Quando nasci estavam a ser escritas as palavras que mais iriam influenciar a minha vida. Se alguma vez o poder da palavra se tornou claro para mim foi ao perceber um raciocínio que, de forma aparentemente tão simples, implicava uma mudança tão grande na maneira como nos relacionamos uns com os outros. Falo sobre o artigo “Fome, Riqueza e Moralidade”, de Peter Singer. As suas conclusões marcaram uma longa e alargada discussão, que foi muito além do mundo académico, e que partia da defesa da nossa obrigação moral de ajudar aqueles que se encontram na pobreza extrema.
Quarenta anos depois estou à conversa com um jovem que tem cerca de metade da minha idade e que, do outro lado do planeta, via Skype, me pergunta por que me comprometi a ajudar os mais pobres. Disse-lhe que na origem estavam essas palavras que me tinham chegado pela leitura de um livro desse mesmo filósofo (falei-lhe também na revista Crítica, à qual estou em dívida, por esta e outras razões). O livro era A Vida Que Podemos Salvar: Agir Agora Para Pôr Fim À Pobreza No Mundo. Nele se lia, logo no início, que a nossa geração é a primeira na história a estar em condições de acabar com a pobreza extrema. O que suscita a questão: por que haveria alguém de querer ficar de fora desta realização tão importante? No entanto, a pobreza extrema ter ou não um fim à vista, poderia não ser a principal razão para justificar a acção. E a distância que me separa de quem assim sofre? E o facto de eu ser um entre milhões em posição de ajudar? E afinal quais serão os limites da minha responsabilidade? Perguntas como estas têm dissuadido muita da possível ajuda, mas Peter Singer apresenta um argumento extremamente convincente:
Primeira premissa: O sofrimento e a morte por falta de alimento, abrigo e cuidados médicos são maus.
Segunda premissa: Se está em seu poder impedir que algo mau aconteça, sem sacrificar nada de importância semelhante, é errado não o fazer.
Terceira premissa: Ao contribuir para organizações humanitárias pode prevenir o sofrimento e a morte por falta de alimento, abrigo e cuidados médicos, sem sacrificar nada de importância semelhante.
Conclusão: Se não fizer contribuições a organizações humanitárias está a fazer algo de errado. (A Vida Que Podemos Salvar, pp. 31–32)
O jovem com quem falava via Skype, Matt Wage, teria provavelmente ouvido estas palavras da boca do próprio Peter Singer, pois fora seu aluno na Universidade de Princeton. Mas à altura em que conversamos — em que estava a iniciar-se também um movimento à escala mundial — provavelmente esse jovem não imaginaria que, anos mais tarde, o seu nome viria a abrir um outro livro do seu professor, dedicado a esse movimento: o altruísmo eficaz.
Hoje, quando me sento para começar a escrever sobre esse livro, faz precisamente um ano que este foi publicado e, na versão já traduzida para português, o seu título é O Maior Bem Que Podemos Fazer: Como o Altruísmo Eficaz está a Mudar as Ideias sobre Viver Eticamente.
Matt Wage é então o nome que Peter Singer escolheu para começar a explicar o maior bem que podemos fazer. Conta-nos que, quando ainda era seu aluno, Matt fez um cálculo para determinar quantas vidas poderia salvar caso doasse dez por cento do seu rendimento a organizações que fossem eficazes e caso o fizesse ao longo de toda a sua vida. Chegou então à conclusão de que, mesmo com um rendimento médio, poderia salvar cerca de uma centena de vidas — não seria isto o que qualificaríamos de um acto heróico? Essa perspectiva foi o suficiente para mudar aquela que se previa ser uma carreira académica promissora no domínio da Filosofia, pois Matt decidiu aceitar um emprego no mundo da alta finança, em Wall Street.
Ora, mesmo para quem defenda a mudança do próprio sistema económico, será difícil contestar o bom resultado da sua decisão pois, agindo dentro desse sistema, foi-lhe possível fazer, em apenas um ano (e nos anos seguintes repetir), aquilo que previa fazer na sua vida inteira: salvar uma centena de vidas (pp. 23–24). Se considerarmos heróico o acto anterior, este parece à escala apenas de um super-herói. Salvar cem vidas por ano, de facto, não é para todos.
E assim começa a traçar-se o perfil do altruísta eficaz, pois mesmo não estando ao alcance de todos escolher uma carreira muito bem remunerada, será ainda possível optar por uma vida modesta e doar uma boa parte do seu rendimento, sendo para isso essencial a procura de informação sobre as organizações que são mais eficazes a debelar as causas mais prementes. E que para isso também será útil manter uma ligação com a comunidade de altruístas eficazes e divulgar essa informação a outros (p. 24).
Chega-se então à definição mais difundida de altruísmo eficaz (aquela que está patente na Wikipédia): “é uma filosofia e um movimento social que aplica evidências e a razão para encontrar as maneiras mais eficazes para melhorar o mundo” (p. 25).
Mas quais serão essas maneiras de fazer “o maior bem”? Na minimização do sofrimento e maximização da felicidade, devemos dar igual valor a todos? Devemos fazê-lo mesmo que isso signifique não dar prioridade aos nossos filhos? E que prioridade devem ter outros valores como a justiça, a igualdade, a liberdade e o conhecimento? E as artes e as universidades, devemos doar dinheiro para as apoiar? E se todos fossem altruístas eficazes? Todos podem sê-lo? E podemos optar por acções moralmente dúbias, ou até mesmo por aquelas que normalmente reprovaríamos, se as consequências forem um bem maior? Embora algumas das respostas a estas questões sejam contra-intuitivas, e por isso levantem recorrentes objecções, a forma preliminar como aqui são abordadas deixa muito em aberto para a leitura dos capítulos seguintes (pp. 27–31).
Peter Singer aproveita ainda este capítulo introdutório para falar sobre outros dos mais importantes proponentes do altruísmo eficaz e como as organizações que estes criaram ajudaram a credibilizar e a servir de base à expansão do movimento. É esse o caso de Holden Karnofsky e Elie Hassenfeld, que cedo nas suas carreiras dedicadas a investimentos financeiros decidiram partilhar parte do seu sucesso e boa fortuna com aqueles que estariam mais longe de os atingir. Sendo intenção desta dupla, também no âmbito humanitário, encontrar o melhor investimento possível, em breve descobriram que a informação que o poderia permitir não estava disponível. Perante tanta resistência aos seus pedidos de informação, a única alternativa que encontraram foi disponibilizar todo o seu tempo para investigar e publicar a informação que tornasse possível o melhor tipo de investimento na filantropia, publicando também as suas recomendações. Foi assim que abandonaram a alta finança e, em 2007, fundaram a GiveWell (Dar Bem), uma organização que avalia a transparência e a eficácia de instituições de caridade em diversas áreas de intervenção (p. 35).
