Devo iniciar dizendo o que penso ser o objeto desta atividade chamada filosofia moral. Consiste em encontrarmos uma maneira de pensar melhor – isto é, mais racionalmente – sobre questões morais. O primeiro passo em direção a isto é: entender as questões que você está levantando. Isto poderia parecer óbvio, mas dificilmente tentamos fazê-lo. Temos de entender o que queremos dizer com expressões tais como “Eu devo”. E entender o significado de uma palavra como esta envolve entender suas propriedades lógicas, ou, dito de outra maneira, o que implica usá-la ou com o que ela nos compromete. Então, se descobrimos que não podemos aceitar aquilo a que ela nos compromete, temos de deixar de pronunciá-la. E isto é, em essência, o que o argumento moral é. A ética, o estudo do argumento moral, é assim um ramo da lógica. Este é um dos níveis do pensamento que concerne ao filósofo moral. Os outros níveis são sobre questões mais substanciais, mas este primeiro, o nível lógico ou metaético, como é às vezes chamado, é o fundamento dos outros.
Uma vez que o tipo de ética que estamos a fazer é um tipo de lógica, ela tem de usar os métodos da lógica. Porém, quais são eles? Como nós descobrimos o que se segue do que, o que implica o que, ou com o que me comprometo ao dizer, por exemplo, “Devo alistar-me no Exército” ou “Devo juntar-me à revolução”? Isto é em parte uma questão geral sobre o método da lógica sobre o qual não me aprofundarei aqui. Posso apenas declarar de qual lado estou ao tratar algumas questões cruciais. Primeiramente, penso ser útil e realmente essencial, e espero que não seja visto como pedantismo, distinguir dois tipos de questões. Chamarei o primeiro tipo de questões formais, e o segundo de questões substanciais. Questões formais são aquelas que podem ser respondidas apelando somente à forma – isto é, às propriedades puramente lógicas – das respostas que propomos a elas. Este é o tipo de questão que nos concerne na meta-ética. Nesta parte do nosso trabalho, não temos permissão para fazer uso de quaisquer suposições substanciais.
Ilustrarei a distinção com um exemplo que não tem nada a ver com ética, porque é um exemplo mais claro que não evoca questões éticas. Ele vem de um artigo bem conhecido dos professores Strawson e Grice (1956) refutando (em minha opinião, com sucesso) uma alegação do professor Quine, em um artigo ainda mais conhecido (1951: algumas afirmações de Quine podem estar corretas, mas é bem claro que Strawson e Grice refutaram esta em especial). Suponha que eu diga “Minha filha de três anos de idade entende a teoria dos tipos de Russell”. Todos teriam certeza de que o que eu disse é falso. Mas poderia ser logicamente verdadeiro. Por outro lado, suponha que eu diga “Minha filha de três anos de idade é uma adulta”. Sabemos que não posso dizer isso de modo consistente se sabemos apenas o significado das palavras, e nada mais. Este não é o caso, obviamente, da primeira proposição.
Isto ilustra a distinção entre o que chamo de questões formais e o que chamo de questões substanciais. E se aplica igualmente a questões morais, que podem também ser divididas nestes dois tipos. Suponha que eu diga: “Nada há de errado em açoitar as pessoas por diversão”. As razões para as pessoas discordarem de mim (veremos adiante o que poderiam ser tais razões) são de um tipo bem diferente do que seriam se eu tivesse dito: “Nada há de errado em fazer o que não se deve fazer”. Sabemos que não posso dizer consistentemente a última frase apenas conhecendo o significado das palavras “deve” e “errado”. Eu poderia, no entanto, dizer consistentemente a primeira proposição, mesmo que pensemos que é algo pavoroso de se dizer – e só uma pessoa perversa diria isto – mas não seria algo logicamente inconsistente.
Não é necessário discutir aqui a rejeição das noções de analiticidade e de sinonímia, levada a cabo por Quine. Strawson e Grice podem estar certos em defender estas noções, mas mesmo se não estiverem, as alegações formais que preciso fazer acerca dos conceitos morais não tem de ser estabelecidas nestes termos, mas somente em termos da noção de verdade lógica, o que Quine, naquele artigo, aceita. Isto ocorre porque os conceitos morais são formais em um sentido ainda mais estrito do que eu sustentei até agora. Isto é, eles não requerem para a sua explicação estipulações semânticas materiais, mas apenas referências a suas propriedades puramente lógicas. As propriedades semânticas das palavras morais têm a ver somente com seus significados descritivos particulares, que não são parte do seu significado no sentido estrito e não afetam sua lógica, embora o fato de que tenham de ter algum significado descritivo, afeta. (Sobre isso ver MT p. 2 e LM p. 122 ssi).
