Neste livro, David Wiggins propõe-se descrever a moralidade como um fenómeno humano de uma maneira que evita a irrealidade que ele vê na maior parte da teoria ética contemporânea. “O que uma filosofia moral completamente amadurecida poderia procurar fazer”, escreve,
é oferecer uma explicação da moralidade que inclua o leque completo das dificuldades morais, considerando-as mutuamente irredutíveis e indispensáveis, não dando primazia aos traços de carácter, nem às virtudes, nem às práticas, nem aos actos, nem aos estados de coisas — ou dando primazia a tudo isso ao mesmo tempo. Essa filosofia, não sendo consequencialista nem se centrando nas virtudes, poderia incluir alguma da subtileza dos próprios fenómenos morais e das respostas morais que nos suscitam.
Wiggins resiste sem dificuldade ao ímpeto filosófico comum para procurar a compreensão na simplicidade e na generalidade, e para unificar a moralidade sob um único princípio ou valor que tudo governa. Opõe-se em especial às teorias consequencialistas, que sustentam que as únicas coisas que contam para a moralidade, em última análise, são os resultados melhores ou piores, e ao utilitarismo, a forma de consequencialismo que afirma que os únicos resultados que contam são os prazeres e as dores, ou a felicidade e a infelicidade.
Ao invés, Wiggins vê várias preocupações e disposições distintas, cada uma das quais faz parte da nossa solidariedade para com os outros seres humanos nossos confrades: o sentido de que certos actos são estritamente proibidos, ou hediondos; a prioridade das necessidades fundamentais; a ideia do que é humanamente susceptível de ser vivido; o sentimento fraco mas muito geral de benevolência; os valores da honestidade, equidade e assim por diante. Isto não tem como resultado um sistema abrangente que nos diz o que devemos fazer em todas as situações. Mas expressa o perfil moral e político característico de Wiggins, ferozmente antimoderno mas integralmente humanitário, e comprometido com a aplicação da ideia de verdade objectiva ao pensamento moral.
Ethics apresenta-se como uma série de lições que começam por apresentar à audiência alguns dos principais filósofos morais — Platão, Aristóteles, Hume, Kant, Mill, Hare e outros — por meio das suas respostas a três perguntas:
Estas perguntas, e as suas interdependências complexas, são então retomadas e abordadas em si mesmas por Wiggins. A sua posição está mais próxima do naturalismo de Hume, que ele interpreta contudo de uma maneira especial, tornando-o (de facto, ainda que não nominalmente) uma concepção da razão prática de sabor aristotélico, cujas razões vêm do seio da ética e não de um padrão mais elevado ou metafísico de razoabilidade. Um dos feitos do livro é tirar Hume do seu papel tradicional como o arqui-inimigo da razão na teoria ética.
Na concepção de Wiggins, uma característica importante da moralidade é a sua modéstia. As suas asserções têm de ser humanamente sustentáveis, e têm de estar firmemente ancoradas em disposições que possam prontamente tornar-se para nós uma segunda natureza. Assim, Wiggins aprova a invocação de Hume da motivação moderada da benevolência para com os outros, em vez do altruísmo imparcial muitíssimo mais exigente que seria necessário para motivar o “utilitarismo dos actos” (a perspectiva de que devemos sempre agir de maneira a maximizar a soma total de felicidade de toda a gente). E rejeita a objecção kantiana de que ancorar a moralidade em algo tão contingente como o sentimento humiano pelos nossos semelhantes é inconsistente com o carácter incondicional das exigências morais:
Pelo menos para nós, quer dizer, para os seres humanos, isto não é uma contingência como qualquer outra. Poderíamos nós seriamente decidir mudarmo-nos a nós próprios para eliminar a nossa própria humanidade (humiana)? Ou para eliminar a nossa razoabilidade pedestre simples [...]? Sem elas, iríamos sequer reconhecer-nos?
Wiggins rejeita também a exigência que Gláucon e Adimanto fazem a Sócrates, na República, para mostrar que a motivação para a justiça é tão poderosa que irá prevalecer mesmo que o homem justo seja torturado e injuriado e que o injusto seja admirado e recompensado. Os motivos morais não devem ter de passar este teste; a maior parte da moralidade não é heróica:
O heroísmo do homem platonicamente justo é de facto um caso muito especial de pureza e força de motivação. Mas porquê pressupor que a fraqueza relativa da motivação moral nos casos que não são heróicos mancha a pureza desta motivação? [...] Porquê supor que as motivações ficam manchadas porque, quando os actos que nos fazem executar são seguidos de punições horríveis, as próprias motivações ficam cada vez mais fracas ou cada vez mais inertes? Antes de serem expulsas, não eram motivos para agir de maneira bondosa e com consideração em prol do destinatário, não eram motivos para ser honesto simplesmente em nome da honestidade?