Pela mesma altura em que nos Estados Unidos da América era criada a GiveWell, Toby Ord, um australiano a estudar filosofia no Reino Unido, começava a interessar-se pelo pensamento do seu conterrâneo, Peter Singer. Ainda enquanto estudante calculou que o pequeno sacrifício que poderia ser para si doar tudo que fosse além daquilo que lhe permitisse uma vida confortável, seria superado em muito pelos benefícios que esse donativo podia alcançar. Assim, depois de desenvolver investigação sobre uma aplicação prática das suas conclusões no domínio da filosofia, e tendo encontrado em Oxford outro aluno com as suas convicções altruístas, William MacAskill, fundou com ele uma organização que pretendia congregar outros com o mesmo sentido de compromisso ético em melhorar as vidas dos mais pobres, doando para isso, pelo menos, dez por cento dos seus rendimentos. Chamaram-lhe Giving What We Can (Dar o Que Podemos) (p. 37).
Sendo também ele um jovem em início de carreira, e depois de ponderar a importância da decisão daquilo que se haveria de fazer nas oitenta mil horas que em média gastamos na nossa vida a trabalhar, William MacAskill decidiu fundar a 80,000 Hours, para ajudar outros que, como ele, estivessem interessados em escolher a carreira que melhor lhes permitisse ter um impacto positivo no mundo (p. 37).
Volto às palavras do início e à sua viagem de influência de mais de quarenta anos porque essa viagem viria a culminar não só num dos livros de que já falei, mas também numa organização humanitária que o próprio Peter Singer criou com o mesmo nome: The Life You Can Save (A Vida Que Podemos Salvar). Em mais esta contribuição pessoal para o altruísmo eficaz, Peter Singer destaca o especial compromisso de Charlie Bresler, que permitiu o lançamento e implementação desta organização — da qual eu próprio sou membro voluntário.
Embora em jovem Charlie Bresler tenha assumido um papel de activismo cívico, nomeadamente na oposição à guerra do Vietname, só depois de uma vida de trabalho e de sucesso profissional regressou a esse papel, investindo na The Life You Can Save (p. 40) e ajudando assim a promover a ideia de que uma vida ética passa por usar parte dos nossos recursos para salvarmos e melhorarmos as vidas dos que são menos afortunados do que nós.
Estas organizações, e outras que foram surgindo, começaram a dar corpo a um movimento que desafia algumas das nossas crenças mais enraizadas relativamente àquilo que acreditamos ser o maior bem que podemos fazer. Então, qual será a melhor forma de abordarmos o altruísmo eficaz quando falamos com pessoas que nunca pensaram sobre isso? A pergunta chegava-me por e-mail vinda de alguém que era assistente social nos Estados Unidos da América (isto ao tempo em que o assunto começava a tornar-se popular devido à difusão da palestra TED de Peter Singer: “O Porquê e o Como do Altruísmo Eficaz”).
Mas por que motivo deveria sequer colocar-se um cuidado especial em falar sobre algo que muitos consideram a melhor maneira de se fazer o maior bem possível com os recursos que temos disponíveis? Acontece que quem acredita nessa possibilidade de impacto positivo, como é o caso dessa assistente social norte-americana, demonstra-o aplicando uma parte substancial daquilo que possui. Ora, isso provoca uma certa estranheza, especialmente em quem nunca reflectiu para além da vertente emocional da ajuda aos outros. E esta questão fazia especial sentido vinda de alguém que estaria em posição de causar grande perplexidade, isto porque essa assistente social, a par do seu marido, estava a doar cerca de metade do seu salário a instituições de caridade eficazes. Falo de Julia Wise e Jeff Kaufman, o mesmo casal que Peter Singer usa como exemplo para dar conta daqueles altruístas eficazes que escolhem viver modestamente para poderem dar mais (p. 43).
Ao trocar mensagens regularmente com outros membros do altruísmo eficaz, como a Rhema Hokama, dos EUA (para programar conteúdos a publicar nas redes sociais), ou como o Celso Vieira, do Brasil (para organizar a divulgação do altruísmo eficaz em língua portuguesa), é raro pensar naquele que poderá ser o sacrifício pessoal de cada um deles, ou no facto de o seu compromisso ético na ajuda aos outros ser tão pouco usual que os faz merecer também a referência de Peter Singer neste livro (pp.52, 54).
Quando pensamos naqueles que, como a Rhema e o Celso, vivem modestamente para poder dar mais, e que talvez por isso façam sacrifícios que à partida nem todos estamos dispostos a fazer, é natural que questionemos em que medida esse sacrifício se justifica. Assim, se acreditarmos que ao podermos evitar alguma coisa má, sem sacrificarmos algo de importância comparável, é nosso dever fazê-lo, então onde devemos traçar o limite desse nosso sacrifício? Se pensarmos a propósito do limite máximo, dar tudo, parece razoável defender que é desaconselhável fazê-lo (p. 48), pois isso é um obstáculo evidente a ficar em posição de continuar a ajudar. E nada garante que esse donativo único e total não pudesse ser superado, em termos de benefícios, por uma possibilidade de ajuda mais eficaz que surgisse posteriormente (esse é inclusivamente um dos assuntos que muito se tem discutido no movimento do altruísmo eficaz: é melhor dar agora ou mais tarde?).
Não dar tudo, mas optar por uma vida de enorme contenção nos gastos, abdicando de certas coisas que podem inclusivamente ser consideradas essenciais para o desempenho ou produtividade em determinada profissão, também pode ser contraproducente, pois pode até contribuir para perdermos essa posição em que poderíamos ajudar mais (p. 48). Depois desses casos mais evidentes, estaremos a entrar no domínio da subjectividade, em que aquilo que para uns é um sacrifício razoável (por exemplo abdicar de uma parte substancial do seu rendimento), para outros pode ser demasiado, tornando-se necessário estabelecer um sacrifício menor, se isso significar, por exemplo, abdicar de ter filhos para poder manter níveis de doação elevados.
Caso fosse demasiado penoso, submeter-se a esse sacrifício poderia não compensar, pois até poderia, com o passar do tempo, resultar no fim desse compromisso de ajuda. Até mesmo a situação quotidiana de ver cada produto que não se traz do supermercado como uma possibilidade de ajudar mais, pode configurar uma maneira demasiado desgastante de lidar com esta questão, o que pode também vir a comprometer a possibilidade de se continuar a fazer o maior bem. Assim, estabelecendo estratégias de doação, como fixar previamente um orçamento para os gastos e um plano de doações, por exemplo, permite à Julia continuar a comprar o seu gelado favorito, sem se recriminar, pensando naquela mãe em África que não pode alimentar o seu filho (p. 50) e isso permite-lhe também ser mais feliz e transmitir essa felicidade às suas filhas Lily e Anna. Afinal de contas, a virem ao mundo mais crianças, se estas tiverem pais como a Lily e a Anna (das primeiras crianças a nascerem no seio do altruísmo eficaz), o futuro parece mais promissor.
Estes, e cada vez mais exemplos, contrariam a ideia de que o altruísmo eficaz não estaria à medida de pessoas com um rendimento modesto, mas acontece que a profunda desigualdade do mundo faz com que aqueles que tiveram a sorte de nascer em países desenvolvidos, depois de doarem dez por cento do seu rendimento, ainda assim estejam, pelo menos, entre os dez por cento mais ricos do mundo (o que também deve de ser o caso do leitor) (p. 58).
