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Crítica
25 de Setembro de 2006   Ética

Teremos mais deveres para com os nossos?

Ricardo Almeida

Sócrates — Bom dia, meu caro Kyrillos. Então, já pela praça do mercado, tão cedo?

Kyrillos — É verdade, Sócrates. Sabes como se costuma dizer, começar o dia com o nascer do Sol é meio caminho andado para um percurso saudável!

Sócrates — Tens toda a razão. Admiro-te por isso!

Kyrillos — E sabes, Sócrates, acho que o dia já começou particularmente bem para mim. Adivinha que, mal aqui cheguei, consegui encontrar figos nossos, isto é, nacionais!

Sócrates — A sério? Não são fáceis de encontrar.

Kyrillos — Pois não. Eu que o diga, por Zeus!

Sócrates — Mas explica-me, bom velho Kyrillos, os figos são mais saborosos quando cultivados no nosso território?

Kyrillos — O quê? Não, acho que não.

Sócrates — Mais nutritivos, talvez?

Kyrillos — Também não estou a par desse aspecto, Sócrates. Mas por que perguntas?

Sócrates — Bom, Kyrillos, não compreendo então o porquê do teu entusiasmo ao comprar figos nacionais.

Kyrillos — Então, meu velho brincalhão, zombas comigo, porventura? Não é óbvio que o motivo do contentamento é o de que devemos dar preferência aos produtos que são nacionais?

Sócrates — Com que objectivo?

Kyrillos — O de ajudar os nossos produtores, pois claro!

Sócrates — Estaria, então, errado se tivesses ajudado um produtor de um país diferente?

Kyrillos — Não é que estivesse errado, Sócrates — é que devemos ajudar primeiro os nossos.

Sócrates — E quem são os nossos — os do nosso país?

Kyrillos — Exactamente.

Sócrates — Então, para ver se eu compreendo, dizes que devemos beneficiar aqueles que partilham da nossa nacionalidade em relação aos que não se encontram nessa situação, é isso?

Kyrillos — Sim, Sócrates, é isso mesmo.

Sócrates — Compreendo, isso é aquilo a que chamamos “nacionalismo”. Diz-me, conheces alguma demonstração da validade deste princípio, isto é, de que é correcto beneficiar mais, ou, se preferires, em primeiro lugar, os do nosso país em relação aos dos outros países?

Kyrillos — Como assim, Sócrates — não é óbvio?

Sócrates — Meu caro Kyrillos, muitos dos nossos problemas, a nível de mentalidades, assentam em coisas que, por acharmos que são óbvias, escusamo-nos a justificá-las.

Kyrillos — Bom, Sócrates, está bem. É que me parece que devemos ajudar primeiro os que estão mais próximos.

Sócrates — Muito bem. E diz-me, se dissermos que uma dada pessoa tem direito a ser ajudada devemos ajudá-la, se podermos?

Kyrillos — Sim, Sócrates.

Sócrates — E quanto maior for o direito dessa pessoa em receber essa ajuda maior é o nosso dever?

Kyrillos — De acordo, Sócrates.

Sócrates — Imagina então a seguinte situação hipotética: num país tropical, uma comunidade de pessoas é habitualmente ajudada, em termos humanitários, por pessoas de uma aldeia próxima. Certo dia, essa comunidade é afectada por desastres naturais que acabam por obrigar alguns desses nativos a dispersarem-se ao longo de um vasto território. Vamos supor que as necessidades humanitárias dessas pessoas não se alteraram com a mudança. Se assim é, o seu direito a serem ajudadas também não se alterou, ou será que sim?

Kyrillos — Não, Sócrates, não poderia ser de outro modo.

Sócrates — Supõe, agora, que as pessoas da segunda aldeia podem continuar a ajudar estas pessoas com a mesma facilidade e eficiência de antes, ou seja, de forma análoga, apesar de as distâncias agora serem maiores. Posto isto, e o facto de os direitos destas pessoas permanecerem iguais, não decorre do nosso acordo que os deveres das pessoas da segunda aldeia em ajudar também se mantiveram?