Temos de notar que o exemplo acima de um enunciado moral que todos deveriam rejeitar sob bases lógicas, “Nada há de errado em fazermos o que não se deve fazer”, é um exemplo cujo contraditório (“há algo de errado em fazermos o que não se deve”) é uma verdade lógica. Isto é assim porque “deve” e “errado” são definíveis um pelo outro em termos de suas propriedades puramente lógicas, sem implicar sua semântica ou seus significados descritivos, assim como “todos” e “alguns”, na maioria dos sistemas de lógica quantificacional.
O próximo ponto que mencionarei é algo que será de fundamental importância para o argumento moral. Quando enfrentamos questões do segundo tipo em cada caso citado (questões formais), não temos permissão para apelar a quaisquer outras considerações que não aquelas que podem ser estabelecidas sob a base de nossa compreensão das palavras ou dos conceitos utilizados. Para retomar os dois exemplos: sabemos que não podemos dizer “Nada há de errado em fazermos o que não se deve fazer” porque sabemos o que significam “errado” e “deve”. E sabemos que não podemos dizer “minha filha de três anos é um adulto” porque sabemos o que significam “criança” e “adulto”. Se, para estabelecer que não poderíamos dizer tais coisas, nós tivéssemos que apelar a outras considerações, as questões acerca de podermos dizê-las não seriam formais.
Em geral, em lógica, estabelecemos teses (ao menos no tipo de lógica sobre a qual estou falando, que inclui o tipo que usamos em ética) apelando ao nosso entendimento do uso das palavras, e nada mais. É assim porque a lógica é o fundamento do argumento moral, que é tão importante compreender as palavras. Devemos notar que esta é uma característica do método que advogo, o que o distingue muito radicalmente de quase todas as teorias éticas que vemos sendo propostas atualmente. Todas essas teorias apelam para um ponto ou outro e, no mais das vezes muito frequentemente, para convicções morais substanciais que seus proponentes aceitam, e que eles esperam que seus leitores também partilhem. Embora eu reconheça que muitas pessoas não acreditem na distinção que faço entre questões morais formais e questões morais substanciais, e por consequência, sentem-se livres para usar o que chamaria de convicções morais substanciais para defender suas teorias, eu ainda acho que o meu modo de proceder fornece uma base mais firme para a ética.
Deixe-me dizer muito brevemente as minhas razões para esta confiança. Se estamos arguindo sobre alguma questão moral (por exemplo, sobre a questão “Devo alistar-me no exército?” ou “Devo juntar-me à revolução?”), uma das coisas que temos de ter bem claro desde o início é em que consiste tal questionamento. E isso equivale a dizer, se não vamos dialogar com propósitos cruzados, que temos de ter o mesmo significado nas palavras em que formulamos nossa questão. Contudo, se queremos dizer a mesma coisa através destas palavras, então teremos uma base sólida de acordo (ainda que um acordo formal, e não um substancial), sobre o qual podemos fundamentar nossos argumentos futuros. Se a distinção entre formal e substancial se sustentar, então teremos esse acordo, a despeito de nosso desacordo substancial. Poderemos então, como espero mostrar, usar este acordo formal para testar os argumentos que qualquer um de nós usa para defender seus pontos de vista. Podemos perguntar: “Pode ele dizer isso consistentemente?”, ou “Pode ele dizer isso consistentemente, se ele também diz aquilo?”.
Por outro lado, se as pessoas carregam suas próprias convicções substanciais para dentro dos fundamentos de seus argumentos morais, elas não serão capazes de argumentar convincentemente contra qualquer pessoa que não compartilha de tais convicções. Isto é o que filósofos que chamamos de intuicionistas fazem, e digo com certa confiança que minha posição é muito mais forte do que a deles. Esse é o caso porque não me baseio em nada mais do que aquilo com o que todo mundo concorda entre si quando estão formulando as mesmas questões que estou tentando responder. Esta é a razão para eu dizer que antes do argumento começar, nós temos de concordar com o significado das palavras que vinculamos às nossas questões. Isto é tudo que é requerido para começar.
É o bastante para a questão do método da ética. Eu poderia dizer muito mais para preencher lacunas, e já o fiz em outros textos (ver capítulo 1 de MT); mas agora vou em frente, e vou dizer o que espero estabelecer com este método, e como ele nos ajuda a lidar com questões substanciais reais. No nível formal ou meta-ético, necessito estabelecer só duas teses e, para simplificar, as formularei como teses sobre a palavra “devo” e sua lógica. Eu poderia falar de outras palavras ao invés desta, palavras tais como “correto” e “bom”. Porém, eu prefiro falar sobre “devo”, porque é a palavra mais simples que usamos em questionamentos morais.