A profunda desigualdade potencia o impacto mesmo dos donativos mais modestos, mas a possibilidade de ganhar mais permite doar mais. E também neste caso o altruísmo eficaz veio dar nome a uma prática já anteriormente preconizada: ganhar para dar (p. 59).
Mas isso significaria estar disposto a dedicar uma parte substancial da sua vida a ajudar os outros. E se assim é, por que não trabalhar directamente numa organização humanitária? Segundo William MacAskill (p.61), mesmo que fôssemos a pessoa indicada para trabalhar numa organização humanitária, certamente haveria mais gente para ocupar esse lugar, e o mais provável seria que não nos destacássemos muito relativamente a uma segunda escolha. Ao passo que, se tivéssemos uma profissão muito bem remunerada, por exemplo no sector financeiro, que nos permitisse doar uma grande percentagem do nosso rendimento a essa mesma organização, por exemplo cinquente por cento, isso permitiria que a organização passasse a ter mais um funcionário. Assim, não só seria melhor para a organização ter dois funcionários em vez de um, como esse seria um trabalho em que eu seria facilmente substituível, enquanto no sector financeiro outra pessoa que ocupasse o meu lugar, dificilmente estaria disposta a doar cinquenta por cento do seu rendimento.
No entanto, ao vermos certos sectores profissionais como ferozes e desumanos, como é o caso por exemplo do sector financeiro, isso pode levar-nos a pensar que seguir esse tipo de carreira, mesmo com fins humanitários, é estar em posição de constante tentação e sob uma pressão tremenda por parte dos nossos colegas, o que poderia levar a uma existência demasiado angustiante. Mas os casos que se conhecem, pelo menos até agora, são prova do contrário, e entre eles está Matt Wage, de quem falei inicialmente, que nos assegura que ainda não faz parte da sua lista de prioridades comprar um Ferrari (p. 67).
As críticas visam este processo como uma instrumentalização das pessoas, que assim se tornam numa espécie de “máquinas de redistribuição da riqueza”, mas a especulação sobre o mal que pode decorrer deste sistema, ao contrastar-se com a realidade de muitas pessoas que enfrentam o mundo do trabalho ao longo da sua vida inteira, mostra-nos que estas muitas vezes têm quase como fim exclusivo o seu sustento e o da sua família, isto sem que considerem a sua carreira especialmente aliciante. Ora, se admitimos esta realidade como normal, por que haveríamos de considerar especialmente corrosiva a carreira de quem escolhe dar aos outros depois de acautelar o bem dos seus? (p. 69) Será que estes se tornam num mero meio para um fim, resultando isso na perda das suas convicções e da sua integridade? Mas então o que dizer da integridade de alguém cujas convicções lhe ditassem uma vida de abnegação em prol dos que mais precisam, mas que, contrariando essas convicções, optasse por uma carreira mais aliciante, mas com um impacto social pouco significativo ou nulo? (p. 70)
Às críticas que apontam o ganhar para dar como um processo cúmplice do capitalismo, comparável a “incendiários que fazem donativos aos bombeiros”, pode-se contrapor com os nomes de Bill Gates e Warren Buffett, como se estes fossem aquele tipo de pessoas que combatem fogo com fogo, pois a avaliar em termos das quantias doadas, eles são os maiores altruístas eficazes da história da humanidade (p. 71).
Ao ficar por demonstrar que o sistema capitalista é responsável por mais pessoas caírem na pobreza extrema do que saírem dela (mesmo que aumente a desigualdade entre elas), não havendo uma alternativa melhor, pelo menos num futuro próximo, ainda assim seria importante pesar a questão moral que coloca num dos pratos da balança o “não fazer mal” e no outro o “fazer o maior bem que se pode” (p. 72).
Pode-se então perceber que em certas circunstâncias se defenda o princípio de “não fazer mal”, mesmo em detrimento de “fazer o maior bem que se pode” mas, voltando ao caso do ganhar para dar, facilmente se percebe que mesmo dando mais importância a “fazer o maior bem que se pode” o altruísta eficaz também estaria em posição de maior influência para acautelar o “não fazer mal”, ao passo que, se o prurido moral o impedisse de aceitar esse emprego, outro que o aceitasse provavelmente não teria o mesmo compromisso social ou convicções morais para “fazer o maior bem que pudesse” (p. 73).
Ganhar para dar é uma forma de seguir uma carreira com fins éticos. Apesar disso, como se viu, esta opção não está ao alcance de todos e também não é a única para quem queira seguir uma carreira ética. E se considerarmos todos os factores, outras carreiras podem proporcionar melhores hipóteses de se fazer o maior bem possível.
Esse pode ser o caso para quem estiver em condições de escolher ser um defensor de causas, e com isso assegure, por exemplo, que mais pessoas passem a interessar-se pelo altruísmo eficaz. Pois estará a multiplicar o seu impacto positivo no mundo por cada pessoa que inspire a tornar-se também num altruísta eficaz (p. 78).
Ser um burocrata a trabalhar no governo ou numa organização internacional de enorme alcance pode ser um lugar onde, não havendo tanta concorrência como no sector financeiro, seja possível movimentar quantias a que não se teria acesso de outro modo e que permitam melhorar significativamente a vida de muitas pessoas (p. 80).
Tornar-se um investigador parece uma opção óbvia para quem pretenda salvar o maior número de vidas, e nesse caso a investigação médica parece a escolha evidente ao imaginar-se uma descoberta que possa, por exemplo, erradicar uma doença daquelas que ainda hoje inflige um enorme sofrimento e provoca a morte de milhões de pessoas. Mas a possibilidade de vir a ter um impacto que não fosse igualado, ou mesmo superado, por outro investigador nesta área tão densamente preenchida, é muito reduzida. Portanto, justifica-se que uma das áreas de investigação seja precisamente a avaliação de quais são as áreas negligenciadas neste momento e nas quais se possa obter bons resultados que de outra forma não seriam possíveis (p. 81).
Ora, por vezes, quando se encontra uma lacuna numa determinada área em que se está habilitado e predisposto a intervir, a opção de se tornar num organizador ou activista pode ser a de preencher essa lacuna, criando uma nova organização e produzindo ou antecipando resultados cujo impacto positivo seja potenciado dessa forma.
Inúmeras pessoas realizam actos de altruísmo eficaz, mesmo que não tenham consciência disso, e sem fazer uso de quaisquer recursos económicos. Trata-se daquelas pessoas que ajudam os outros dando, literalmente, parte de si mesmos. Apesar de poderem salvar vidas, integraram esse gesto na normalidade das suas rotinas quando, por exemplo, doam sangue, ou ao tornarem-se doadores de medula óssea (p. 95).