Kyrillos — Não poderia ser de outra forma.

Sócrates — Então, se o dever é o mesmo, este não depende das distâncias a que estão as pessoas em causa. Isto mostra a falsidade do teu princípio.

Kyrillos — É o que tu dizes, Sócrates! Eu não penso assim.

Sócrates — Então, meu caro Kyrillos, por que esperas? Se te parece falsa a conclusão terás toda a facilidade em encontrar o erro que cometi no nosso raciocínio, visto que só partimos daquilo em que acordámos. Porém, talvez te consiga convencer com a mesma situação mas em novas circunstâncias, mantendo aquilo que acordámos. Imagina que, nessa aldeia, quinze pessoas foram obrigadas a procurar refúgio em duas ilhas, suficientemente distantes do local anterior para agora nos podermos concentrar apenas nestas duas ilhas. Cinco dessas pessoas foram para uma ilha e as outras dez foram para uma segunda ilha, a uns quilómetros de distância da primeira. Adiciono a informação de que as duas ilhas eram já habitadas por pessoas razoavelmente abastadas. Vamos supor que todas as pessoas foram igualmente afectadas pelos desastres e que, à chegada aos seus novos destinos, se encontram em igual nível de necessidade, que é grande, por sinal. Confirmas que, sendo assim, estas quinze pessoas têm direito idêntico a serem ajudadas, isto é, que entre elas não há quaisquer pessoas que mereçam mais ajuda do que outras?

Kyrillos — Sim, Sócrates, parece que sim.

Sócrates — Mas, meu prudente amigo, eu nada te disse sobre o número e distribuição dos nativos que já existiam na ilha.

Kyrillos — Como assim, Sócrates, que dizes?

Sócrates — Segue o meu raciocínio. Se as pessoas são em tudo idênticas, incluindo no nível de ajuda de que precisam, têm igual direito a ser ajudadas. Como dissemos, iguais direitos implicam iguais deveres da nossa parte (ou de quem possa ajudar). Até aqui tudo bem?

Kyrillos — Sim, Sócrates. Continua.

Sócrates — Agora, supondo que o princípio que enunciavas é verdadeiro (o de que devemos ajudar primeiro os que nos estão mais próximos ),1 se não há um maior dever em ajudar algumas dessas pessoas em relação a outras, então o que se concluiria é que não é verdade que algumas dessas pessoas estejam mais perto dos seus potenciais ajudantes que outras. Contudo, nada sabemos sobre isto pois eu não dei qualquer informação sobre o número de nativos, quer capazes quer incapazes de ajudar, que existem nas várias ilhas e quão próximos destas pessoas estão. Percebes como o teu princípio nos levou a uma conclusão falsa?

Kyrillos — Percebo, Sócrates.

Sócrates — Estas pessoas têm direitos e isso não varia com a distância em relação às outras pessoas que têm possibilidade de as ajudar.

Kyrillos — Mas no nosso mundo a situação não é tanto de termos pessoas que costumávamos ajudar e que se viram obrigadas a ir para um sítio mais longe, mas sim de pessoas que já se encontram longe.

Sócrates — E poderão essas pessoas ter culpa de terem nascido num local do mundo mais longe dos países onde estão as pessoas com maior capacidade de ajudar? Do mesmo modo, no nosso exemplo, as outras pessoas não têm culpa de se verem obrigadas a emigrar. Não realço o facto de a culpa também não ser tua visto que para ti é indiferente ajudar de um modo ou de outro.

Kyrillos — Tens, necessariamente, razão, Sócrates.

Sócrates — Também não me parece que fizesse sentido algum que as organizações humanitárias começassem a distribuir menos ajuda à medida que fossem lidando com países mais longínquos. Não devemos recorrer à distribuição populacional para mostrar que algumas dessas pessoas têm maior direito a receber ajuda do que outras.

