Gloria Taylor, uma canadiana, sofre de esclerose lateral amiotrófica (ELA), também conhecida como “doença de Lou Gehrig”. Em poucos anos, os seus músculos irão enfraquecer até não poder andar, usar as mãos, mastigar, engolir, falar e, por fim, respirar. Depois morre. Taylor não quer passar por tudo isso. Quer morrer quando quiser.
O suicídio não é crime no Canadá, e por isso, como escreve Taylor, “não consigo pura e simplesmente compreender por que razão a lei sustenta que quem está fisicamente em forma mas tem uma doença terminal pode dar um tiro na cabeça quando estiver farto porque pode empunhar uma arma, mas como a minha doença afecta a minha capacidade para mexer e controlar o meu corpo, não tenho direito a uma ajuda amiga que me permita o acto equivalente de usar fármacos letais”.
Taylor considera que a lei lhe oferece uma escolha cruel: ou termina a sua vida quando ainda pode apreciá-la mas é capaz de se matar, ou abdica do direito que os outros têm de pôr fim às suas vidas quando quiserem. Foi a tribunal, defendendo que as leis do código criminal que a impedem de receber ajuda para morrer são inconsistentes com a Carta Canadiana dos Direitos e Liberdades, que dá aos canadianos direitos de vida, liberdade, segurança pessoal e igualdade.
A audiência foi notável porque a juíza Lynn Smith foi exaustiva no exame das questões éticas que enfrentava. Ouviu opiniões de especialistas de figuras cimeiras dos dois lados da questão, não apenas canadianas mas também autoridades da Austrália, Bélgica, Holanda, Nova Zelândia, Suíça, Reino Unido e Estados Unidos. Entre as áreas dos especialistas encontrava-se a medicina geral, cuidados paliativos, neurologia, estudos de deficiência, gerontologia, psiquiatria, psicologia, direito, filosofia e bioética.
Muitos dos especialistas foram interrogados em tribunal. Juntamente com o direito de Taylor à morte, foi objecto de escrutínio o debate de décadas acerca da ajuda na morte.
No mês passado, Smith emitiu o seu juízo. O caso, Carter contra o Canadá, poderia servir de manual acerca dos factos, da lei e da ética da ajuda na morte.
Por exemplo, tem havido muito debate sobre a diferença entre a prática comum de desligar as máquinas que mantêm as pessoas vivas, ou de parar outros tratamentos, sabendo que o paciente provavelmente irá morrer, e a prática contestada de ajudá-lo activamente a morrer. A decisão judicial de Smith declara que “é difícil traçar uma linha clara de demarcação ética” e que a perspectiva de que não há qualquer diferença ética é “persuasiva”. Smith considera, e aceita, um argumento avançado por Wayne Sumner, um distinto filósofo canadiano: se o paciente está numa situação em que o suicídio seria eticamente permissível caso pudesse executá-lo, então também é eticamente permissível que o médico lhe forneça os meios para que o paciente o faça.
Smith teve também de avaliar se há considerações de política pública que contem contra a legalização da ajuda médica para morrer. A sua decisão centra-se principalmente no risco de as pessoas vulneráveis — por exemplo, os idosos ou pessoas com deficiências — serem pressionadas para aceitar ajuda para morrer quando na realidade não querem tal coisa.
Há perspectivas opostas sobre se a legalização da eutanásia voluntária nos Países Baixos, e a morte com ajuda médica no Óregon, levou a um aumento do número de pessoas vulneráveis que foram mortas ou que receberam ajuda para morrer sem o seu consentimento pleno e informado. Durante muitos anos, Herbert Hendin, um psiquiatra especialista em suicídio, afirmou que as salvaguardas incorporadas nestas leis não protegem os vulneráveis. Hendin foi ouvido em tribunal.
Quem também foi ouvido, pelo outro lado, foi Hans van Delden, um médico neerlandês de um lar para idosos que é também bioeticista e que nos últimos vinte anos tem estado envolvido em todos os grandes estudos empíricos do seu país sobre as decisões para acabar com a vida. Peggy Battin, o bioeticista americano mais proeminente que trabalha em morte assistida e eutanásia, foi também chamado a depor.
Nesta disputa, Smith ficou firmemente do lado de van Delden e de Battin, considerando que “as provas empíricas recolhidas nas duas jurisdições não sustentam a hipótese de a morte com ajuda médica ter representado um risco particular para as populações socialmente vulneráveis”. Ao invés, afirma, “Os indícios sustentam a posição do Dr. van Delden de que é possível um estado organizar um sistema que simultaneamente permita que alguns indivíduos tenham acesso à morte com ajuda médica e que proteja socialmente indivíduos ou grupos vulneráveis”. (Um relatório neerlandês mais recente, publicado depois de Smith ter pronunciado a sua sentença, confirma que não houve qualquer aumento dramático de casos de eutanásia nos Países Baixos.)
Smith declarou então, depois de considerar a lei aplicável, que as leis do código criminal que impediam a morte com ajuda médica violavam o direito de pessoas deficientes não apenas à igualdade, mas também à vida, liberdade e segurança. Abriu assim a porta à morte com ajuda médica para qualquer adulto na posse das suas faculdade mas grave e irremediavelmente doente, em condições não muito diferentes das que se aplicam noutras jurisdições onde a assistência médica para morrer é legal.
P.S.: Em Outubro de 2012, Gloria Taylor morreu pacificamente, sem ajuda, em resultado de uma infecção grave. Entretanto, a decisão da juíza Lynn Smith foi objecto de apelo, inicialmente pelo Tribunal da Relação da Colúmbia Britânica que, em 2013, por uma maioria de dois para um, revogou a decisão. Fez-se então apelo ao supremo tribunal do Canadá. Em Fevereiro de 2015, este determinou unanimemente que a proibição do suicídio assistido é contrária à Carta Canadiana dos Direitos e Liberdades, e por isso inconstitucional. Em 2016, o parlamento canadiano aplicou esta decisão, tornando legal no Canadá o suicídio com ajuda médica.