Casos mais raros são aqueles em que alguém decide doar um órgão em vida sem o qual possam sobreviver (como por exemplo um rim). Causa ainda mais estranheza quando a abnegação dessa doação visa ajudar alguém que não se conhece. Até há bem pouco tempo este acto era visto com tal renitência que até a comunidade médica lhe colocava entraves (no Reino Unido foi ilegal fazê-lo até 2006).
Hoje em dia, os números vão crescendo e estes actos de altruísmo até têm gerado reacções em cadeia, pois quando alguém está disposto a ajudar um familiar seu e não é compatível, pode fazê-lo doando o seu rim a outro doente com familiares também não-compatíveis, acabando por aparecer alguém que, sem qualquer contrapartida, desbloqueia um sistema de trocas, possibilitando assim que se salvem várias vidas (pp. 91–96).
Optar por uma vida muito modesta ou por uma carreira muito bem remunerada para, num caso ou no outro, dar o mais possível a instituições de caridade eficazes, tornar-se defensor de causas, ou activista, optar por trabalhar no governo, em organizações influentes ou criar a sua própria organização para obter o maior impacto positivo no mundo, é de tal modo decisivo na vida de cada um (e na dos outros) que será importante perceber o que motiva ou justifica esse tipo de opções. Isto porque facilmente reconhecemos que as pessoas de quem se falou até aqui saem da norma, devendo por isso haver uma explicação para o seu comportamento. Uma hipótese que se poderia adiantar seria o facto de realmente considerarem todos os outros seus irmãos e seriam então movidos por um sentimento de amor universal (p. 100).
No entanto, o estudo do processo evolutivo da nossa espécie e a observação dos nossos parentes não-humanos mais próximos, tem colocado em evidência comportamentos que contrariam esse sentimento universal. Ou seja, nas nossas relações privilegiamos aqueles que nos são próximos e aqueles com quem mantemos relações de interesse mútuo, mas as regras morais que terão surgido no seio dos grupos tendem a não se aplicar a estranhos, que normalmente tratamos pior (p. 100). Mas se não é o amor, que elo de ligação será esse que nos une aos outros, mesmo os mais distantes do nosso grupo?
A empatia é então apresentada como “o grande tema do nosso tempo”:
As duas primeiras referem-se às nossas capacidades emotivas (como sentimos o que os outros sentem) e as outras duas referem-se às nossas capacidades cognitivas (como sabemos o que os outros sentem). Apesar de reconhecermos a empatia emocional como uma coisa boa, esta normalmente atinge o seu pico quando nos conseguimos identificar com um indivíduo, o que pode ser complicado caso se trate de uma situação que envolva muitas pessoas a precisarem de ajuda e se estiverem longe. Já a empatia cognitiva pode servir-nos de motivação para ajudarmos milhares de pessoas que necessitem e que estejam distantes, ao passo que, através da empatia emocional, dificilmente conseguiríamos identificá-las como indivíduos para que existisse uma motivação para a ajuda (p. 102).
Nestes termos, os altruístas eficazes, mesmo os que não sejam utilitaristas, concordam em que, em situações idênticas, devemos fazer o maior bem que pudermos. Por isso admitem que a vida de estranhos tem o mesmo valor do que a vida daqueles que amamos. E se é a razão que motiva a sua acção para o bem de todos (evitando motivações egoístas, nacionalistas e racistas) isso não invalida uma resposta emocional, ou que não tenham empatia por aqueles que ajudam, apenas não são essas motivações que os distinguem daqueles que são menos altruístas (pp. 105–108).
A razão, como vimos, não sendo meramente escrava das paixões, pode modificá-las e redireccioná-las, podendo ter assim um papel fundamental no nosso desempenho ético.
Desse modo, os altruístas eficazes conseguem distanciar-se de considerações pessoais, de tal forma que consigam avaliar como devem viver a partir de um ponto de vista independente das suas “disposições, projectos e afeições” (pp. 110–111).
Isso permite perceber, precisamente, que há um ponto de vista a partir do qual as vidas de estranhos valem tanto quanto as vidas de quem amamos e que isso deve pesar nas nossas decisões éticas (p. 113). Essa perspectiva mais abstracta e racional tende a ser característica dos altruístas eficazes na forma como suplantam e redirigem as suas emoções quando fazem juízos morais em que as reacções instintivas rápidas nos podem enganar (pp. 114–115).
A esta altura podemos então perguntar: se é a razão que motiva o altruísta eficaz e se é uma grande capacidade de raciocínio abstracto que o conduz, por que será que só agora surgiu este movimento? Podem então enumerar-se alguns factores como a melhoria dos padrões de vida de muitos de nós, permitindo, nestas circunstâncias, a busca de um sentido para as nossas vidas que até aqui não se tinha encontrado. Acontece também que gerações mais jovens estão agora em condições de se tornarem doadores dispostos a fazerem o maior bem, não se deixando influenciar por uma cultura de doação tradicional. Veja-se também as mudanças tecnológicas que permitem aos altruístas eficazes conhecerem-se e organizarem-se via Internet ou acederem a informação como a que a GiveWell publica, permitindo assim saber facilmente quais são as melhores oportunidades de ter um impacto positivo no mundo. Somando isso ao progressivo aumento das nossas capacidades de raciocínio e de julgamento moral, estavam reunidas as condições para o aparecimento, e agora a difusão, do movimento de altruísmo eficaz (pp. 119, 121).
Mesmo depois de se perceberem as motivações que originam o altruísmo eficaz e entendendo-se as circunstâncias que possam favorecer a sua disseminação, normalmente ainda se questiona o enorme sacrifício que se faz por um estranho (p. 123).
Mas quando se coloca esta questão presume-se que é um sacrifício fazer algo que nos leva a ter menos dinheiro, mas para ser realmente um sacrifício isso teria de estar associado à perda de bem-estar ou de felicidade. No entanto, os estudos nessa área indicam que a partir de determinado rendimento, que assegure as necessidades básicas e a estabilidade financeira, ter mais dinheiro tem pouco ou nenhum impacto na felicidade — sendo que, por exemplo, as relações afectivas têm um impacto muito maior (pp. 124–125).
Os estudos também demonstram que uma maneira do dinheiro contribuir para a nossa felicidade é usá-lo para ajudar os outros (p. 126) e o mesmo acontece no caso da doação de órgãos (p. 127). Isto porque, sendo a auto-estima um elemento importante da felicidade (p. 128), uma pessoa racional não pode ter auto-estima ignorando o bem-estar dos outros, e por isso vê esse bem-estar como igualmente importante (p. 129).
Mas se não há sacrifício pessoal trata-se, ainda assim, de altruísmo? E se o altruísta ajuda os outros porque isso o faz feliz, isso não faz dele um egoísta? Se virmos o altruísmo não como um sacrifício de interesses, mas como o tipo de interesses que se tem, e que esses interesses consistem em aumentar o bem-estar dos outros, parece fazer sentido denominar isso como altruísmo (pp. 130–131).