Kyrillos — Compreendo, Sócrates. Mas isto suscita-me um receio: não deveria ser cada país a cuidar dos seus?

Sócrates — Bom, Kyrillos, se assim fizermos repara que o que vamos ter é o seguinte: as pessoas dos países do norte, relativamente ricos e desenvolvidos, irão preocupar-se, em primeiro lugar, consigo próprias e aquelas que se preocupam logo de início com as pessoas do sul, pobre e em vias de desenvolvimento, são elas próprias. Compreendes que apelar a que os ricos2 se preocupem com os ricos e os pobres com os pobres apenas aumenta o fosso já existente entre os dois grupos? Simplesmente não existe igualdade de oportunidades para que as pessoas de um país pobre consigam fazer pelo seu país tanto como as pessoas de um país não tão necessitado conseguem fazer pelo seu, ou, em última instância, pelo país mais pobre.

Kyrillos — Tens uma certa razão, Sócrates.

Sócrates — Também não me parece boa ideia condicionarmos a nossa ajuda por fronteiras (que não são mais que delimitações políticas), dizendo que aqueles que estão do nosso lado da fronteira merecem mais ajuda. As necessidades das pessoas não se determinam pela variação de delimitações políticas.

Kyrillos — Mas, Sócrates, se não formos nós a cuidarmos de nós próprios, quem o fará?

Sócrates — Bom, meu amigo Kyrillos, não poderias ser mais ingénuo. Se a nossa mentalidade evoluir para um patamar em que temos a preocupação de ajudar em primeiro lugar aquele que é mais necessitado — partindo do princípio de que tal está inteiramente dentro das nossas capacidades3 — independentemente da nação, então o nosso país receberá ajuda no momento em que tal for justificado. Isto é, se não recebermos antes é porque a ajuda esteve a ser administrada a quem precisava mais do que nós.

Kyrillos — Não sei que dizer. É difícil contra-argumentar.

Sócrates — Olha, se colocarmos a discriminação a que apelavas em termos do Princípio da Igualdade na Consideração de Interesses, podemos dizer que o nacionalismo é a desigualdade na consideração de interesses com base na nação.4 Isto é, significa que nos é legítimo dar mais peso aos interesses de um indivíduo do que a outro simplesmente porque o primeiro pertence ao grupo da nossa nação. Compreendes até aqui?

Kyrillos — Sim, Sócrates.

Sócrates — Em tempos pensou-se ser legítimo violar o Princípio da Igualdade na Consideração de Interesses (PICI) com base na raça (racismo). Hoje sabemos e aceitamos que um indivíduo tem direito a que os seus interesses sejam considerados da mesma forma que são os de um outro indivíduo qualquer, e que a raça a que pertence não deve ter qualquer influência. Parece-te fazer algum sentido, Kyrillos, que, após aceitarmos que o facto de um indivíduo pertencer ao grupo da raça X não é motivo suficiente para ser atribuído menor peso aos seus interesses, continuemos a defender que o facto de esse indivíduo pertencer ao grupo da nação Y já o é?

Kyrillos — Não, Sócrates. Visto por essa perspectiva...

Sócrates — Repara também no seguinte: ainda que não resultasse num racismo puro, aquele que escolhesse praticar o nacionalismo, ou que prefira violar o PICI com base na proximidade, vai estar, na realidade, a praticar algo muito próximo do racismo.

Kyrillos — O quê? Não percebo o que dizes agora!

Sócrates — Repara que se um europeu, ou um africano, seguir uma conduta em que viola o PICI com base na proximidade, vai estar a dar mais peso aos interesses de um grupo de indivíduos que, na sua maioria, pertencem à sua raça e à sua raça apenas e irá deixar de fora (ou mais afastados) aqueles que não pertencem. Esta é uma vertente, agora prática, deste tipo de discriminações que se assemelha muito ao racismo.

Kyrillos — Compreendo.