Aqui, então, estão duas características lógicas da palavra “devo”, como ela aparece nas questões “Devo me alistar no exército?” e “Devo me juntar à revolução?”. Tais características são parte do que me comprometo se responder “Sim, eu devo”. A primeira é às vezes chamada a prescritividade dos juízos morais. Se eu digo “Sim, devo me alistar no exército”, e digo isso sinceramente e no seu sentido pleno – ou seja, se eu realmente acho que devo – então, eu me alistarei no exército. É claro que existem sentidos mais fracos de “devo” ou de “eu acho que devo”, inferiores ao principal sentido, digamos forte ou completo de “devo”, sentidos nos quais eu poderia dizer “Acho que devo, mas não irei me alistar”, ou “Eu devo sim, mas e daí?”. Qualquer um que viveu uma situação de questionamento moral destas, todavia, (como eu vivi, e na verdade foi uma das coisas que me levou à filosofia), saberá que o propósito principal de se questionar “Devo me alistar?” é ajudar a decidir-se quanto à questão “Irei me alistar?”, e a resposta à primeira, quando possui este sentido, implica na resposta à segunda. Se não fosse assim, que sentido teria levantar a questão?
A segunda característica da palavra “devo” em que me apoio é comumente chamada universalizabilidade. Quando digo que eu devo, comprometo-me com mais do que Eu devo. A prescritividade exige de alguém que afirme “Eu devo”, que ele mesmo se disponha a agir em conformidade ao que disse, ao menos se a afirmação se aplica ao caso, e se ele assim pode agir. A universalizabilidade significa que, ao afirmar “Eu devo”, a pessoa se compromete a consentir que qualquer pessoa nestas circunstâncias também deve. Se dissesse “Eu devo, mas existe outra pessoa, exatamente nas mesmas circunstâncias, fazendo a mesma ação que eu, outra pessoa que é exatamente como a pessoa a que minha ação se refere, mas que não deve fazê-la”, então sobrancelhas lógicas se levantarão em sinal de surpresa. Há algo logicamente estranho aqui. É inconsistente logicamente afirmar, sobre duas pessoas exatamente similares em situações exatamente similares, que a primeira deve fazer e a outra não deve fazer alguma coisa. A similaridade das situações, devo dizer, se estende às características pessoais, e em particular, aos gostos e desgostos das pessoas nestas situações. Se, por exemplo, a pessoa que é açoitada por mim efetivamente gostasse de ser açoitada (algumas pessoas gostam), tal caso mostraria que a situação não é exatamente similar ao que é o caso normal, e esta diferença poderia ser relevante.
Assim, colocando juntas as características da prescritividade e da universalizabilidade, vemos que, se afirmo “Devo fazer isso a ele”, então me comprometo a afirmar não apenas que eu terei de fazer isso a ele (agindo de acordo com a afirmação), mas também que ele deveria fazer isso a mim se trocássemos os nossos papéis com precisão. É assim, como veremos, que o argumento moral força. Devo repetir que não é parte essencial de meu argumento que todos os usos de “devo” tenham essas características. Tudo que defendo por ora é que nós, algumas vezes, quando nos questionamos “devo?”, usamos a palavra deste modo. Dirijo-me aqui àqueles que estão levantando tais questões, e estou certo que muitos o fazem. Se alguém desejasse levantar questões diferentes, poderia ser o caso de ter que usar uma lógica diferente. Todavia, estou certo de que nós, algumas vezes, levantamos questões deste tipo, e discordamos sobre elas, questões prescritivas universais – isto é, sobre o que prescrever universalmente para todas as situações de um determinado tipo, não importando quem é o agente e quem é a vítima. Ficarei satisfeito se puder mostrar como se pode argumentar de modo válido sobre tais questões, cujo caráter lógico é determinado por serem estas questões, i.e., questões prescritivas universais.
Poderia adicionar que o ponto central de termos uma linguagem moral com estas características – uma linguagem cujo significado é determinado apenas por suas características lógicas, e que pode consequentemente ser usada em uma discussão entre duas pessoas com convicções morais substanciais muito diferentes, é que as palavras terão o mesmo significado nas falas de ambas, e elas estarão ambas limitadas pelas mesmas regras lógicas em seu argumento. Se suas diferenças morais estivessem impressas no significado de suas palavras morais (como acontece com algumas palavras morais e como alguns filósofos pensam acontecer, equivocadamente, com todas elas), então elas levariam a propósitos cruzados desde o início da discussão; sua arguição moral entraria em colapso rapidamente, e eles teriam de brigar um com o outro. É por causa deste caráter formal de minha teoria sobre as palavras morais que eu penso ser ela mais útil do que teorias de outros filósofos, que tentam imprimir suas próprias convicções morais dentro do significado das palavras, ou das regras do argumento. Isso é especialmente verdade quando chegamos a tratar de problemas morais acerca dos quais as pessoas têm convicções morais radicalmente diferentes. Se tais convicções infectarem as palavras, estas pessoas não poderão se comunicar racionalmente umas com as outras. Isso é o que vemos acontecer em todo lugar (pense, por exemplo, na África do Sul, onde apresentei uma versão inicial deste artigo). Nesta situação, as teorias que estou criticando não são de nenhuma ajuda, porque as pessoas apelarão a suas convicções, que são opostas, e uma discussão séria e frutífera não pode nem sequer começar.
