “pressupostos iniciais de fundo”54 para interpretar um trecho de discurso a o modo usual da língua pública.

Considere algo tão simples e oportuno como o juízo de que uma dada coluna de jornal (ou história, poema, etc.) é ou não racista (sexista, etarista, anti-semita, etc.). Parece que não formamos tais juízos — o que é apropriado — somente a partir da língua do próprio texto e suas ressonâncias conotativas actuais. Ao invés, nada é mais comum do que considerar o género, a geração e a identidade étnica do autor, a sua persona pública, o seu historial de textos ou de intervenção na esfera política em geral, e quaisquer crenças peculiares ou opiniões emblemáticas que se tornaram parte da mundividência conhecida do autor. Além disso, esses escritores esperam dos seus leitores que tenham isto em consideração como estrutura de fundo para avaliar a força e significado do que efectivamente é dito. Quando William Buckley escreve algo, significa uma coisa; quando Richard Cohen, ou William Raspberry, ou Judy Mann, ou Dorothy Gilliam escrevem a mesmíssima “coisa”, aproximadamente no mesmo lugar e tempo, pode significar algo diferente.55 Não se trata de afirmar que não se pode exprimir em forma impressa uma perspectiva ou atitude contrária ao que seria de esperar para um ou outro dos nossos “grupos de identificação” ou até o nosso próprio eu pretérito específico, mas isto exigirá decisões cuidadosas acerca de como escrever e o quê, de maneira a consegui-lo. No mínimo, um autor que descura considerar o cenário de fundo do leitor informado a respeito de qual a “filiação” pública do autor, para usar a expressão comum, decerto não comunicará eficazmente o que ele ou ela deseja comunicar. Devo salientar que embora a minha ilustração se refira a escritores jornalísticos de não-ficção, a moral da história aplica-se claramente, ainda que de um modo mais indirecto, aos escritores de ficção literária.

Pelo menos os seguintes são com alguma plausibilidade elementos em contextos interpretativos relevantes, autoralmente específicos: os pronunciamentos teóricos auxiliares do autor, o restante da sua obra, a obra daqueles seus contemporâneos de quem estava ciente, os movimentos sociais ou desenvolvimentos políticos da época que tiveram um impacto visível sobre ele e a sua participação em movimentos artísticos ou a sua identificação pessoal com os mesmos. A genuína questão, quanto a mim, não é a de qualquer destas coisas ser ou não relevante, como um membro da Nova Crítica se poderia questionar — parece-me incontestável que o seja — mas antes a de quais são os limites da contextualidade autoral específica relevante.56 Quão individualizado poderá ser um contexto a partir do qual um autor, no seu próprio ver, escreve, e quão profunda a apreensão desse contexto que um autor — em particular um autor literário — poderá legitimamente esperar de um leitor, ainda que ideal? Não tenho para isto uma resposta que não seja ad hoc, mas creio ser nela que a discussão futura se deveria centrar. Onde poderá haver acordo entre mim e Nathan é em estar excluído desse contexto, pelo menos, qualquer facto acerca do estado mental efectivo ou atitude do autor durante a composição, em particular aquilo a que me referi como as suas “intenções semânticas” para um dado texto.

Nathan observa justamente que “o autor real tem sempre de ter a intenção... de que o significado [de uma obra] seja ostensível de uma forma suficientemente pública, para que assim não tenha de a acompanhar pessoalmente de modo explicar o significado que nela depositou. Os autores reais pretendem criar uma obra que seja possa subsistir por si, apresentar a sua obra ao mundo completa , capaz de ser compreendida pela audiência a que se destina.”57 A minha resposta a isto é uma afirmativa reservada: sim, mas porventura só quando essas audiências têm em mente a natureza específica do autor, o conjunto das suas obras, os seus antecedentes, o seu desenvolvimento intelectual, e assim por diante. A obra, se for boa de todo, subsistirá por si, sem o autor por perto para explicar regularmente o que queria dizer — mas só se entendida como obra desse autor específico, com tudo o que isso implica.

O significado literário gera-se a partir do conhecimento partilhado entre um autor e os seus leitores, mas não há razão para pensar que o autor deve depender de uma comunicação com base apenas num conhecimento partilhado do mundo e da língua em geral, em vez de no mundo e linguagem “próprios” do autor, mais individualizados, acerca do que um leitor ideal se procurará informar, em razoável medida. Isto não tem de exigir ao leitor — além de que não o deve fazer — um conhecimento “interno”, por assim dizer, que só pudesse estar na posse de familiares, secretárias privadas e videntes — tanto quanto exige o conhecimento publicamente acessível da identidade cultural e situação distintivas do autor. Pois é isso o que, em parte, permite a criação e comunicação de veículos estéticos com conteúdos mais ricos e matizados do que se excluirmos a possibilidade de os leitores chegarem aos autores com algo mais do que o conhecimento comum do mundo e da linguagem no seu equipamento interpretativo. Por que razão deveriam os autores ser forçados a apresentarem-se no palco literário senão como S eres Humanos Típicos , despidos das suas identidades e passados individuais, atrás de uma espécie de “véu da ignorância” crítico? Por que razão deveríamos aceitar somente os conteúdos mais estiolados ou generalizados que os seus escritos irão alcançar se insistirmos em considerá-los desse modo?