Sócrates — Por outro lado, Kyrillos, há pouco perguntavas se não deveria ser cada país a cuidar de si próprio; se não formos nós a preocuparmo-nos, em primeiro lugar, com o nosso país, então quem será? Com que legitimidade podemos afirmar isto e não afirmar ao mesmo tempo que deve ser cada raça a cuidar de si própria, quer totalmente quer em primeiro lugar?

Kyrillos — Compreendo-te perfeitamente.

Sócrates — Repara também que, quando ainda se aceitava massivamente o racismo, vários sentimentos negativos surgiram por parte das raças oprimidas. Estes baseavam-se, pelo menos, no facto de cada um desses indivíduos se sentir discriminado devido a uma característica sua de que ele próprio não tinha culpa nem poderia mudar, ainda que por hipótese absurda o quisesse — e por que razão haveria de querer, excepto se ele próprio interiorizar o racismo de quem o discrimina? Se as pessoas nos países mais afastados (que, por norma, são também mais necessitadas) se aperceberem da injustiça do nacionalismo — se é que já não se aperceberam — podem cultivar o mesmo tipo de sentimentos.

Kyrillos — Até te compreendo. Mas olha, ó Sócrates, tu não vês que, à nossa volta, existe muito o sentimento de proximidade familiar, a tendência emocional de cada pessoa a olhar primeiro pelos seus? Por exemplo, um pai tem uma tendência a gastar muito mais com o seu filho do que gasta com os filhos dos outros.

Sócrates — Não te posso dizer que esse não é dos argumentos que mais costumo ouvir, Kyrillos. Mas, sabes como as pessoas, de acordo com aquilo que eu constato, costumam agir quando se apercebem de motivos como esse? Parece que, ao depararem-se com esses sentimentos, não hesitam em obedecer-lhes cegamente! Se esses sentimentos existem, então a única obrigação que temos, à partida, é tomá-los em consideração, tal como tomamos em consideração todos os sentimentos ou interesses de todas as pessoas envolvidas. Mas não há nada que nos diga que esses sentimentos devam ser excepcionalmente seguidos acriticamente! Compreendes o que digo?

Kyrillos — Sim, Sócrates.

Sócrates — Mas, parece-me que nós já chegámos a um ponto em que estamos de acordo relativamente ao seguinte: de facto, não há qualquer motivo intrínseco pelo qual os interesses de uma pessoa que esteja longe, quer geográfica quer emocionalmente, sejam tomados em menor consideração que outra que esteja mais perto. Aquilo que estamos agora a analisar são motivos secundários, que advêm da forma como as pessoas reagem a este tipo de acções. É como optar por pintar um edifício público de preto em vez de branco. Não está errado em si, mas o preto não é uma cor muito alegre e isso normalmente tem os seus efeitos nas pessoas. Concordas comigo?

Kyrillos — Sim, Sócrates, concordo.

Sócrates — Então o que nos cabe agora saber é que peso têm esses sentimentos e se poderão validar o nacionalismo — visto o nacionalismo ser o desenvolvimento da ideia de que as pessoas do nosso país estão emocionalmente mais próximas de nós do que as outras. Para já, diz-me uma coisa: há algum motivo pelo qual os teus interesses devam contar menos do que os das outras pessoas?

Kyrillos — Não, Sócrates.

Sócrates — E isso aplica-se exclusivamente a ti ou também às outras pessoas?

Kyrillos — Às outras pessoas também — não poderia deixar de o ser.

Sócrates — E diz-me, uma acção é tanto mais justa quanto maior for a satisfação global de interesses que daí resulta?

Kyrillos — Sim, necessariamente.

Sócrates — Bom, vamos agora ver se eu de facto estou a par dessas coisas da proximidade emocional que se diz por aí. Para isso, considera o tal caso do pai e do filho de que falavas. Quando um pai dá algo ao seu filho, fá-lo porque quer aquilo que, aos seus olhos, é o melhor para aquele que é o seu filho. É assim?