Todas as causas são meritórias ou valerá a pena tentar saber quais são aquelas em que os nossos recursos podem fazer o maior bem? Se podemos perder oportunidades únicas de fazer o maior bem, então será aconselhável comparar causas, tentando perceber se será melhor erradicar a pobreza extrema, pôr fim ao sofrimento dos animais, tentar impedir as mudanças do clima, salvar as espécies em vias de extinção ou tentar evitar a nossa própria extinção (p. 133).
Percebendo que o custo de salvar uma vida num hospital de um país rico chega a ser milhares de vezes superior ao custo de salvar uma vida num país em desenvolvimento, e que, sendo da responsabilidade dos governos cuidar dos seus cidadãos, mas que os indivíduos não têm essa responsabilidade, considerarmos individualmente a ajuda ao exterior, mesmo em detrimento da ajuda local, é uma decisão pertinente (pp. 138–139).
Nesse aspecto é paradigmático o exemplo que Toby Ord nos apresenta: trata-se do caso de ajudar pessoas cegas em países ricos, treinando e fornecendo-lhes um cão-guia, o que ascende a quarenta mil dólares. Ora, em países em desenvolvimento, essa mesma quantia poderia curar da cegueira (com uma operação ao tracoma) entre quantrocentas a duas mil pessoas (p. 139). Será assim tão difícil equacionar qual será o maior bem face a possibilidades de ajuda que podem diferir na ordem dos milhares?
Normalmente os pobres nos países ricos têm acesso a água potável gratuitamente, ao saneamento básico, a cuidados de saúde, à escola gratuita e até, em alguns casos, à habitação; no entanto, centenas de milhões de pessoas em países em desenvolvimento não têm acesso a nada disso. Outra diferença é que em países ricos, se forem detectadas crianças malnutridas, estas até podem ficar à guarda do estado, tendo assim asseguradas as necessidades básicas, mas nos países em desenvolvimento os pais de uma criança malnutrida podem ficar a assistir, sem nada poder fazer, enquanto o seu filho morre de uma doença facilmente curável (pp. 140–141).
Assim, esse enorme fosso entre os pobres dos países ricos e aqueles que vivem em pobreza extrema em países em desenvolvimento é visto pelos altruístas eficazes como uma condição que poderá potenciar o seu impacto positivo, pois no mundo da filantropia, como em outras áreas do desenvolvimento, caso se procurassem as melhores oportunidades de obter melhores resultados, certamente essas oportunidades desapareceriam rapidamente. No entanto, tradicionalmente o mundo da filantropia não vê a eficácia como o sector financeiro vê o lucro, mesmo que no primeiro isso signifique salvar mais vidas (pp. 142–143).
Para avaliar se há causas que sejam objectivamente melhores do que outras poderíamos questionar quais seriam as mais urgentes (p. 145). Para se perceber se essa é a questão mais adequada a colocar vejamos dois exemplos: as alterações climáticas e a malária. De um lado temos então a esmagadora maioria da comunidade científica a sublinhar a urgência de medidas para reduzirmos as emissões de gazes com efeitos de estufa. Mas para uma pessoa qualquer é muito difícil saber o que fazer para que essas medidas internacionais sejam efectivadas. Por outro lado, no caso da malária, mesmo sendo globalmente um assunto menos urgente, a intervenção pessoal pode aumentar o número de mosquiteiros anti-malária distribuídos e com isso o número de pessoas protegidas dessa doença que pode ser mortal. Ora isso parece justificar que se pergunte não o que é mais urgente, mas sim onde posso ter um maior impacto positivo (p. 146).
Mas mesmo que admitamos essa questão como a mais adequada para se colocar nestas circunstâncias, a resposta, ainda assim, pode ser difícil. Tomemos novamente dois exemplos: por um lado, temos a hipótese de fazer um donativo para a construção de uma nova ala de um museu de arte (considerando a importância da arte na nossa formação cultural e os milhões de pessoas que teriam a oportunidade de usufruir dessa nova ala ao longo de décadas), por outro, temos a hipótese de fazer um donativo a uma organização que faz cirurgias que restauram a visão a pessoas com tracoma.
Feitos os cálculos, se com o meu donativo eu tivesse a possibilidade de proporcionar um enorme prazer estético a cem mil visitantes do museu, ou então, com a mesma quantia, pudesse evitar quinze anos de cegueira a mil pessoas, qual seria o maior bem? (p. 147)
Para responder a esta questão podemos considerar a seguinte experiência mental: imagine que a nova ala do museu está assombrada e que um génio maligno lança uma maldição a um visitante por cada mil que aí entram, provocando-lhe quinze anos de cegueira. Com uma hipótese em mil de ficar cego por quinze anos, ainda assim visitaria o leitor a nova ala do museu? Se a sua resposta é não, então isso significa que valoriza mil vezes mais a sua visão do que a experiência estética que a nova ala do museu lhe poderia proporcionar.
Como a relação do cálculo feito anteriormente era de cem mil visitantes para mil pessoas com tracoma, portanto de cem para um (e não de mil para um) isso significa que, de acordo com a sua resposta afirmativa à questão da experiência mental, você afinal estaria a dar dez vezes mais importância ao donativo para evitar a cegueira, do que ao donativo para construir uma nova ala no museu de arte (p. 149).
Como vimos, há organizações que conseguem fazer com cada donativo que recebem, centenas, ou milhares de vezes, um maior bem do que outras. Assim, mesmo que um doador seja convencido a doar a uma organização que não seja da sua inteira preferência, e que por isso apenas doe metade do que doaria à sua organização preferida, caso a organização não preferida tenha cem vezes mais impacto do que a preferida, ainda assim essa quantia teria benefícios cinquenta vezes superiores (pp. 154–155).
Não haverá então um processo de comparar adequadamente causas tão diferentes como o tratamento da cegueira, a erradicação da pobreza extrema, a redução do sofrimento dos animais, a protecção das mulheres de violações, a preservação dos glaciares, a promoção da educação, etc., e obter respostas objectivas para saber qual é a melhor destas causas?
Há métodos que, apesar de controversos, geram respostas que noutros casos não temos sequer como apurar (p. 157).
Veja-se, por exemplo, a comparação entre curar da cegueira mil pessoas ou, pelo mesmo custo (cem mil dólares), salvar quinhentas pessoas de morrer à fome. Qual será a melhor? Para respondermos a esta questão devemos considerar uma forma de avaliar a qualidade de vida.
Ponderemos então a seguinte questão em que nos podemos imaginar envolvidos: o leitor está doente e acamado e o seu prognóstico é esse mesmo nos restantes quarenta anos da sua vida. O seu médico encontrou uma cura para a sua doença, mas o tratamento tem como efeito secundário reduzir a sua esperança de vida. Quantos anos de vida estaria disposto a perder em troca de deixar de estar doente e acamado? Dos quarenta anos que lhe restam estaria disposto a perder vinte? Se assim fosse, isso significaria que para si, um ano de vida saudável vale o dobro de um ano de vida doente e acamado. E se fosse dez ou trinta anos? Seja qual for a sua decisão, a resposta determina a comparação entre o valor de um ano de vida saudável e um ano com menor qualidade de vida. É este o princípio usado para determinar um QALY (quality-adjusted life year), um ano de vida ajustado pela qualidade (p. 158).