O próximo ponto que preciso deixar claro é o lugar do apelo aos fatos, no argumento moral. Como já pontuei, primeiro, se pergunto “Devo alistar-me no Exército?”, é preciso ser claro sobre o que quero dizer com a expressão “devo”. Porém, isso não é suficiente. Tenho de ter bem claro o que estou perguntando; contudo, outra parte importante para ter clareza é saber o que implica a expressão “alistar-me no exército”. Em outras palavras, o que estarei fazendo se alistar-me? Há alguns filósofos que usam a expressão “consequencialista” para definir pejorativamente seus oponentes. Eu concedo prontamente que existe um sentido em que devemos fazer a coisa certa, e que se danem as consequências. Todavia, tais filósofos estão de fato em confusão se pensam que, para decidir o que devemos fazer, podemos ignorar o que estaremos a fazer se escolhemos esta ou outra ação, dentre todas as que poderíamos optar. Se alguém pensa que não deve alistar-se no exército, ou que seria errado fazê-lo, sua razão (ou seja, aquilo que em sua opinião torna errado fazê-lo), deve ter algo a ver com o que ele estaria fazendo, por exemplo, se ele se alistasse. Esta é a ação ou série de atos cuja moralidade nos perturba. Alistar-se, nestas circunstâncias (se o tipo de regime em que se vive é como o da África do Sul do período do apartheid) significa comprometer-se a atirar nas pessoas que protestam nas ruas, se o governo assim mandar. Isto é o que tornar-se soldado nesta situação implica. Quem pensa que as consequências, neste sentido, são irrelevantes para decisões morais, não pode ter entendido sobre do que trata a moralidade: ela trata de ações, ou seja, sobre o que fazer, ou ainda, trata do que produzimos no mundo com nossa ação – trata da diferença que faremos no curso dos eventos. Tais são os fatos que temos de saber.
Há algumas teorias éticas, conhecidas geralmente como teorias naturalistas, que tomam os fatos como relevantes para as decisões morais de um modo muito mais direto. Eles fazem isto dizendo que o que as palavras morais significam é alguma coisa factual. Para dar um exemplo direto: se “errado” significasse “o que colocaria em risco o Estado”, então, obviamente, seria errado fazer qualquer coisa que pusesse em risco o Estado, e não deveríamos fazer isto. O problema com tais teorias é o mesmo, com efeito, daquelas mencionadas inicialmente. A teoria torna-se inútil para os fins da discussão moral se os autores inscrevem suas próprias convicções morais dentro da própria teoria; e uma das maneiras de se fazer isso é colocar as convicções no significado das palavras morais. Isto torna impossível a comunicação e o argumento racional entre pessoas que possuem diferentes opiniões morais. Se “errado” significasse o que sugeri acima, alguém que pensasse existir algo moralmente mais importante do que a preservação do Estado, não poderia usar a palavra para debater com um defensor do regime. Um haveria de se alistar no exército, e o outro de se juntar à revolução. Eles simplesmente teriam de lutar.
Porém, não estou fazendo o mesmo que os naturalistas fazem, porque a abordagem que apresentei do significado de “devo” em termos de prescritividade e de universalizabilidade, não incorpora quaisquer convicções morais substanciais na palavra; ela é neutra para os dois participantes em tal disputa, de modo que ambos podem usar consequentemente as mesmas palavras, se eu estou certo, ao discutir seu desacordo. Assim, tenho de dar, e já o fiz parcialmente, uma abordagem diferente de como os fatos são relevantes para decisões morais. Isto se faz via teoria da racionalidade propriamente dita – da noção de razão.