Kyrillos — Claro.

Sócrates — Assim, é comum que, além da natural satisfação sentida pelo filho ao ser alvo dessa generosidade, também o pai se sinta satisfeito com isso — de facto, é nisso que consiste a tal proximidade emocional e familiar. Ou seja, traduz-se em não apenas o filho ter interesse em receber algo como o pai ter interesse em o filho ficar satisfeito. Confirmas isso?

Kyrillos — Confirmo, Sócrates.

Sócrates — E, diz-me, há mais alguém cujos interesses estejam a ser beneficiados, de modo a darmos ao caso da proximidade emocional e familiar toda a força que mereça?

Kyrillos — Não me parece.

Sócrates — Muito bem. Vou agora tentar mostrar-te onde é que isto falha. É muito simples: no mundo em que vivemos são extremamente fáceis de encontrar crianças suficientemente necessitadas para que, caso a generosidade do pai se tivesse virado para estas, a satisfação que seria sentida por uma dessas crianças ultrapassaria em muito a satisfação anterior sentida pelo pai juntamente com a sentida pelo seu filho. Não te parece que de facto assim é?5

Kyrillos — De facto, parece.

Sócrates — Além disso, estamos a esquecer-nos de algo que dissemos, e bem: que os nossos interesses não contam mais que os interesses das outras pessoas. É que não é preciso pensar muito para nos apercebermos que essa criança, a mais necessitada, provavelmente também tem um pai que sentirá uma satisfação grande por ver que o seu filho está agora imune a uma epidemia que mata dezenas na sua aldeia. Essa satisfação é, presumivelmente, muito superior à sentida pelo outro pai — uma satisfação que, tal como a outra, consiste naquilo que um pai sente ao ver os interesses do seu filho assegurados. Não é assim?

Kyrillos — Não parece que possa ser de outra forma.

Sócrates — Ou seja, também esse pai tem direito a ter um círculo de pessoas chegadas com as quais, por motivos sentimentais, ele se preocupa mais. Contudo, à medida que nos deslocamos para locais onde a necessidade é maior, os interesses daqueles pelos quais as pessoas se preocupam mais, à semelhança do que se passa com os das outras, tendem a estar cada vez mais ameaçados. Logo, por respeito à proximidade emocional e familiar, talvez devas começar por ajudar esses mesmos. Compreendes?

Kyrillos — Nem por isso, Sócrates.

Sócrates — Vê antes assim: de uma forma mais abstracta, os defensores da proximidade emocional e familiar dizem que é preferível olhar primeiro pelos nossos porque, ao fazê-lo, estamos também a olhar pelos nossos interesses em ver os interesses dos nossos serem assegurados (donde advém uma satisfação psicológica). Contudo, em todo o mundo há uma série de pessoas unidas por sentimentos iguais, tal como nós, e a nós basta-nos optar pelo conjunto que vamos beneficiar. Uma vez que os nossos interesses não contam mais de que os das outras pessoas, não temos legitimidade para escolher o nosso grupo só porque, ao fazê-lo, as pessoas beneficiadas indirectamente somos nós e não outras pessoas. Na verdade, e em jeito de conclusão, por muito grande que seja a satisfação adicional que sentimos quando “cuidamos dos nossos” — uma satisfação que não se verifica quando olhamos por aqueles que estão fora do nosso círculo sentimental da família e amigos — é praticamente sempre possível encontrar casos em que as outras pessoas que pertencem à família ou amigos da pessoa que estamos a ajudar sintam uma satisfação ainda maior que aquela que nós sentíamos antes, quando geríamos os nossos bens de forma menos altruísta. É por isso que é mais justo quando escolhemos agir desse modo. Compreendes agora?

Kyrillos — Sim, penso que sim.