XII

Propus que o leitor ideal, no seu esforço de conceber uma intenção comunicativa maximamente plausível para o autor, relativamente a uma dada obra, deveria ter em conta as características intrínsecas do texto, as convenções operativas e normas da língua e do estilo envolvidos e também uma série de factores contextuais autoralmente específicos embora públicos, mas deveria deter-se aquém dos efectivos pronunciamentos de intenção pelo autor em comunicar isto ou aquilo. Foi objectado que esta suspensão de indícios relevantes é arbitrária e que portanto deveria ser abandonada, o que teria como consequência, em desfavor do intencionalismo hipotético, que o intencionalismo efectivo e o intencionalismo hipotético sempre haviam convergido nas hipóteses por eles geradas quanto ao que uma obra literária significa.58

A minha resposta a este desafio é a seguinte. Primeiro, mesmo que as hipóteses geradas sempre tivessem convergido, haveria ainda uma diferença teórica quanto à razão pela qual se haveria de identificar essas hipóteses com o significado da obra — que num caso se trata simplesmente do que o autor quis dizer, e que no outro se trata da melhor projecção daquilo que o autor quis dizer, na perspectiva de um leitor ideal — e procurei defender que o intencionalismo hipotético está correcto acerca deste aspecto.

Segundo, é provavelmente uma das regras básicas do jogo de decifragem literária supor que as obras literárias não precisam de autores para explicar o seu significado e portanto que os pronunciamentos autorais de significado directos podem ser postos de parte pelo leitor que se dedica à tarefa central da interpretação. A tarefa de intuir o nosso caminho para uma interpretação óptima da intenção autoral acerca de um texto que emerge de um contexto público rico, autoralmente específico, simplesmente difere da tarefa de descobrir a verdade acerca da intenção do autor a respeito de um dado texto, a partir de todos os indícios disponíveis, sejam estes de que tipo forem — diarísticos, jornalísticos ou electroencefalográficos. Embora enquanto apreciadores de literatura tenhamos o direito a interpretar, e de nós se espere que interpretemos a dádiva de um autor sobre o pano de fundo das suas obras anteriores e da sua identidade pública como escritor, bem como à luz das intenções explícitas desse autor sobre como a obra é para ser abordada no plano categorial (por exemplo, como um romance histórico), está-nos, creio, implicitamente vedado permitir que as proclamações de um autor acerca do significado alcançado tenham um papel indiciário na construção de uma imagem do que mais razoavelmente se supõe que o autor procurava comunicar por meio do texto apresentado nesse contexto. Evidentemente, essas declarações de intenção podem ter um papel sugestivo a respeito dessa construção, mas esse é outro assunto.

Em terceiro lugar, porém, suponha-se que continuamos a duvidar de que a prática de interpretar a literatura envolva qualquer delimitação semelhante do que é para ter em conta ao formular hipóteses acerca do que se pretendeu que os textos tomados no contexto comunicassem, e portanto que nessas formulações é apropriado dar atenção aos pronunciamentos autorais de significado directos . Decerto que persistirá pelo menos esta diferença entre a tarefa interpretativa de um leitor de literatura e a de alguém dedicado a averiguar, por quaisquer meios disponíveis, os factos acerca da intenção autoral. Designadamente, que na tarefa anterior se dará uma importância secundária aos pronunciamentos directos de um autor — um estatuto provisório, facilmente desconsiderável a virtude de outros factores na situação total — ao passo que na última tarefa dar-se-á a esses pronunciamentos, ainda que porventura nem sempre sejam determinativos, uma importância fulcral, pelo menos igual à que se atribui a quaisquer indicações mais internas.

XIII

Um fenómeno literário acerca do qual poderíamos pensar que requer em absoluto um tratamento intencionalista efectivo é o da alusão, seja de uma obra a outra ou de uma obra a um dado material extraliterário. Sucede que Göran Hermerén apresentou recentemente uma análise detalhada deste fenómeno, num ensaio dedicado ao tópico.59 Como Hermerén muito sensatamente reconhece, aludir é realizar uma acção e as acções são realizadas por agentes, pelo que a existência e identidade de uma alusão, uma acção sofisticada de referir, pareceria vinculada a uma intenção concreta por parte de algum agente.60 Assim, se há alusões numa obra de literatura e se estas fazem parte do seu significado num sentido amplo, então o significado ao que parece dependerá directamente, em parte, de certas intenções semânticas do autor.