Pode ser útil se começarmos com algo mais simples do que juízos morais: com imperativos simples. Estes dois tipos de atos de fala não devem ser confundidos, pois há diferenças importantes. Mas imperativos como “Aliste-se no exército!” ilustram de maneira bem mais simples o ponto que tento explicar. Eles são o tipo mais simples de prescrições (juízos morais são um tipo muito mais complexo por causa da universalizabilidade). Para tomar um exemplo ainda mais simples: suponha que eu diga “Dê-me chá” e não “Dê-me café”. Digo isto justamente por causa de alguma coisa sobre beber chá ou beber café. Esta é a minha razão para dizer isso. Se beber chá fosse algo diferente, eu poderia não dizê-lo. Eu quero, ou escolho, beber chá, e não café, porque acredito que assim seria beber chá, ou seja, por causa de um (suposto) fato a respeito disso. Espero que, se ficou claro que, mesmo no caso de simples imperativos como este, fatos possam ser razões para expressá-los, então ficará igualmente claro que juízos morais também podem ser expressos por razões, muito embora eles não sejam em si mesmos (ou não só) enunciados de fatos, pois são prescritivos. Seria irracional pedir chá em completa desconsideração do que, de fato, seria beber chá. Note que o que eu acabo de dizer de modo algum depende da universalizabilidade. Deliberadamente, tenho tomado o caso dos imperativos simples, os quais não são universalizáveis. Mais tarde faremos o movimento que depende da universalizabilidade, mas ela não é necessária por agora.
Agora, gostaria de introduzir outro movimento, que também não depende da universalizabilidade e, na verdade, é independente de tudo o que eu disse até aqui. Também é um movimento lógico, que depende do significado das palavras. Concerne à relação entre saber o que é experimentar algo, e experimentá-lo. A relevância disto para o que disse até aqui é que, se temos de saber os fatos sobre o que nós estaríamos fazendo se fizéssemos algo, uma das coisas que temos de saber é o que nós, ou os outros, experimentaríamos se o fizéssemos. Por exemplo, se estamos pensando em açoitar alguém por diversão, é importante que o que estaríamos fazendo se a açoitássemos seria dar à pessoa aquela experiência desprazerosa. Se ela não se importasse, ou mesmo se gostasse, então nosso ato seria diferente em um aspecto moralmente relevante. Então, é importante considerar quais são as condições para afirmar que realmente sabemos como seria uma dada experiência (nossa ou de alguém mais) resultante de nosso ato.
Suponha que a experiência em questão é (como neste caso) um sofrimento de qualquer tipo. Afirmo que não podemos sofrer sem saber que estamos sofrendo, nem saber que estamos sofrendo sem sofrer. A relação entre ter experiências e saber que as temos foi notada já por Aristóteles (1120ª29). Há dois tipos distintos de razões para a última metade da tese que adiantei. O primeiro é que não podemos saber qualquer coisa sem que seja o caso de estarmos experimentando algo (este é o tipo de palavra que “saber” significa). A segunda razão é uma razão particular, e mais importante para nosso argumento: se não tivéssemos a experiência do sofrer, não haveria nada a saber, e nenhum meio de sabê-lo. O conhecimento que estamos tendo a experiência de sofrer é um conhecimento direto, não qualquer tipo de conhecimento por inferência, e, assim, não pode existir sem o objeto do conhecimento (qual seja, o sofrer), estar presente em nossa experiência. É por isso que é tão difícil saber como é o sofrer alheio. Como veremos, a imaginação terá de preencher, de maneira inadequada, o lugar da experiência.
Logo, não podemos estar sofrendo sem ter a preferência, pro tanto, no que diz respeito a isso, de que não deveríamos estar sofrendo. Se não preferimos, em igualdade de condições, que isso pare, então não é sofrimento. A preferência pelo fim do sofrimento é o que se diria, se fosse expressa na linguagem, através de uma prescrição de parar o sofrimento. Assim, colocando as coisas em conjunto, se estamos sofrendo e, portanto, sabemos que estamos, estamos obrigados a assentir à prescrição que manda parar o sofrimento (ceteris paribus). Devemos querer que pare, ou não é sofrimento.
É o bastante sobre o nosso sofrimento presente. Temos agora de ponderar sobre o que está implicado pelo conhecimento que, sob certas condições, sofremos, ou sofreríamos, ou que outro alguém está sofrendo. Tomemos o último caso primeiro. Com o que me comprometo se realmente afirmo que sei como é ser alguém que está sofrendo, ou que sei como é sofrer dessa maneira? A pedra de toque para saber isso me parece ser a questão “quais são as minhas preferências (ou, em outras palavras, a quais prescrições eu dou assentimento) considerando uma situação em que eu fosse colocado exatamente em sua situação, sofrendo daquela forma?”. Se ele está sofrendo aquele tanto, ele sabe que está, e ele tem a preferência por parar o sofrimento (uma preferência de determinada intensidade, dependendo de quão severo é tal sofrimento). Ele, portanto, concorda, com determinada força de assentimento, à prescrição de que o sofrimento deva parar. Esta preferência e este assentimento são parte de sua situação, e, consequentemente, parte do que eu devo me imaginar experimentando caso seja transferido imediatamente para a situação dele.