Uma modéstia diferente manifesta-se na insistência de que o principal valor na determinação da justiça distributiva não é a igualdade mas antes a necessidade. Wiggins já escreveu sobre a importância moral e política das necessidades, e acerca do seu estatuto não-relativo. Assegurar que as pessoas têm os meios para responder às suas necessidades mais básicas de sobrevivência e sustento — que devem ter o suficiente — faz parte da solidariedade humana. Mas fornecer o que é de valor acima desse nível não deve reger-se pela igualdade nem pelo imperativo de maximizar o valor total, segundo uma métrica abrangente. Há muitos valores diferentes, ancorados nas diferentes possibilidades da vida humana, e todos fornecem razões, mas habitualmente não podem ser combinados por meio de um princípio único para determinar aquela coisa única que é correcto fazer. Esse é o caminho da análise de custos e benefícios que leva à abolição dos departamentos de Clássicas.
A modéstia da moralidade é evidenciada de uma maneira particularmente interessante pela asserção de Wiggins de que algumas situações são tão extremas que deixam a moralidade para trás:
Quando alguém, uma pessoa comum que não seja necessariamente consequencialista, faz notar uma emergência tão grande que um agente beneficente terá de fazer algo simplesmente terrível para evitar um desastre de proporções quase impensáveis, está a pessoa que oferece este conselho realmente a dizer à pessoa beneficente o que é correcto que faça? Certamente que não. [...] Está a tentar mostrar à pessoa beneficente que aquele acto terrível é o que ela tem de fazer, e não o que está “moralmente obrigada” a fazer. Esta é uma nova disciplina e uma nova dialéctica, situando-se completamente fora da esfera da “deontologia”, tal como esta era tradicionalmente concebida [...] questões acerca do que é correcto ou incorrecto, da obrigação ou dos actos cuja execução seria moralmente louvável porque foram feitos por um sentido do dever [...] todas estas coisas terão já há muito sido deitadas pela janela. O seu lugar terá sido ocupado pela (alegada) necessidade severa.
Wiggins ilustra-o com um exemplo, de Cruel Sea, de Nicholas Monsarrat: um capitão que faz detonar uma carga de profundidade para destruir um submarino, sabendo que irá matar todos os homens que foram lançados à água ao escapar de um navio de carga que acaba de ser afundado. Wiggins acrescenta, o que é credível, que tais casos não podem também ser entendidos por referência a uma exigência moral geral de que temos sempre de agir de modo a produzir o melhor resultado possível. Se ele tiver razão, a prática filosófica comum de usar casos extremos deste género para testar as teorias morais gerais não tem justificação. Estes casos podem não fornecer de modo algum “dados morais”, no sentido habitual.
Contudo, a moralidade é ubíqua na vida comum, e o facto de colidir com limites e de não formar um sistema único e abrangente, não quer dizer, do ponto de vista de Wiggins, que não é um domínio de verdade e falsidade, ou que não há factos morais. A moralidade não é apenas um conjunto de proposições, mas por vezes os juízos morais podem ser expressos como proposições, e podem ser verdadeiros ou falsos.
Ao explicar a sua posição cognitivista, Wiggins usa proveitosamente a ideia de “nada mais haver para pensar” — uma ideia que usou alhures. Não se consegue estabelecer verdades morais a partir do exterior da moralidade, tal como não se consegue estabelecer verdades matemáticas a partir do exterior da matemática. Mas o sinal de que em cada caso estamos lidando com juízos que são objectivamente verdadeiros ou falsos é que frequentemente a melhor explicação da razão pela qual alguém passou a acreditar que 7 + 5 = 12, ou que a escravatura é errada, é aquela que não deixa qualquer espaço a quem a propõe para negar que estas coisas são verdadeiras. Depois de termos explicitado completamente as razões morais de um europeu contemporâneo para pensar que a escravatura é errada, nada mais há a pensar a não ser que é errada. Ficamos sem espaço para duvidar, seja acerca de o juízo ter de todo em todo valor de verdade, seja acerca de ser verdadeiro em vez de falso. Penso que não se pode exigir mais do que isto numa defesa da verdade e da objectividade de um domínio de discurso.