A Organização Mundial de Saúde usa um processo semelhante para determinar o peso global de determinada doença no mundo, para depois decidir a prioridade das suas intervenções. Assim, ao comparar o peso global das doenças que provocam cegueira e o peso global das doenças que provocam a morte, usa a DALY (disability-adjusted life expectancy), a esperança de vida corrigida pela incapacidade — sendo que uma DALY representa um ano de vida saudável. A partir daí, como no QALY, é feito um desconto a esse ano de acordo com a gravidade da incapacidade. Lembre-se da comparação em que no caso de estar doente e acamado, cada ano poderia valer para si meio ano de vida saudável (p. 160).
Voltando então ao exemplo de intervir com cem mil dólares para evitar a cegueira de mil pessoas ou a morte à fome de quinhentas, sendo que os estudos apuraram que a cegueira corresponde a um desconto de 0,2 à qualidade de vida (ou seja, um ano a viver cego corresponderia a 0,8 anos a viver saudável), teríamos que, a cegueira por tratar conta como uma perda de 1 000 x 0,2 DALY por ano (portanto, duzentas DALY) e os casos de fome contam como uma perda de quinhentas DALY por ano. Percebendo-se agora qual dos casos significaria uma perda maior, tornar-se-ia evidente qual a ajuda que evitaria um mal maior (p.160).
E mesmo quando a resposta é controversa ou disputável, isso não significa que esteja no mesmo plano de se preterir o tratamento da cegueira para ajudar museus, ou de se preterir a ajuda aos pobres dos países em desenvolvimento para ajudar os pobres dos países ricos (p. 163).
Há certamente causas cujo impacto é difícil de avaliar — veja-se, por exemplo, a educação em que os benefícios podem demorar anos para se verificarem, mas dadas as condições de se possuir informação suficiente sobre o que as organizações fazem com um determinado custo, passamos a ter uma base suficiente para apoiar decisões objectivas (p. 165).
Ao referir-se o resgate de animais maltratados como mais uma causa que não pode ser comparada com outras, talvez se tenha exclusivamente em mente animais domésticos, que normalmente têm vidas com uma qualidade razoável. Mas mesmo que cada um dos 164 milhões de cães e gatos dos Estados Unidos fossem maltratados, ainda assim o número seria pequeno comparado com os 9,1 mil milhões de animais que são criados e abatidos para comida nos Estados Unidos (p. 167). Ora, esses animais têm uma vida inteira de sofrimento e o seu número é 55 vezes maior do que o dos animais domésticos. E para se compreender de que tipo de sofrimento se trata, basta imaginar que, se alguém mantivesse um cão, ou um gato, sujeito no mesmo tipo de condições em que vive um porco, ou uma galinha, essa pessoa seria processada por crueldade. Ou então, bastaria pensar nas centenas de milhões de animais que morrem todos os anos devido às condições em que são criados, não chegando sequer ao matadouro, portanto sofrem inutilmente desde que nascem até à morte (p. 168).
Números como estes fazem com que a Animal Charity Evaluators (Avaliadora da Caridade aos Animais) considere que, se a intenção é diminuir o sofrimento dos animais, em termos de custo, é muito mais eficaz defender os animais da pecuária industrial (p. 169). Isto porque convencer as pessoas a reduzirem, ou a eliminarem, o consumo de produtos de origem animal pode dar resultados por uma fracção do custo de resgatar animais.
Mas mesmo que esses resultados sejam quantificáveis e eficazes, como poderia comparar-se objectivamente a ajuda a animais com a ajuda a pessoas? Há quem defenda que é um absurdo comparar o sofrimento animal ao sofrimento humano mas, por exemplo, se nos disserem que alguém deixou um bando de galinhas a morrer à sede num dia de calor, só porque, para abrir a torneira da água, teria de dar uns passos com uns sapatos que lhe apertavam o dedo mendinho do pé, provavelmente acharíamos isto errado. Portanto, se a esta situação fôssemos diminuindo o número de galinhas e aumentando a dor à pessoa, certamente chegaríamos a um ponto de equilíbrio em que pelo menos nenhum dos sofrimentos superasse claramente o outro (p. 170).
Mas como comparar objectivamente, por exemplo, a redução do sofrimento humano curando a cegueira com a redução do sofrimento dos animais, ou até como comparar objectivamente a redução do sofrimento de galinhas com a redução do sofrimento de porcos? (p. 170)
Vejamos um caso específico. Os frangos são mortos com 42 dias; portanto, a vida de nove frangos equivale a um ano de sofrimento. A prevenção desse ano de sofrimento, mesmo admitindo os custos mais elevados, custaria cerca de doze dólares, o que se pode considerar muito barato. Depois, se tomarmos como certa a estimativa de que o sofrimento animal corresponde a um décimo do sofrimento humano, as organizações mais eficazes a defender a causa dos animais, mesmo comparadas com as melhores a evitar o sofrimento humano, fazem um trabalho excelente. Além disso, a redução do sofrimento dos animais, ao fazer-nos reduzir o consumo de produtos de origem animal, ainda nos traz um enorme bónus relativamente à questão ambiental; as organizações que encorajam as pessoas a serem vegetarianas ou veganas são por isso também mais eficazes na protecção do ambiente do que as organizações que, por exemplo, promovem as alternativas ao carvão (p. 175).
Na pior das hipóteses, as alterações climáticas podem significar a extinção da nossa espécie, mas se partirmos do pressuposto de que podemos sobreviver, mesmo que morram muitos milhões, ou mesmo milhares de milhões, o abrandamento dessas alterações climáticas (caso travá-las ou invertê-las seja impossível), pode trazer enormes benefícios para os mais pobres e para as gerações do futuro. Apesar de haver um elevado valor esperado num impacto positivo neste âmbito — o que justificaria uma acção mesmo com uma pequena hipótese de afectar o resultado final —, há ainda demasiadas dúvidas para afirmar que, por exemplo, o uso de cem mil dólares numa organização que pretende abrandar as alterações climáticas (mesmo que se acredite no valor intrínseco da natureza), seja melhor do que, pelo mesmo custo, recuperar a visão de mil pessoas (p. 176).
Depois de escolher a causa, segue-se a escolha da organização que melhor trabalha nessa área. Ora, as dezenas, centenas e por vezes milhares de organizações que se ocupam de determinada causa fazem que um dos contributos mais importantes do altruísmo eficaz sejam as chamadas meta-instituições de caridade, ou seja, aquelas instituições que avaliam as instituições de caridade. Mas ainda há muito para fazer quando, apesar da existência de meta-instituições como a GiveWell e a Animal Charity Evaluators, a maioria dos donativos são uma mera resposta emocional, visto que dois terços dos doadores não faz qualquer pesquisa e a informação sobre a eficácia da organização em causa pode até funcionar como elemento dissuasor para certo tipo de doadores (p. 179).