Perguntei há pouco “Com o que estou comprometido se alegar que sei de verdade como ele está sofrendo?”. Minha tese é: estou eu mesmo comprometido em ter uma preferência de que o sofrimento pare se fosse o caso de eu ser transferido imediatamente para a situação dele com as suas preferências; e a intensidade dessa preferência que estou comprometido em ter é a mesma de sua preferência.
Afirmei que esta seria a minha tese. Mas não argumentei em favor dela ainda, e tal argumento será, certamente, controverso. O movimento que faço é este: se eu estou realmente pensando na pessoa, imediatamente posta naquela situação, como eu mesmo, dependerá de associar-me com as preferências, ou tomar para mim as preferências que aquela pessoa (i.e., eu mesmo) possui. É claro que, como antes, temos de adicionar a cláusula ceteris paribus; pois pode muito bem existir outras coisas que eu prefiro tão intensamente, que superem meu desejo de satisfazer aquela preferência da outra pessoa (a mesma que imagino ser eu). Porém, ceteris paribus, eu tenho de preferir a satisfação da preferência daquela pessoa com a mesma intensidade que eu a teria, estivesse eu naquela situação, com aquelas preferências. Se não as prefiro, então ou não sei realmente como é estar naquela situação com aquelas preferências (não estou as representando plenamente para mim), ou não estou pensando na pessoa, naquela situação, como eu mesmo.
Deixe-me dar um exemplo que ilustre tudo isso. Suponha que alguém foi amarrado e um pneu foi colocado em seu pescoço. Em seguida, o pneu é incendiado com gasolina. Ele está sofrendo em um grau extremo, e por isso sabe que está sofrendo. O que significa que eu sei como é para ele sofrer aquilo? Ou, para colocar em termos de preferências: ele prefere fortemente que parem de queimá-lo daquele jeito; então como seria saber ter tal preferência por tal fim, ou daquela intensidade (dizer, por exemplo, “Não! Não! Parem!”, com tamanha angústia)? Suponha agora que eu alegue saber exatamente como é para a pessoa ter tal preferência e estar sofrendo aquele tanto, e então, se alguém se oferece para fazer o mesmo comigo imediatamente eu diga: “Não me importo; tanto faz para mim”. Isto certamente mostraria que não sei como é estar na condição dele, pois se presume que se estivesse naquela situação, eu teria a mesma preferência daquela pessoa a quem aquilo foi feito. Penso que o mesmo poderia ser mostrado em casos menos dramáticos, e que, quando tivermos feito o devido equilíbrio de outras variáveis (isto é, de preferências contrárias), eu poderia mostrar convincentemente que a tese se mantém, mas não vou defender isto agora, porque quero retirar conclusões disto para meu argumento principal.
Vejamos as teses elencadas até aqui. Temos a prescritividade e a universalizabilidade dos juízos morais, que eu afirmo poder ser estabelecidas através de argumentos baseados no significado das palavras – argumentos lógicos. Depois, temos a necessidade de informação factual correta, se vamos assentir racionalmente a prescrições, incluindo prescrições expressas com “deve”. Por último, temos a tese de que não estaríamos na posse de informação factual correta sobre o sofrimento de outra pessoa, ou em geral sobre suas preferências, a menos que quiséssemos que tais preferências fossem satisfeitas, estivéssemos nós na situação dela com as preferências dela. Note novamente que embora eu tenha alegado que posso estabelecer a universalizabilidade, eu ainda não a usei no argumento. É isto que vou fazer agora, em conjunção com as outras teses.
Suponha que sou eu quem está causando o sofrimento da vítima. Ela quer muito que eu a desamarre. Isto consiste em dizer que ela assente, com intensidade muito alta de assentimento, à prescrição que eu deveria desamarrá-lo. Já sem colocar em cena a universalizabilidade, nós podemos dizer, sob a força de nossas teses prévias, que, se eu sei como é para ela estar naquele estado (e se eu não sei isto, meu juízo moral é falho por falta de informação) – devo eu mesmo ter a preferência que eu deveria ser desamarrado se estivesse naquele estado. Isto é, eu devo estar prescrevendo que me soltem, nesta circunstância hipotética. Suponha agora que eu me pergunte qual prescrição universal estou preparado a assentir com relação à minha conduta atual que consiste em fazer-lhe sofrer, isto é, o que estou preparado a dizer que devo agora fazer-lhe. O “devo” aqui expressa uma prescrição universal, de modo que, se digo que “Não devo desamarrá-lo”, estou comprometido a prescrever não devem soltar-me em circunstâncias similares.