Wiggins insiste que a objectividade da moralidade não fica erodida pelo facto de a fonte destes juízos ser num sentido subjectiva, dado que se situa nas disposições e respostas da moralidade humana, e não numa estrutura independente do universo. “Objectivo”, defende, não é o oposto de “subjectivo”, e “a escravatura é errada” é um exemplo de uma verdade objectiva que é também subjectiva. Ele faz notar que neste objectivismo se afasta de Hume. Mas acrescenta Wiggins: “A escala humana dos valores é intemporal ou (caso se prefira) alcança todos os momentos do tempo na direcção do passado e do futuro. O facto de o seu reconhecimento ter a história que tem não obriga Hume a parar de pensar que a ingratidão é odiosa ou desprezível em si mesma”. À explicação de um juízo de que p que não nos deixa outra coisa que pensar senão p chama Wiggins uma “explicação vindicatória”, e ele pensa que o estilo de análise moral de Hume foi concebido para fornecer explicações vindicatórias. Hume, afirma, “é um genealogista que está, além disso, comprometido com isso que ele explica — isto é, que está disposto, quando um número suficiente de peças se encaixar, a tentar vindicar a maior parte das atitudes e convicções que procura explicar (mas não todas, certamente)”.
Wiggins é profundamente conservador — a única pessoa que conheço que trata “agenda” como um plural em inglês, como em latim. Detesta a ética pública sobrerracionalizada do aperfeiçoamento transformativo perpétuo — a desapropriação de povos indígenas ou nómadas em nome do desenvolvimento económico, ou a degradação do ensino superior em nome da eficiência e da igualdade de oportunidades. Intelectualmente, estes males são representados e politicamente sustentados pelo utilitarismo, e pelo consequencialismo que o estrutura. O consequencialismo significa que toda a escolha, e a justificação de todos os princípios morais, tem de depender do modo como atribuímos valor aos resultados, e do modo como adicionamos esses valores. Significa que tudo pode ser posto na balança com tudo o mais.
A objecção central de Wiggins é que grande parte da moralidade, como da vida, não se baseia na maximização do valor neste sentido. O que há de errado no homicídio, ou na traição, não é a sua falta de valor. A ideia do que é errado, proibido, hediondo, é a ideia do que é em si moralmente impossível fazer, do que em si é contrário à vida humana e aos seus propósitos. Se for substituído por um valor quantificável, “não haverá coisa alguma, por mais terrível que seja, que não se possa exigir que um agente faça para dissuadir/impedir que os outros façam mais disso, numa escala gigantesca, com resultados ainda mais aterradores”. Quem tenta deste modo reduzir tudo ao valor e à sua falta não entende a linguagem ética e a atitude para com os nossos semelhantes a que dá expressão.
A base do ético, segundo Wiggins, é a solidariedade, que se dá a ver numa “aversão primitiva a actos que surgem como uma agressão directa de um ser pessoal a outro, actos como o homicídio, provocar ferimentos ou lesões, o saque e o dano de inocentes, pagar o bem com o mal gratuito, e prestar falsos testemunhos”. Dada esta fundação, as virtudes sociais mais positivas da cooperação podem ser desenvolvidas, e a moralidade pode alargar-se às convenções da propriedade e do contrato, e à promoção de outros valores positivos. Mas a condição básica da solidariedade tem de reter a sua prioridade.
Wiggins leva a perspectiva para a política com uma discussão da justiça que resiste ao foco principalmente institucional da maior parte das teorias modernas, a favor de uma concepção segundo a qual a justiça de uma sociedade é inseparável da justiça dos seus membros individuais. Apesar de ele encontrar esta perspectiva neo-aristotélica nos escritos de Bertrand de Jouvenel, Wiggins faz notar que tem algo em comum com a crítica de G. A. Cohen à restrição por parte de Rawls dos seus princípios de justiça à estrutura institucional da sociedade — mas sem o igualitarismo de Cohen.
Um consequencialista admitirá que a solidariedade é certamente melhor do que o egoísmo, mas que para avaliar disposições morais temos ainda de ocupar um ponto de vista mais racional e impessoal. Podemos manter essas disposições que produzem bons resultados, ao passo que os que não o fazem podem ser gradualmente alterados por meio da formação e educação moral. Por que não haveria isso de contar como progresso moral? Wiggins, contudo, considera tal arregimentação um abuso da ideia de razão prática. O pensamento moral tem de levar as disposições morais a sério em si mesmas, e acabará por perder o sentido se tentar transcendê-las, imitando uma forma científica de racionalidade. A desejabilidade de produzir resultados melhores no cômputo geral não tem pura e simplesmente a autoridade racional para anular as razões que vêm das disposições morais mais básicas.
Em contraste, uma avaliação kantiana de princípios de conduta que mantém uma preocupação específica por cada indivíduo está provavelmente mais em harmonia com a solidariedade primitiva da qual Wiggins pensa que depende a moralidade — apesar de ele preferir definitivamente a solidariedade humana de Hume à solidariedade racional de Kant. Wiggins é sempre um autor complexo, e esta não pode verdadeiramente ser considerada uma obra introdutória, mas é um livro rico e eloquente, sendo difícil resistir à sua sanidade moral.