Mas também há que admitir que os doadores têm uma certa desculpa, pois essa pesquisa não é fácil de fazer. Vejamos dois casos hipotéticos, as organizações A e B. A A aplica oito por cento do seu rendimento em custos com a administração e na angariação de fundos, usando os restantes 92% para os programas que realiza. Já a B aplica mais do que a A na administração e na angariação de fundos (28%), e menos na realização dos seus programas (72%). Até aqui estes dados levariam a optar-se pela organização A em detrimento da B. Mas uma observação mais cuidada revela que, não se referindo a eficácia de cada uma das organizações relativamente aos programas que desenvolvem, os dados não são suficientes para optar por qualquer uma.
Por exemplo, caso se apurasse que a organização A não tinha grandes gastos na administração, pois não assegura uma fiscalização e avaliação dos seus programas e, em consequência disso, apenas dez por cento beneficiam realmente os pobres. E que, pelo contrário, a organização B ao fazer esse tipo de avaliação, consegue que noventa por cento dos seus programas funcionem adequadamente. Agora já poderíamos calcular que do nosso donativo para a organização A oito por cento vai para a administração e para a angariação de fundos, 83% não servem para nada e só nove por cento é que realmente servem para ajudar os pobres. Já no caso da organização B, de cada donativo nosso, 28% vai para a administração e para a angariação de fundos, 7,2% não servem para nada e 64,8% servem para ajudar os pobres. Ao contrário do que parecia inicialmente, a organização B é a melhor escolha (pp. 181–182).
Vejamos então como organizações como a GiveWell procedem a esta avaliação. Actualmente, começam por determinar que tipo de intervenções estão suficientemente estudadas para que hajam provas seguras dos seus efeitos positivos. Depois trata de apurar quais são as organizações que se concentram nesse tipo de intervenções, sendo que as encoraja também a procederem a avaliações (de preferência por parte de entidades independentes) e a publicarem os resultados obtidos, não só por questões de rigor e transparência, mas também porque podem ser fonte de aprendizagem. Por fim recomenda aquelas que apresentam provas rigorosas de que têm os maiores efeitos positivos (p. 183).
A GiveWell deixa fora do seu âmbito de investigação organizações que desenvolvem vários programas e intervenções em simultâneo e sobre as quais, devido à sua escala alargada e diversidade de actividades promovidas, há menos provas da sua eficácia (como por exemplo a UNICEF, a Oxfam, os Médicos Sem Fronteiras, a Cruz Vermelha Internacional, etc.) (p. 183).
Neste tipo de avaliações é utilizado um processo considerado a principal norma de prova da investigação médica: os estudos aleatórios controlados. Como na testagem de um medicamento, em que este é administrado a um determinado número de doentes, confrontando-se os resultados com aqueles a quem foi dado um placebo, neste caso, a uma zona em que se irá aplicar determinada intervenção, contrasta-se uma zona em que essa intervenção não é feita. Esta prática pretende aferir o que decorre daquela aplicação específica e não de qualquer alteração que teria tido lugar de qualquer modo. Possibilita também comparar intervenções, descartando as que são ineficazes ou menos eficazes, por comparação com alternativas (pp. 184–185).
Para quem pretende fazer o maior bem, ou evitar o maior mal, será adequado ponderar mesmo sobre os pequenos riscos, caso estejam em causa grandes catástrofes. Há 65 milhões de anos um grande asteróide terá colidido com a Terra, fazendo que a poeira levantada até à atmosfera provocasse um arrefecimento no planeta de tal ordem que levou à extinção dos dinossauros. Será que a nossa espécie corre o mesmo risco? Será que devemos aplicar os nossos limitados recursos na prevenção de um acontecimento desse género? Será esse o único risco que ameaça a nossa existência? (p. 197)
Estes são alguns dos riscos que, com maior ou menor grau de probabilidade, podemos considerar:
Não conseguimos calcular o risco de alguns destes cenários. E alguns que conseguimos calcular não sabemos como reduzi-los.
Para se perceber a dificuldade destes cálculos veja-se a comparação entre três futuros possíveis que Derek Parfit nos apresenta:
Sendo que 2 é pior do que 1, 3 é o pior cenário, pois apesar da diferença entre 1 e 2 parecer maior do que a diferença entre 2 e 3, se considerarmos que a Terra poderá continuar habitável durante mais mil milhões de anos, e se toda a nossa história correspondesse a um dia, caso viesse a acontecer o cenário 3, a história da humanidade estaria a ser interrompida apenas uma fracção de segundo depois de ter começado (pp. 201–202).
Nick Bostrom leva esta hipótese ainda mais longe, pois a um número possível de anos-vida humanos na ordem de 1018 (um trilião) que pudesse existir ao longo desse período de mil milhões de anos, ele junta ainda as mentes conscientes que poderão vir a existir em operações de computador e não só em cérebros humanos, o que poderia perfazer um número na ordem de 1058. Para este número se tornar mais compreensível Bostrom dá como exemplo uma lágrima de alegria que representasse a felicidade de uma vida inteira. Ora, as lágrimas do conjunto de todas essas vidas poderiam encher os oceanos da Terra em apenas um segundo e continuar a enchê-los durante cem triliões de milénios. Portanto, seria bom que nos assegurássemos que essas lágrimas fossem de alegria (p. 203).
Visto que a esmagadora maioria daqueles que seriam prejudicados ainda não existem e, caso não se evitasse esse risco, nunca viriam a existir, os riscos existenciais levam a tal ponto a nossa capacidade de abstracção que não só é posta à prova a nossa capacidade emocional de empatia como a própria razão pode encontrar motivos para objectar (p. 204).
Portanto, a forma de encararmos este problema depende sobretudo do valor que atribuímos às vidas que ainda não existem e às que podem nunca vir a existir. E dada a limitação dos nossos recursos também é de ponderar se os riscos existenciais devem ser assumidos como prioritários face à erradicação da pobreza extrema ou à redução do sofrimento animal.
Acontece que, aumentando o movimento de altruísmo eficaz, será de esperar que hajam mais pessoas interessadas na causa da redução dos riscos existenciais, mas o facto de não sabermos concretamente como reduzir esses riscos é um obstáculo à filantropia nesta área (pp. 206–207).
Assim, a aplicação de recursos deveria ser gerida entre a aplicação naqueles riscos acerca dos quais temos alguma ideia de como evitá-lo e a aplicação em mais investigação relativamente aos outros que ainda não sabemos como evitar (p. 209).
Há outras estratégias que podem ter como consequência a redução dos riscos existenciais, bem como a redução do sofrimento dos seres sencientes, como é o caso de se ir abolindo o consumo de produtos de origem animal, o que reduziria os efeitos negativos no clima e reduziria a probabilidade de uma pandemia que poderia ter origem no surgimento de um vírus nesse terreno fértil que é o da pecuária intensiva.
Outro caso de benefícios imediatos e de redução de riscos existenciais é a promoção da educação e emancipação das mulheres que, através da sua capacitação para o planeamento familiar, pode contribuir decisivamente para a estabilização do crescimento da população mundial e, com a igualdade de acesso a cargos relevantes de decisão, dada a sua natureza menos violenta, poderia até evitar o risco de extinção por guerra nuclear (pp. 210–211).