Posso, é claro, dizer que eu não estou preparado a assentir a qualquer prescrição universal. Esta seria a posição da pessoa que chamei em outro lugar o amoralista, indicando lá como lidar com ele (MT 182 ff.). Suponha, porém que eu não sou um amoralista, e estou, por conseguinte, preparado a assentir a alguma prescrição universal para pessoas precisamente nesta situação. A questão é o que se segue. Se eu universalizo a prescrição de continuar fazendo-lhe sofrer, então isso implica em prescrever que qualquer um que estivesse me fazendo sofrer numa situação precisamente análoga, deveria continuar a fazer isto. Isso, porém, contraria a prescrição que, como vimos, já dei assentimento antes, se eu sei como é estar na situação da minha vítima, a prescrição de que não continuem a fazer aquilo, mas antes, que me desamarrem, se eu estivesse naquela situação. Assim, eu estou na situação que Kant chamou de contradição na vontade (1785: par. 2).
Como resolver a contradição? A resposta se torna óbvia se notamos que o que está acontecendo (o que tem de acontecer se estou tentando universalizar minha prescrição) é que sou forçado a tratar as preferências dos outros como se fossem minhas próprias preferências. Esta é apenas outra forma de colocar o requisito de universalizar minha prescrição. Porém, se nesta situação as duas preferências que tenho entram em contradição, fossem elas minhas próprias preferências, o que eu faria seria deixar a preferência mais forte suplantar a mais fraca. E isto é o que sou forçado a fazer no caso presente em que, como resultado da tentativa de universalizar, encontro-me com duas preferências ou prescrições mutuamente contraditórias sobre o que deveria ser feito a mim na situação hipotética em que eu estivesse colocado no lugar do outro. Logo, a resposta é que, se a preferência da minha vitima que eu a pare de atormentar, for mais forte (como certamente ela será) que minha própria preferência que não pare, eu deveria parar.
Chegamos assim, neste caso bilateral simples, envolvendo apenas duas pessoas, ao que é essencialmente uma resposta utilitarista ao nosso problema moral, e chegamos a isto através de uma rota kantiana. As pessoas falam como se Kant e os utilitaristas estivessem em polos opostos na filosofia moral; mas isso apenas mostra como entenderam pouco seja dos utilitaristas seja de Kant. Nós somos levados a dar peso às preferências de todas as partes afetadas (neste caso, a duas), proporcionalmente a sua intensidade, e a dizer que devemos agir segundo a preferência mais forte. Eu poderia, se houvesse espaço, mostrar como, generalizando este argumento para cobrir situações multilaterais em que preferências de muitas partes são afetadas, deveríamos também adotar respostas utilitaristas, ou seja, que deveríamos em cada caso agir visando maximizar a satisfação das preferências de todas as partes afetadas, tratadas imparcialmente. Mas não tentarei fazer isso agora, pois já fiz o em outro lugar (MT 115 ff.), e tenho de prosseguir e explicar como este modo de pensar se processará no curso de nossas vidas morais reais, quando temos de decidir questões práticas. Poderei fazer isso em termos muito gerais.
Poder-se-ia pensar que chegamos a um tipo de utilitarismo de atos, e isto é verdade. Porém, não se trata do tipo de utilitarismo de atos contra o qual se ensinam as objeções que são comuns aos iniciantes em filosofia. Tentarei então explicar como o tipo de utilitarismo que advogo difere dos tipos mais grosseiros. A diferença não é, estritamente falando, teórica. Ela deriva de uma consideração de nossas circunstâncias humanas ao realizarmos nosso pensamento moral. Para entender isso, pensemos como seria se não tivéssemos limitações humanas. Suponha, por assim dizer, que tivéssemos conhecimento infinito, clareza de pensamento, sem parcialidade e outras fraquezas humanas. Em outro texto, chamei um ser que tivesse estes poderes sobre-humanos de arcanjo (MT ch. 3). Ele poderia, de fato, pensar de um modo ato-utilitarista. Seria, porém, desastroso se nós humanos tentássemos fazer isso, por razões óbvias. Antes de tudo, quase sempre carecemos de informação necessária; em particular, somos muito ruins em nos colocar no lugar dos outros e imaginarmos como seria estar no lugar deles. Em segundo lugar, carecemos de tempo para adquirir tal informação e pensar sobre ela. Por fim, temos pouca habilidade em pensar claramente. Essas três deficiências tornam muito fácil acharmos que algum ato será o melhor (em satisfazer maximamente e imparcialmente as preferências), quando, de fato, o que se aprova é nosso interesse próprio. Vê-se este tipo de mecanismo de defesa acontecer o tempo todo.