O fenómeno da alusão levanta claramente o caso porventura mais difícil para qualquer tipo de não-intencionalismo completo acerca do significado das obras literárias. Uma vez que o intencionalismo hipotético é, de uma certa perspectiva, uma variedade de não-intencionalismo acerca do significado das obras, alguma acomodação com a alusão, se possível, justifica-se.

Penso que se distinguirmos entre a) a alusão como propriedade de um autor ou do acto de um autor ao criar uma obra e b) a alusão como propriedade de uma obra, então há pelo menos um sentido da última que não depende da anterior nem lhe está vinculado — ou seja, ao acto de aludir do autor efectivo — mas somente à projecção razoável de um acto semelhante, seja ou não efectivamente realizado. O que sugiro é que se pode entender que a alusão da obra, por contraste com a alusão do artista, funciona contextualmente — sendo a noção de contexto altamente específica do artista — não exigindo a vontade ou conhecimento de um autor para garantir a referência envolvida.

A referência alusiva de uma obra a outra pode ser vista como independente, se não do contexto concreto em que a obra é gerada e apresentada, pelo menos do acto efectivo de referência, caso haja algum, por parte do artista. E aí é a obra, tomada no seu contexto, mais razoavelmente interpretada como veículo de uma alusão pelo criador.

Consideremos o caso de um título que seria entendido como uma alusão manifesta, dado o pleno conhecimento do autor e do estilo, mas que não foi visado ou considerado desse modo pelo autor. Creio que poderíamos dizer que a obra alude a este item anterior mesmo que o autor não estivesse a fazer uma alusão ao dar-lhe esse título, uma vez que se trata de uma projecção defensável de intenção do autor, por uma audiência apropriadamente informada. Como é evidente, em todo o caso, semelhante obra será interpretada pelos elementos mais bem informados do seu público — na verdade, sê-lo-á em particular por esses — como se o autor estivesse a aludir, no sentido robusto. Assim, não parece inapropriado denominar este aspecto da obra, a que tais leitores estariam a reagir, como o seu carácter alusivo.

Eis um exemplo concreto. Uma secção do notável romance de Bruce Duffy, The World as I Found It,61 acerca das vidas, ideias e interacções, romanceadas é certo, de Ludwig Wittgenstein, Bertrand Russell e G. E. Moore, tem por título “Uma Proposta Modesta”. A secção lida com a preparativos mentais e os avanços propriamente ditos de Russell com uma bela e jovem professora belga que veio recentemente trabalhar na escola que ele fundou no meio rural inglês, e segue-se directamente a uma secção cujo enfoque são as tolices destrutivas de um aluno desajustado, recentemente colocado na escola, de quem Russell e a esposa estão aflitos por se livrarem. Dado assim um semelhante contexto interno e supondo também a origem irlandesa do autor, parece inevitável que o título em causa seja entendido como uma alusão ao famoso ensaio de Swift sobre a fome da batata na Irlanda e a naturalidade de a amenizar consumindo crianças e portanto eliminando o excesso das mesmas. Assim, o título combina impecavelmente as duas secções em causa, descrevendo com um toque de litotes a substância da secção em que está inserida, tal como, no seu aspecto alusivo, torna explícito o género de solução drástica para o problema dos diabretes indesejados, que se sugere Russell, em momentos mais extremos, poderá ter sido levado a contemplar, ainda que somente de um modo inócuo.

A ideia a firmar agora é que insistiríamos ainda em manter a atribuição de alusão ou carácter alusivo, em algum nível, mesmo que se determinasse que o próprio Duffy improvavelmente ignora o ensaio de Swift e se lembrara do título para esta secção somente como um rótulo desaprovador para as algo imodestas ambições priápicas de Russell — e portanto que ele, Duffy, não estava de modo algum a fazer uma alusão literária a Swift. E é por isso que teríamos ainda inteira razão, como leitores competentes, para atribuir semelhante intenção e acção a Duffy, dados os indícios internos do seu romance e os indícios externos da sua posição pública como um autor anglófono instruído do séc. XX.