Podemos finalmente questionarmo-nos se, num mundo aparentemente dominado por pessoas indiferentes ao sofrimento alheio, a tal ponto que estão dispostas a matar por questões nacionalistas ou religiosas, valerá a pena mantermos o optimismo relativamente à natureza humana, ou acreditarmos nas potencialidades do altruísmo (p. 213).
Será então de considerar que, actualmente, o risco de qualquer pessoa ser vítima de morte violenta provocada por outra pessoa é menor do que em qualquer outro período da nossa história. O outro exemplo desse progresso moral pode encontrar-se comparando o número de crianças que morria por causas evitáveis relacionadas com a pobreza em 2009 ― à altura em que foi publicado A Vida que Podemos Salvar ― , pois totalizavam dez milhões por ano, com a descida para 6,3 milhões em 2015, quando este livro foi terminado. Ora isso significa que hoje, uma meia dúzia de anos depois, morrem menos dez mil crianças por dia, e isso deveria servir de encorajamento para os esforços altruístas, até que não haja mais mortes em grande escala devido a doenças evitáveis (p. 214).
Se a descrição feita até aqui sobre os membros do altruísmo eficaz deixar a impressão que se trata de pessoas que se caracterizam por escolhas extremas, por doarem cinquenta por cento do seu rendimento, por mudarem de carreira para poderem ganhar mais para dar mais, ou por estarem dispostas a doar um rim, então valerá a pena sublinhar que a maioria das pessoas envolvidas no altruísmo eficaz mantém a carreira que tinha antes, acha mais adequado dar um décimo do seu rendimento e ainda tem os dois rins.
Entende-se, portanto, que o altruísmo eficaz é um progresso do nosso comportamento ético e da aplicação prática da nossa forma de raciocinar, e que, se esse comportamento se popularizar, o altruísmo eficaz irá alastrar rapidamente, pois aí será mais simples de perceber a facilidade com que se fazem coisas muito boas, convencendo mais pessoas deste novo ideal ético: o maior bem que podemos fazer (p. 215).
Depois desta viagem de 45 anos, desde a formulação de um argumento à origem de um movimento social, talvez agora se tenha atingido o impulso necessário para o altruísmo eficaz produzir as mudanças em larga escala a que se propõe, e para isso a sua ligação à filosofia parece decisiva. Pois até aqui este movimento tem demonstrando a capacidade de, ao avaliar as críticas que lhe são feitas, assimilar as que são pertinentes, refutando outras. Essa postura não-dogmática e a abordagem crítica à questão de como fazer o maior bem, estão na base das suas múltiplas e significativas realizações e certamente poderão continuar a contribuir para o seu futuro desenvolvimento.
As edições em português têm também acompanhado este movimento desde a sua origem, primeiro com a publicação do livro A Vida que Podemos Salvar (para alguns membros do próprio movimento este ainda é o melhor livro de introdução ao altruísmo eficaz), depois, fora do domínio editorial, com uma tradução colaborativa entre Portugal e o Brasil do Manual do Altruísmo Eficaz (também com textos de Peter Singer e disponível gratuitamente) e agora com a publicação do livro O Maior Bem Que Podemos Fazer.
Este último livro consegue a proeza de ser editado aqui em Portugal menos de um ano depois do lançamento da versão original, embora, e talvez por isso mesmo, a tradução e a revisão não tenham sido tão cuidadas como seria de esperar. Assim, entre as inúmeras gralhas e traduções questionáveis, podem ainda encontrar-se erros de tradução. Entre esses erros o mais grave será, numa referência de Peter Singer à pecuária industrial, traduzir-se exactamente o oposto daquilo que o autor afirmou. Pois quando este salienta o impacto da pecuária industrial no sofrimento animal, independentemente do impacto negativo que esta tem no ambiente, a tradução diz: “Embora estes locais, sobretudo as unidades de criação intensiva, não tenham um impacto ambiental negativo” (p. 136). Mas o original diz: “Although these places, especially the factory farms, do have a negative environmental impact” (p. 108). Talvez isso fosse motivo suficiente para justificar uma versão corrigida mas, como disse, há muitos mais erros. Em qualquer caso, talvez estas notas sobre a tradução possam ser úteis, tanto aos leitores como à editora.
A esta edição falta também o índice remissivo que aparece no original, o que facilitaria a consulta e o estudo do seu conteúdo. E se tomarmos em conta que o livro é sobre um movimento jovem e optimista, virado para o futuro, a escolha da capa parece também não ser a mais adequada. Até porque uma imagem de um país em desenvolvimento, remetendo para a causa do alívio à pobreza, não é certamente representativa de um movimento que não elege uma única causa, nem sequer assume uma causa principal ― seria portanto tão redutor como, por exemplo, optar por uma imagem relativa à causa animal, ou a algum dos riscos existenciais.
Destaca-se pela positiva o prefácio à edição portuguesa, de Pedro Galvão. Trata-se de um breve enquadramento da obra de Peter Singer, mas bastante elucidativo, descrevendo como esta tem influenciado não só o mundo da filosofia, como também o pensamento ético da sociedade em geral. Salienta-se, neste caso, a defesa da obrigação moral de evitarmos um grande mal, se para tal não tivermos de sacrificar algo de importância semelhante. Assim, considerando o valor de uma vida, no caso de uma criança estar a afogar-se num lago raso, não devo deixar de tentar salvá-la só porque isso me obriga a sacrificar o valor do par de sapatos que estragasse ao entrar no lago. Do mesmo modo, a minha obrigação mantém-se face a qualquer pessoa em dificuldades extremas e que esteja ao meu alcance ajudar, pois o valor da vida não diminui em função de variáveis como a proximidade (física ou emocional). Caso contrário, o que dizer do valor da minha própria vida face aos mais de sete mil milhões de pessoas de quem estou longe ou para quem eu nem sequer existo?
Agora que escrevo estas últimas linhas, penso no jovem de 25 anos que escreveu um artigo de filosofia em finais de 1971, penso no impacto desse artigo, que se repercutiu ao longo de quatro décadas e meia, dando inclusivamente origem a um movimento social difundido por todo o mundo. Tudo começou com a história de uma criança a afogar-se num lago. Hoje, 6 de Julho de 2016, esse jovem comemora setenta anos, e a “criança do lago” acompanhou-o a maior parte da sua vida. Poderia então perguntar-se, ao longo de 45 anos, quantas vidas foram salvas devido a essa “criança do lago”? E quantos argumentos na história da filosofia terão tido um impacto positivo tão grande? A resposta é difícil, até porque estão a gerar-se agora as condições para que esse impacto seja cada vez maior.
Finalmente, concorde-se ou não com o que o altruísmo eficaz preconiza, há seguramente bons motivos para reflectir sobre questões éticas desta natureza e sobre a viabilidade da sua aplicação, e sendo esse o caso, este livro é seguramente um excelente ponto de partida para pensarmos sobre como podemos fazer o maior bem.
José Oliveira