O filósofo John Harris, professor de bioética na Universidade de Manchester, escreve sobre os problemas colocados pela clonagem há mais de vinte anos. Harris é reconhecido como um especialista incontornável no assunto, mas tem sustentado consistentemente uma perspectiva muito impopular: pensa que a condenação ética da clonagem humana não passa de um preconceito indefensável. No seu último livro, On Cloning, Harris apresenta uma defesa do desenvolvimento desta tecnologia que, além de ser bastante informativa na apresentação dos factos científicos e jurídicos relevantes, prima pela clareza e pelo engenho argumentativo.
Antes de iniciar a discussão dos argumentos éticos, Harris põe as cartas na mesa com a neutralidade desejável: explica em que consiste a clonagem, aponta as suas aplicações potenciais e indica os problemas técnicos que têm de ser resolvidos para que um dia possamos beneficiar dessas aplicações. Também no capítulo introdutório, avança algumas hipóteses para tornar compreensível o fascínio intenso — e provavelmente exagerado — que a ideia de clonar seres humanos costuma alimentar.
O segundo capítulo introduz-nos no debate sobre a ética da clonagem reprodutiva. Muitos dos adversários da clonagem alegam que a sua utilização como tecnologia reprodutiva constituiria um desrespeito pela dignidade humana, uma ofensa a certos direitos morais ou, ecoando o pensamento de Kant, uma forma profundamente objectável de instrumentalização. Harris mostra que as alegações deste género — vagas, mas muito sedutoras — não passam de retórica vazia. Quando tentamos traduzi-las para argumentos explícitos, a sua fragilidade revela-se. Harris defende, no entanto, que os apelos à dignidade humana podem fazer sentido neste debate: proibir a clonagem é limitar injustificadamente a liberdade procriadora dos cidadãos, desrespeitando-os enquanto agentes autónomos.
A discussão da clonagem reprodutiva prolonga-se por mais dois capítulos. No primeiro, Harris tenta mostrar que as preocupações com o bem-estar da criança, embora sejam perfeitamente legítimas, não conduzem a qualquer bom argumento contra a clonagem; no segundo, examinam-se questões de segurança. É neste contexto que Harris declara:
“O único argumento decente contra a clonagem que exige respeito é a alegação de que, nas condições técnicas actuais, a clonagem resultaria provavelmente numa taxa elevada de insucesso na gravidez, bem como numa taxa inaceitavelmente elevada de defeitos congénitos e anomalias genéticas. Existe também o receio persistente de que os clones possam ter uma esperança de vida abaixo da média”.
Apesar de reconhecer a importância deste argumento, Harris dedica-lhe umas magras três páginas e acaba por não lhe responder satisfatoriamente. Começa por recordar que também a reprodução natural envolve riscos consideráveis: 80% dos embriões morrem e cerca de 4% das crianças nascem com anomalias. O problema, claro, é que a situação poderá ser muito pior no caso da clonagem. Harris reage a esta preocupação referindo os casais que têm uma grande probabilidade de ter filhos com deficiências graves. Dado que não proibimos esses casais de exercer a sua liberdade procriadora, por que haveremos de proibir as pessoas de recorrer à clonagem? Harris presume que esta questão encerra o assunto, mas as coisas não são tão simples. Afinal, podemos pensar que os casais que estão nessas condições, ainda que por lei não devam ser proibidos de ter filhos, procedem de uma forma eticamente inaceitável quando optam por tê-los. E que, portanto, não devemos facultar-lhes os meios necessários para a concepção de uma criança. Se isto for verdade, então podemos ter também uma forte razão ética para não proporcionar às pessoas que pretendem reproduzir-se uma técnica tão arriscada como a clonagem.
Antes da breve conclusão, encontramos um capítulo inteiramente dedicado à clonagem terapêutica, ou seja, à clonagem que tem em vista o uso dos embriões clonados como fonte de células ou tecidos para investigação ou terapia médica. (Uma possibilidade muito mais remota é a criação de órgãos para transplante.) Harris tenta deixar claro que os benefícios prováveis da clonagem terapêutica são tão importantes que, de um ponto de vista ético, não é apenas tolerável desenvolver as pesquisas médicas em curso: seria profundamente errado não o fazer.
Qualquer uma das conclusões principais de Harris é controversa, mas este livro constitui seguramente um excelente exemplo de ética filosófica aplicada. Aliás, a colecção em que se insere, “Philosophy in Action”, parece ser mais uma boa aposta da Routledge. Destinados a um público muito amplo, os livros desta nova colecção consistem em introduções a temas cativantes (como o mal, o humor ou o sentido da vida) escritas por autores conceituados na área filosófica relevante.