Consideremos de seguida, em prol da diversidade, um exemplo musical. A primeira ideia na secção final Galop da Masquerade Suite de 1944, por Khatchaturian, alude, a meu ver, à secção “Baile dos Pintainhos nas suas Cascas” em Quadros de Uma Exposição de Mussorgsky, na orquestração de 1922 por Ravel. Digo isto porque a semelhança é impressionante — melódica, instrumental e expressivamente — e porque Khatchaturian se formou e estava arreigado na tradição da música orquestral russa, e assim seria de esperar que estivesse familiarizado com os Quadros de Mussorgsky-Ravel. Eu diria que a atribuição de carácter alusivo, e não somente de reminiscência, se mantém ainda que a) Khatchaturian negasse qualquer intenção alusiva, b) Khatchaturian não se lembrasse realmente de alguma vez ter escutado os Quadros de Mussorgsky-Ravel, e ainda que, o que seria mais extraordinário, c) Khatchaturian, por alguma coincidência, nunca tivesse tido qualquer contacto com os Quadros de Mussorgsky-Ravel, bloqueando assim a sugestão de uma intenção alusiva inconsciente, não reconhecida. Evidentemente, neste último e mais controverso exemplo, não poderíamos afirmar que Khatchaturian aludia aos Quadros de Mussorgsky-Ravel, mas poderíamos, creio, afirmar correctamente que aquela secção da peça, como escrita por um compositor com o perfil e situação histórico-musical de Khatchaturian, o fazia. E isto, para estabelecer a ligação entre o caso e a nossa análise básica, é porque essa intenção alusiva seria tal que teríamos toda a justificação para a atribuir hipoteticamente a Khatchaturian, dado o carácter intrínseco da música e o seu contexto integral de criação. A música acaba significando isso — sendo alusiva aos Quadros de Mussorgsky-Ravel — num patamar que se torna independente de uma intenção alusiva real de Khatchaturian ou da ausência da mesma.62

XIV

Aqueles que, à semelhança dos intencionalistas hipotéticos, preservam uma distinção lógica estrita entre o que um texto ou obra significam e o que um autor quer dizer ao escrevê-la poderão ainda perguntar se o que uma passagem de texto significa é ou não também legitimamente entendida, num certo sentido, como o que o autor quis dizer. Será que um autor quer dizer M se o seu texto, cons cientemente projectado , significa M?

Devido a uma profunda ambiguidade na noção do que um autor quer dizer ao escrever um texto, não há uma resposta simples. Se a passagem significa M e ocorre numa obra literária cons cientemente projectada pelo autor em conformidade com as regras e convenções do jogo literário, então presumivelmente o autor quer dizer M no sentido amplo, ou indirecto, de que o que ele quer dizer é o texto e o texto significa M, de modo que por uma certa transitividade acaba querendo dizer M. Dito de outro modo, um autor decerto pretenderá que o texto que apresenta no palco literário tenha qualquer que seja o significado, interpretado adequadamente e com sensibilidade ao contexto, que é capaz de ter. Mas estas admissões não implicam que o autor quis dizer M no sentido estrito ou directo. O autor reconhecerá, sem dúvida, que ele quer que a obra tenha o significado que tem, mas não necessariamente que ele quer que a obra signifique M, sendo que o conteúdo de M figura explicitamente no pensamento. E em alguns casos um autor poderia pretender explicitamente um significado M1 e prever mas não pretender um significado M2. Ou seja, o autor reconhece M2 mas não o tem como objectivo. Portanto, poderíamos ainda afirmar no sentido amplo, embora não no sentido estrito, que o autor quis dizer M2 caso a sua obra signifique M2.

Ao longo deste ensaio, uma das minhas principais preocupações foi a questão do potencial hiato entre 1) o que um autor pretendeu comunicar ao escrever o seu texto e 2) a melhor interpretação ou conjectura, por um leitor ideal, dessa intenção, dado um conhecimento substancial do contexto sincrónico e diacrónico, relevantemente aplicado, do autor e do texto. O hiato reduz-se a nada se considerarmos que 2 na verdade constitui 1, tal como a assertibilidade justificada, de acordo com alguns filósofos, é equivalente à verdade ou substituível à mesma. Mas resisto a um tal desaparecimento do hiato, pois aquilo que mais razoavelmente atribuiríamos, ainda que dispondo de todo o conhecimento relevante como leitores visados, pode não ser o que efectivamente sucede, em questões de psicologia e semântica.63

Mesmo numa perspectiva neo-wittgensteiniana da intenção, como a preferida por Lyas e Carroll, é possível haver divergência entre a intenção efectiva e a melhor intenção hipotética na perspectiva de um leitor ideal, mesmo deixando de lado factores como a incompetência ou desorientação autoral, normalmente invocada a este respeito. Em casos como os que tenho em mente, a intenção efectiva de um autor estaria inserida no mundo, mas em aspectos da situação completa da vida e actividade do autor não abertos a um leitor apropriado da obra e não desempenhando portanto qualquer papel adequado na imputação pelo leitor de uma melhor intenção semântica ao autor, a propósito do texto em causa.

Deste modo, acabamos por chegar nem ao intencionalismo nem ao anti-intencionalismo mas à forma de não-intencionalismo a que chamo “intencionalismo hipotético”. O anti-intencionalismo está correcto em pensar que a intenção efectiva não é estritamente determinante ou criterial para o significado básico de uma obra, mas o intencionalismo está correcto, em primeiro lugar, na medida em que a nossa noção de significado de uma obra é tal que faz essencialmente referência às intenções do artista, como plausivelmente projectáveis por uma audiência informada, e em segundo lugar, na medida em que, numa diversidade de casos (“os bem-sucedidos”), o significado artístico e a intenção efectiva concreta do autor coincidem de modo feliz.