Suponha então, cientes destas deficiências, procuremos um arcanjo para nos aconselharmos, não sobre uma situação particular (já que nem sempre teremos acesso a ele e, por consequência, queremos que ele nos dê conselhos para o futuro), mas sobre como, em geral, minimizar seus efeitos negativos. Muitos acham que podem apelar a Deus desta maneira, ainda que o que eles dizem que ouviram Dele varia de uma pessoa para outra. Vamos supor, porém, que tivéssemos acesso imediato a algum ser supremo ou superior que pudesse nos aconselhar. Ele nos diria que o melhor que podemos fazer em cada ocasião é aumentar tanto quanto possível a expectativa de satisfação de preferências resultante de nossas ações. Tenho certeza que é isto o que Deus faria, porque ele ama suas criaturas, e quer que façamos a elas o melhor que pudermos.
A expectativa de satisfação de preferências (ou utilidade, para resumir) é a soma dos produtos da utilidade e da probabilidade do resultado diante de todos os resultados de ações alternativas possíveis. Isso é que chamo de “Agir para o melhor” (Acting for the best). A questão é: Como chegar a isso? Dadas nossas limitações, não chegaremos a isso fazendo cálculos utilitários ou análises de custo-benefício em cada ocasião particular. O arcanjo nos dirá, antes, para cultivarmos em nós um conjunto de disposições ou de princípios, juntamente com atitudes ou sentimentos, ou, se alguém deseja usar o termo, intuições que os acompanham: um conjunto tal que seu cultivo torna mais provável, no todo, levar à maximização da satisfação de preferências. Isto é o melhor que podemos fazer, ao contrário do arcanjo, que consegue chegar à resposta mais adequada em cada ocasião singular, e pode fazer melhor do que nós.
Nota-se que isto, embora em um sentido seja uma forma de utilitarismo de regras, é uma forma que não é incompatível com o utilitarismo de atos. O que o arcanjo está aconselhando fazermos é perfazer certos atos, a saber, atos que cultivam disposições, e suas razões para aconselhar assim é que tais atos mais provavelmente conduzem ao que é melhor – o que é exatamente o que um utilitarista de atos aconselharia. Todavia, esta versão do utilitarismo nos assegura as vantagens que formas mais antigas do utilitarismo de regras reivindicavam, em particular a vantagem de tornar nosso sistema imune a objeções baseadas na contra-intuitividade de suas consequências, já que as intuições que o arcanjo utilitarista de atos sugerirá que cultivemos são as mesmas intuições a que apelam os críticos.
O efeito deste movimento é dividir o pensamento moral em dois níveis (em adição ao terceiro nível, o metaético, que concerne não ao pensamento moral substancial, mas à forma do pensamento moral, isto é, à lógica da linguagem moral). Chamo estes dois níveis de Intuitivo e Crítico. Se seguimos o conselho do arcanjo, faremos quase todo nosso pensamento moral no nível intuitivo. De fato, em quase todo o tempo, deveremos nos comportar como os intuicionistas dizem que devemos. Todavia, a diferença será que, como já se compreende, considerando que as boas disposições, princípios e atitudes que corretamente cultivamos serão em algum grau gerais, simples e inespecíficas (se não o fossem, seriam pouco manejáveis, úteis e ensináveis), elas virão a conflitar em casos particulares difíceis. Então, ao contrário dos intuicionistas, teremos de saber o que se deve fazer, por mais difícil e perigoso que isto seja. E desde que não há de fato arcanjos para consultar, temos de fazer o melhor que pudermos para pensarmos criticamente, como arcanjos, nestas ocasiões problemáticas. Quando, porém, nossas intuições nos derem uma orientação clara, devemos segui-las – ao menos é o que nosso arcanjo utilitarista nos aconselharia durante nossa única sessão de aconselhamento.
Entretanto, deve-se dizer, isto pressupõe que nossas intuições são, de fato, as intuições corretas. O que nos dá outra razão para usar nosso pensamento crítico. É perigoso usá-lo em situações de crise, mas quando elas passam, ou em antecipação a elas, é essencial acioná-lo. Senão, como teríamos confiança que tais intuições com que fomos educados e que já possuímos são as melhores possíveis? As melhores intuições sobre como os brancos devem tratar os negros, por exemplo, ou os homens tratar as mulheres? Então, o que nosso sábio arcanjo aconselhará, e o que sábios educadores humanos e autodidatas praticarão, será uma mistura cuidadosa de pensamento intuitivo e crítico, cada um empregado em ocasiões apropriadas. Isso na verdade é o que pessoas sábias já o fazem.