Sócrates — Repara que uso sempre a palavra “satisfação”, mesmo quando comparo desejos consumistas com o assegurar de necessidades básicas. Isto pode parecer absurdo pois estas duas formas de dirigir a acção humana merecem, nas escalas de prioridades reconhecidas pela maioria das pessoas, lugares muito distintos: assegurar necessidades básicas é com certeza mais importante do que oferecer um iPod.

Kyrillos — Estou a ver. E penso que tens razão em tudo o que disseste.

Sócrates — Bom, Kyrillos, já nos alargámos bastante num assunto que, para alguns, é bastante óbvio. Penso que o que vale a pena repetir é, e citando um sábio necessário para o nosso tempo, que “se nós aceitarmos qualquer princípio de imparcialidade, universalidade, igualdade ou seja o que for [nas nossas condutas], não podemos discriminar uma pessoa meramente por esta estar longe de nós”6 ou não ter a nossa nacionalidade. Agora, voltando à questão do comprar ou não comprar, eu penso, e concluo, que não faz sentido optares por comprar um produto nacional — se o encaras como uma forma de ajuda — a comprar o de um país que não é o teu ou que está longe (ou tu estás longe dele), simplesmente por este ser o teu país. Convém, contudo, que tomes o cuidado de saber se ao comprar determinado produto estás a ajudar ou a prejudicar os produtores. Muitas das coisas que se vendem no mercado e vieram dos países mais pobres foram, muito provavelmente, obtidos segundo padrões injustos.7 Por outro lado, produtos que vêm de longe implicam um maior gasto de combustíveis fósseis e uma maior emissão de gases poluentes e de efeito de estufa. Por isso, sabendo já que comprar nacional por si só não tem mais valor, tens de ver — e investigar por ti — para cada caso (vestuário, fruta, sapatilhas, etc.), qual é a compra mais responsável. Conto contigo!8

Ricardo Almeida

Notas

  1. Relembrar que se A → B, então não-B → não-A.
  2. O termo “ricos” é, aqui, utilizado numa perspectiva relativa. Portugal, em comparação com a maioria dos países do Sul, é, de facto, um país bastante rico.
  3. Fazer um donativo a organizações como a UNICEF, que ajudam, principalmente, as nações mais pobres e, ao mesmo tempo, mais longínquas, é, provavelmente, um dos actos mais simples que existe.
  4. O Princípio da Igualdade na Consideração de Interesses é fundamental para se poder perceber o que há de errado com muitos “ismos” (racismo, sexismo, especismo, etc). Sobre este princípio, ver Singer, Peter, Libertação Animal, trad. de Maria de Fátima St. Aubyn, Via Óptima, Porto, 2000, Cap. 1.
  5. Com 100 euros é possível comprar 1 iPod ou 2 jogos de consola ou 2 peças de roupa de marca. Com a mesma quantia é possível comprar tudo o que se segue:
    • 100 tabletes de vitamina A que potenciam o sistema imunitário, ajudando 100 crianças a serem saudáveis;
    • Uma rede mosquiteira que protege uma família do mosquito da malária;
    • Um trem de cozinha para uma família num campo de refugiados;
    • 1 lápis e 1 caderno para 80 crianças;
    • 70 doses de vacina contra o sarampo;
    • 8 kits para teste de diagnóstico rápido do VIH/SIDA;
    • Pastilhas desinfectantes para purificar 900 litros de água num campo de refugiados;
    • (Fontes: World Vision e UNICEF)
  6. De facto, parece evidente que quanto maior é a necessidade daqueles que ajudamos maior é o benefício gerado pelo dinheiro que gastamos com eles.
  7. A referência é a Singer, Peter, “Famine, Affluence and Morality”, Philosophy and Public Affairs, 1972. Ver também, do mesmo autor, Ética Prática, trad. de Álvaro Augusto Fernandes, Gradiva, 2000.
  8. Alguns sites úteis: Infant Feeding Action Coalition, corporganics.org, CorpWatch.
  9. Agradeço à Crítica todas as sugestões que visaram o melhoramento do diálogo
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ISSN 1749-8457