Knapp e Michaels lançaram a palavra de ordem de que “não há significado sem intenção”.64 Concordaria, no que diz respeito à literatura, não pelas razões intencionalistas extremas que apresentam, mas porque aquilo em que consiste algo ser de todo uma obra literária, em vez de um conjunto de formas desprovidas de significado ou até uma sequência verbal abstracta numa língua concreta, é ser visado para um tipo de recepção cujo carácter é dado pela tradição e história da literação — consiste em ser criado e concebido com essa recepção possível em mente. Mas a indissolubilidade entre a literatura e esse género de intenções categoriais não implica que numa obra literária não haja nem possa haver significado além do que o autor efectivamente quis que ela tivesse. Temos, em última análise, o direito e prerrogativa de reconstruir racionalmente o que um autor quis dizer, numa obra, como algo diferente do que, em privado e em boa verdade, ele efectivamente queria dizer, desde que nos tenhamos posicionado optimamente para receber a elocução deste autor particular, histórica e culturalmente enraizado .

Jerrold Levinson
The Pleasures of Aesthetics (Cornell University Press, 1996), pp. 175-213.

Notas

  1. Os autores de que me ocuparei participaram todos num volume em que o meu ensaio originalmente apareceu, Intention and Interpretation, org. Gary Iseminger (Filadélfia: Temple University Press, 1992).↩︎
  2. A minha perspectiva nestas matérias resulta em grande parte da teoria da interpretação esboçada por William Tolhurst em “On What a Text is and How It Means”, British Journal of Aesthetics 19 (1979): 3–14, embora sugira refinamentos e suplementos ao que ele aí propõe. A perspectiva a que dou preferência é também afim à que se encontra em Alexander Nehamas, “The Postulated Author: Critical Monism as a Regulative Ideal”, Critical Inquiry 8 (1981): 133–149 — pelo menos numa leitura desse ensaio.↩︎
  3. Ver E. D. Hirsch, Validity in Interpretation (New Haven: Yale University Press, 1967) e The Aims of Interpretation (Chicago: University of Chicago Press, 1976); P. D. Juhl, Interpretation (Princeton: Princeton University Press, 1980) e Mary Sirridge, “Artistic Intention and Critical Prerogative”, British Journal of Aesthetics 18 (1978): 137–154. Defesas mais recentes do intencionalismo efectivo: Annette Barnes, On Interpretation (Oxford: Blackwell, 1988); Gary Iseminger, “An Intentional Demonstration?” em Intention and Interpretation, pp. 76-96 e Noel Carroll, “Art, Intention and Conversation”, ibid., pp. 97–131. Outro autor simpático ao intencionalismo efectivo é Robert Stecker. Ver o seu “The Role of Intention and Convention in Interpreting Artworks”, Southern Journal of Philosophy 31 (1993): 471–490 e “Art Interpretation”, Journal of Aesthetics and Art Criticism 52 (1994): 193–206. Por fim, a mais rudimentar e notória defesa recente do intencionalismo efectivo encontra-se em Stephen Knapp e Walter Benn Michaels, “Against Theory”, em Against Theory: Literary Studies and the New Pragmatism, org. W. J. T. Mitchell (Chicago: University of Chicago Press, 1985) e “Against Theory II: Hermeneutics and Deconstruction”, Critical Inquiry 14 (1987).↩︎
  4. Ver o célebre ensaio de W. K. Wimsatt e Monroe Beardsley, “The Intentional Fallacy”, Sewanee Review 54 (1946). Uma formulação posterior da posição de Beardsley é The Possibility of Criticism (Detroit: Wayne State University Press, 1970). Defesas mais recentes do anti-intencionalismo, mais subtis em alguns aspectos do que em Beardsley, são Stephen Davies, Definitions of Art (Ithaca: Cornell University Press, 1991), Cap. 8, e Daniel Nathan, “Irony and the Artist’s Intentions”, British Journal of Aesthetics 23 (1982): 245-256, e “Irony, Metaphor, and the Problem of Intention”, em Intention and Interpretation, pp. 183–202. O artigo de Susan Feagin, “On Defining and Interpreting Art Intentionalistically”, British Journal of Aesthetics 22 (1982): 65-77, dá um suporte à posição anti-intencionalista, embora sem claramente a subscrever.↩︎
  5. A distinção entre significado da sequência verbal, significado do falante e significado elocutório é claramente apresentada no ensaio de Tolhurst. Foi também objecto de uma recensão útil em Jack Meiland, “The Meanings of a Text”, British Journal of Aesthetics 21 (1981): 195-203.↩︎
  6. Do latim para “recreação” ou “jogo”.↩︎
  7. Ou vários trabalhando juntos, como nas obras co-autoradas.↩︎
  8. Arthur Danto, “Deep Interpretation”, em The Philosophical Disenfranchisement of Art (Nova Iorque: Columbia University Press, 1986), pp. 47-67.↩︎
  9. Tolhurst, “On What a Text Is”, p. 11. Invoquei favoravelmente antes as ideias de Tolhurst sobre interpretação literária no meu “Artworks and the Future”, em Music, Art, and Metaphysics (Ithaca: Cornell University Press, 1990).↩︎
  10. Tolhurst, “On What a Text Is”, p. 13.↩︎
  11. Como veremos, este é realmente o núcleo da questão como a concebo: qual o escopo dos factores contextuais específicos baseados no autor, na génese de uma obra literária, a que se apela legitimamente na construção da nossa melhor hipótese acerca do significado visado? A resposta a isto, sugiro, reside algures entre limitar esse escopo, por um lado, a nada mais do que a língua e século de composição, e alargá-lo, por outro lado, ao ponto de abranger as intenções expressas do autor em significar tal-e-tal como registadas em fontes externas, por exemplo, diários privados, entrevistas gravadas. Como jogadores no jogo de linguagem literário, espera-se dos leitores que tenham em conta muito mais do que o anterior, ficando aquém do último. A questão é onde ao certo, ao longo deste continuum, parar.↩︎
  12. Ligar o significado literário à intenção autoral bem-sucedidamente realizada é central para a explicação que Annette Barnes dá da interpretação no seu livro, On Interpretation, e é também defendido por Robert Stecker nos ensaios citados em notas anteriores. Mas creio que essa estratégia é problemática, porque não há modo de explicar em que consiste o sucesso sem uma noção independente do que uma obra significa ou quando é correctamente compreendida. Vale a pena desenvolver isto.

