Menu
Crítica
18 de Fevereiro de 2006   Metafísica

Livre-arbítrio, evolução e “design”

Desidério Murcho
A Liberdade Evolui
de Daniel C. Dennett
Tradução de Jorge Beleza
Lisboa: Temas e Debates, 2005, 365 pp.

O problema do livre-arbítrio é fundamentalmente num conflito entre a informação científica acerca do mundo e a nossa experiência como seres que agem. A ciência diz-nos que o mundo é determinado (ao nível que conta, o nível macrocósmico): dado qualquer estado do mundo, só há um estado seguinte fisicamente possível. Mas agir é, por definição, escolher uma entre várias acções possíveis. Mesmo quando alguém nos aponta uma pistola e nos obriga a dar-lhe a carteira, estamos a agir e poderíamos fazer outra coisa; não o fazemos porque não queremos levar um tiro. Mas poderíamos fazer outra coisa. Este “poderíamos” parece incompatível com a ideia de que o mundo é determinado: pois no instante anterior à minha acção, dado que o universo é determinista, só há um estado fisicamente possível.

Este conflito não é como o conflito que temos entre a sensação de que a Terra está parada e a descoberta científica de que não está. Neste último caso, o conflito é de curta duração porque rapidamente compreendemos como se gera a ilusão de que a Terra está parada, e podemos viver sabendo que não o está. Isto não acontece no caso do livre-arbítrio. Agir é admitir que há um futuro aberto e não é possível agir sem tal admissão. E não vale a pena procurar o livre-arbítrio no indeterminismo, porque num universo indeterminista é ainda mais difícil perceber como poderia o livre-arbítrio ser possível: num universo indeterminista eu decido agora levantar o braço e levanto-o mesmo, mas amanhã tomo a mesma decisão e o braço não se levanta porque as minhas decisões não determinam as minhas acções.

O incompatibilismo é o grupo de teorias filosóficas que defende que o determinismo e o livre-arbítrio são incompatíveis. Há dois tipos de incompatibilismo: o libertismo e o determinismo radical. Os primeiros defendem que o universo não pode ser determinista, precisamente porque nós temos livre-arbítrio. Hoje em dia, um dos libertistas (não confundir com libertino!) mais eminentes é Robert Kane, e Dennett discute o seu trabalho no Cap. 4 (“Uma Audiência para o Libertismo”). Mas também os filósofos existencialistas eram libertistas, dado que colocavam a liberdade radical do ser humano como princípio fundamental da sua filosofia (Sartre foi até acusado de dar pouca importância às chamadas condicionantes históricas e culturais da acção humana, e este é um caso em que Sartre tinha razão e os críticos não perceberam o que estava em causa). O determinismo radical é o grupo de teorias que defende que o livre-arbítrio é apenas uma ilusão, sendo Espinosa e Hobbes dois dos seus representantes clássicos.

Dennett é um dos mais importantes defensores actuais do compatibilismo — a ideia de que o determinismo da natureza e o livre-arbítrio humanos são perfeitamente compatíveis. É extremamente difícil defender o compatibilismo hoje em dia porque já se viu que as suas versões tradicionais, como a de Hume, não funcionam e são apenas uma forma de fugir subtilmente ao problema. E é precisamente essa a crítica que se faz hoje em dia a Dennett: que ele é de facto um determinista radical disfarçado, usando a expressão “livre-arbítrio” sem que queira dizer realmente o que devia querer dizer. Será?

Dennett nega-o veementemente há anos e este livro é a sua mais recente tentativa de persuadir o grande público, os cientistas e os filósofos. Talvez um dos pecadilhos do livro (ou uma das suas virtudes?) seja precisamente o facto de oscilar entre a divulgação científica, o artigo de jornal para o grande público e o tratado filosófico para especialistas. Quem não simpatiza com piscadelas de olho ao leitor e parágrafos muito engraçadinhos para a malta com dificuldades de concentração não se deixar dormir não vai gostar do tom do livro. Mas goste-se ou não do tom, é um livro central para quem se interessa por este problema fundamental da filosofia, mas exige maior concentração na leitura do que um agradável livro de divulgação científica.

A perspectiva naturalista de Dennett é conhecida, e ele aplica-a ao problema do livre-arbítrio. A ideia é investigar como será que apareceu o livre-arbítrio no mundo. Antes de existirem agentes complexos, como os seres humanos ou outros seres extraterrestres, tudo no universo dependia das leis inexoráveis da natureza, sem lugar a futuros abertos; a cada instante, o instante seguinte estava inteiramente determinado. Mas a pouco e pouco surgiram seres cada vez mais complexos, e estes seres parecem exibir livre-arbítrio. A estratégia de Dennett é procurar mostrar que o livre-arbítrio, tal como as bananas, é o produto da evolução pela selecção natural. E tal como uma pessoa ingénua pode pensar que as bananas não poderiam existir se não tivessem sido concebidas por um Arquitecto Inteligente, podemos pensar erradamente que o livre-arbítrio não pode surgir num universo rigorosamente determinístico. Mas isto é um erro, procura Dennett mostrar.

Depois de defender uma perspectiva naturalista sobre nós e o nosso lugar no mundo, no Cap. 1, Dennett formula claramente as suas teses principais no início do Cap. 2:

“Primeiro, muitos pensadores partem do princípio de que o determinismo implica a inevitabilidade. Mas não implica. Segundo, muitos pensam que é óbvio que o indeterminismo — a negação do determinismo — nos daria a nós, agentes, alguma liberdade, alguma mobilidade, algum espaço de manobra, algo que não seria possível num universo determinista. Mas não daria. Terceiro, normalmente supõe-se que num mundo determinista não há opções reais mas apenas opções aparentes. Isto é falso”. (p. 39).

É a terceira tese que é extremamente difícil de defender. A primeira é uma negação sofisticada da confusão elementar entre determinismo e fatalismo. O fatalismo é a ideia popular de que, se está “escrito” que algo vai acontecer, isso irá acontecer, façamos nós o que fizermos — é inevitável. Isto não é a tese determinista, pois o fatalismo supõe que as nossas acções são causalmente inertes ou quase inertes. Dennett pensa que a confusão entre fatalismo e determinismo, apesar de popular, está relacionada com outra confusão que já não é popular, mas sim própria dos filósofos: a ideia de que num universo determinista não há lugar à “evitabilidade” porque tudo é inevitável. Dennett procura então mostrar que isto é falso, e que as leis cegas da evolução trabalham de tal modo que acabam por surgir seres com a capacidade para detectar o perigo e evitá-lo. Contudo, só ao nível da concepção ou “design” se pode falar de “evitação”; ao nível físico, não há tal coisa. E é aqui que o leitor se queixa: o compatibilismo de Dennett é afinal uma ilusão, pois o que ele supostamente deveria mostrar é que o determinismo físico é compatível com o verdadeiro livre-arbítrio, ao nível físico, e não apenas com o que parece livre-arbítrio ao nível do “design”. A resposta de Dennett é dizer que o livre-arbítrio é uma noção imprópria ao nível físico — um pouco como desejar encontrar nos átomos a razão de ser das leis da biologia, por exemplo. Se Dennett tem ou não razão, compete aos filósofos e aos leitores determinar.

Desidério Murcho

Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457