    A falha básica no apelo a intenções bem-sucedidamente realizadas como critério do conteúdo na arte é que independentemente do modo de significação artística — dizer, exprimir, simbolizar, representar — tem de haver uma noção independente daquilo em que isso consiste, de modo a que a intenção o alcance para ser coerente e inteligível. Se “O tem S”, tal que S é um tipo de significado ou propriedade semântica, for analisada como “A quis que O tivesse S e a intenção de A foi bem-sucedidamente realizada, isto é, O tem S”, então é evidente que nada foi explicado: o termo a analisar reaparece na análise. Há que explicar “O tem S” que não se pressuponha a si própria. O apelo da intenção hipotética ou plausivelmente atribuída consegue isto, ao passo que o apelo à intenção efectiva realizada não. De acordo com o IH, afirmar que a intenção de A em fazer O significar S foi bem-sucedidamente realizada é afirmar que A tinha essa intenção e que O significa realmente S, em que se entende o último não em termos da intenção semântica efectiva de A mas em termos de uma intenção semântica mais plausivelmente atribuída a A por um leitor ou espectador informado. Explicar a posse de uma propriedade semântica S por O — por exemplo, o facto de simbolizar tal-e-tal, de exprimir isto-ou-aquilo, de satirizar este-ou-aqueloutro — em termos de o criador de O ter bem-sucedidamente a sua intenção de S por meio de O, ou mais transparentemente, incutir S a O, é dizer nada que seja útil, independentemente do que S é. Ao invés, a análise desses modos de significação artística têm de envolver uma condição de efeito no observador ou de recepção por uma audiência. Sem isso, a ideia de realizar bem-sucedidamente uma intenção de significar num ou noutro destes modos permanece vazia. A tentativa de compreender o facto de uma obra significar tal-e-tal primariamente em termos das intenções semânticas bem-sucedidamente realizadas do seu criador é simplesmente um beco sem saída.↩︎︎

  13. Ver o seu “Irony and the Author’s Intentions”.↩︎
  14. Ibid. p. 248.↩︎
  15. Quase sucede, mas não chega a isso, que o significado elocutório da Epístola Privada é equacionável ao significado do falante da sua predecessora, a Carta Aberta. Embora a aluna tenha indubitavelmente tido o conteúdo irónico em mente ao escrever a Carta Aberta, não pretende comunicá-lo à sua audiência visada, ou seja, o Professor Silvrestre.↩︎
  16. “Irony and the Author’s Intentions”, p. 250.↩︎
  17. O tom de simpatia aqui para com a noção de Stanley Fish, de comunidades interpretativas é intencional, mas não vai ao ponto de perfilhar a ideia de que é o consenso em desenvolvimento dessas comunidades que fixa, por meio de estratégias de interpretação eleitas, os significados das obras. Ao invés, essas comunidades servem somente para corporizar e exemplificar os tipos de pressuposições de fundo e conhecimento relevante para tentar averiguar os significados literários em geral.↩︎
  18. Não se espera, todavia, que o grau de conhecimento seja o mesmo para autores e leitores. Obviamente, na maioria dos casos, um autor terá controlo sobre as suas próprias obras, tradição, e persona pública num grau muito mais elevado do que o mediano leitor apropriado, com uma atitude favorável.↩︎
  19. A substância desta interpretação resulta de Walter Sokel, Franz Kafka (Nova Iorque: Columbia University Press, 1966) (“Arzt” é alemão para “médico”).↩︎
  20. Modifiquei aqui um exemplo dado por Hirsch, Validity in Interpretation, p. 44 (No texto de Hirsch o nome do gás é “árgon”, mas uma vez que o árgon, ao contrário do cloro, é invisível e inodoro, proporciona uma interpretação ainda mais implausível da frase em causa.)↩︎
  21. Pretendo com esta expressão excluir significados anacrónicos. Um significado anacrónico não é somente o que é improvável um leitor informado atribuir a um dado autor, mas o que o autor não podia, num sentido forte, ter visado. Quero sugerir também uma condição suplementar, nomeadamente, que esses significados, embora não visados, não seriam claramente repudiados pelo autor de um texto cujo significado primário é tal como o projectámos justificadamente em contexto.↩︎
  22. Essa estratégia foi proposta em “Artworks and the Future” como um modo de lidar com o possível conteúdo edipiano de Hamlet de uma perspectiva freudiana, apesar da impossibilidade de Shakespeare ter adoptado qualquer perspectiva semelhante.↩︎
  23. A ideia por trás desta discussão, evidentemente, pode ser feita remontar pelo menos até à noção que Northrop Frye tem de “a apresentação radical”. Um desenvolvimento posterior da importância do género ou tipo de classificação na compreensão da arte é o bem conhecido ensaio de Kendall Walton, “Categories of Art”, Philosophical Review 79 (1970).↩︎
  24. Ver o seu “Wittgensteinian Intentions”, em Intention and Interpretation, pp. 132–151.↩︎
  25. Concedo que têm de ter corporização alhures na situação total, mas em alguns casos isto pode dar-se somente nas disposições comportamentais de um autor para reagir a questionamentos, ou talvez mesmo apenas na ocorrência de determinados estados na cabeça do autor.↩︎
  26. Pode-se encontrar uma sustentação desta perspectiva das intenções categoriais em observações de Richard Wollheim sobre o trabalho que o artista faz ao criar uma obra de arte, no seu “Minimal Art”, em Minimal Art, org. G. Battcock (Nova Iorque: Dutton, 1968) e em Timothy Binkley, “Piece Contra Aesthetics”, Journal of Aesthetics and Art Criticism 35 (1977): 265-277. Ver também o meu “Defining Art Historically” e “Refining Art Historically”, em Music, Art, and Metaphysics (Ithaca: Cornell University Press, 1990).↩︎
  27. “Wittgensteinian Intentions”, p. 28.↩︎
  28. E não, poderia acrescentar, porque o detector de fantasmas tenha detectado algum episódio privado — uma opção que os wittgensteinianos nos intimidariam a pensar que era a única alternativa neste ponto.↩︎
  29. Ver o seu “An Intentional Demonstration?” em Intention and Interpretation, pp. 76-96.↩︎
  30. “Have fair fallen, O fair, have fallen, / so dear / to me, so arch-special a spirit as heaves / in Henry Purcell, / An age is now since passed, since parted; / with the reversal / Of the outward sentence low lays him, / listed to a heresy, here.”↩︎
  31. Adaptado, algo condensadamente, de Iseminger, “An Intentional Demonstration?”, p. 77.↩︎
  32. Se há, como no exemplo presente, uma clara intenção semântica autoral mais-plausivelmente-atribuída-pelos-contextualmente-informados, então a afirmação interpretativa verdadeira é a que se conforma a isso (por exemplo, 1A). Se não há uma tal intenção, então a afirmação interpretativa verdadeira é a que nega a atribuição anterior (ou qualquer uma unívoca) de conteúdo (por exemplo, 1B).↩︎
  33. Parece-me que Iseminger obscurece um pouco as águas quando, ao discutir o uso de uma dada frase-tipo para dizer coisas diferentes, afirma que “quando um dado tipo pode ser usado para dizer mais do que uma coisa, qual seja... entre as possibilidades está sendo usada para exprimir [ênfase minha] num dada ocasião é uma função... da intenção do utilizador” (“An Intentional Demonstration?” p. 17). O problema é que a expressão em itálico é equívoca entre “o que está a tentar ser expresso (pelo falante)” e “o que acaba sendo dito (pelo falante)”, ou seja, entre significado do falante e significado elocutório. O anterior é claramente uma função da intenção do utilizador, mas o último pode ser somente uma função da intenção razoavelmente projectada no utilizador por um ouvinte sensível ao pleno contexto relevante.↩︎
  34. Iseminger, “An Intentional Demonstration?”, p. 27.↩︎
  35. Para mais acerca desta concepção, ver “What a Musical Work Is”, “Autographic and Allographic Art Revisited” e “Titles”, em Music, Art, and Metaphysics.↩︎
  36. Evidentemente, tenho em mente aqui o muito discutido conto de Borges “Pierre Menard, Autor de Quixote”, em que o espanhol seiscentista Cervantes e o francês oitocentista Menard acabam produzindo obras literárias distintas que têm, todavia, textos idênticos.↩︎
  37. Ver os ensaios citados na nota 35 para sustentação deste ponto.↩︎
  38. Ver Michael Krausz, “Intention and Interpretation: Hirsch and Margolis”, em Intention and Interpretation, pp. 152–166.↩︎
  39. Ver o seu “Art, Intention and Conversation”.↩︎
  40. Ver “Interpreting with Pragmatist Intentions”, em Intention and Interpretation, pp. 167–182, onde a ideia é exposta a propósito de uma crítica a Knapp e Michaels.↩︎
  41. Ibid., pp. 169–170.↩︎
  42. Por contraste, uma influente perspectiva continental recente sobre a interpretação, a Teoria da Recepção de Jauss, parece-me, no meu limitado conhecimento da mesma, procurar o tipo de equilíbrio entre autor e leitor que o intencionalismo hipotético representa.↩︎
  43. “Art, Intention, and Conversation”, p. 101.↩︎
  44. Como alertei atrás (n. 30), isto não vai no sentido de negar que essas intenções têm de ser corporizadas algures na situação física do autor e o seu mundo experiencial, mas somente de insistir que podem, em alguns casos infelizes, ser corporizadas de modos não abertos à descoberta mesmo por leitores apropriados da obra publicamente acessível.↩︎
  45. “Art, Intention, and Conversation”, pp. 119–120.↩︎
  46. Carroll é quem mais se aproxima de exibir o seu intencionalismo como realmente do tipo hipotético aqui defendido na n. 46 de “Art, Intention, and Conversation”, p. 130 — nota em que nada encontro com o qual discorde.↩︎
  47. Ibid., p. 111.↩︎
  48. Ibid.↩︎
  49. Ibid., p. 107.↩︎
  50. E não, poderia acrescentar, no modo menos problemático das narrativas do “Novo Jornalismo” de Truman Capote, Normal Mailer, e Tom Wolfe.↩︎
  51. “Irony, Metaphor, and the Problem of Intention”.↩︎
  52. Nathan apela também a características elocutórias observáveis, por exemplo, o gesticular e o tom de voz, no papel que desempenham em dar sentido a elocuções de outro modo menos determinadas. Mas não pode haver, na sua explicação, seja o que for de análogo a isto nos textos escritos, cujas condições de emissão efectiva não fazem parte da face pública da literatura mas, ao invés, permanecem fechadas à observação no estúdio do autor.↩︎
  53. “Irony, Metaphor, and the Problem of Intention”, p. 184.↩︎
  54. Por exemplo. factos sobejamente conhecidos acerca do mundo, como o de que os crocodilos tipicamente não usam sapatos, o que ajuda a desambiguar o significado de uma afirmação como “vendemos sapatos de crocodilo”. Ver ibid., p. 194.↩︎
  55. Trata-se de colunistas, alguns dos quais com circulação nacional, que aparecem regularmente no Washington Post. As suas identidades públicas, respectiva e minimamente, são: branco, anglo-saxónico, protestante, do sexo masculino, conservador; judeu do sexo masculino, liberal; negro do sexo masculino, moderado; caucasiana liberal; negra liberal.↩︎
  56. Ver nota 11.↩︎
  57. Nathan, “Irony, Metaphor and the Problem of Intention”, p. 198.↩︎
  58. Esta objecção foi levantada por Robert Stecker, num artigo apresentado no encontro anual da American Society for Aesthetics, Santa Barbara, Outubro de 1993.↩︎
  59. “Allusions and Intentions”, em Intention and Interpretation, pp. 203–220.↩︎
  60. Deixo de fora muitas complexidades e ressalvas na discussão que Hermerén faz do tópico. Eis, todavia, uma formulação relativamente concisa do que Hermerén aparentemente subscreveria: “Afirmar que um artista ou escritor B alude a outra obra de arte X [do artista A] numa das suas próprias obras Y, é afirmar ou sugerir que ele pretende que quem observa Y se lembre de X e portanto cria Y com características reminiscentes de X; e porque Y tem estas características, os observadores... virão a pensar na obra anterior. Além disso, reconhecerão que é isto o que o artista B, entre outras coisas, queria que fizessem.” Ibid., p. 212.↩︎
  61. Nova Iorque: Ticknor and Fields, 1987.↩︎
  62. Talvez eu tenha exagerado um pouco o grau de semelhança musical entre as passagens em causa, mas a ideia que tento fazer passar não é materialmente afectada. Imagine, por favor, uma semelhança ainda maior entre as passagens do que realmente se verifica, mas sem esquecer que isto é meramente acidental.↩︎
  63. Uma vez mais, “todo o conhecimento interpretativamente relevante” não pode chegar ao ponto de incluir a intenção de significado efectiva do autor, caso contrário 2 coincidiria sempre com 1.↩︎
  64. Ver “Against Theory”.↩︎
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