Chega finalmente aos escaparates uma tradução para português europeu, feita directamente do texto grego, da Ética a Nicómaco, de Aristóteles. Texto fundamental do pensamento ocidental, a Ética pode reclamar para si a origem de alguns conceitos nucleares, e essencialmente do modo de os pensar, entender e estruturar, do que hoje entendemos, ou julgamos entender por ética. Sem me demorar em grandes considerações acerca do que podemos considerar hoje o que é a ética, nada melhor do que ir directamente à própria fonte, que agora nos chega vertida em português.
António Caeiro, professor de Filosofia Antiga e Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, realiza também seminários livres de tradução de grego e alemão na mesma faculdade. Foi no entanto através de uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia que lhe foi permitido dedicar-se em exclusivo à tradução da Ética, empresa realizada na Universidade de Albert Ludwig, em Friburgo, com a ajuda fundamental da Biblioteca do Departamento de Filologia Clássica dessa mesma Universidade.
O livro apresenta-nos a tradução feita a partir do texto original integral, tal como está fixado na edição de Baywater, com a respectiva paginação. É de destacar a introdução, onde o tradutor, mais do que se limitar a fazer as apresentações e contextualizações históricas da praxe, tenta enquadrar toda a abrangência e importância do texto e das suas expressões-chave, para que se possa melhor entender a origem e a aplicação do que está em causa na obra de Aristóteles. Esta introdução reveste-se de importância maior pois é onde o tradutor justifica as escolhas de algumas opções menos ortodoxas para fixar em português os terminus technicus mais emblemáticos da Ética. Esta é talvez a questão mais importante desta tradução que agora vem a lume. O tradutor arrisca em fugir a algumas traduções mais óbvias, já fixadas pela tradição anglo-saxónica e latina, para as expressões mais típicas de Aristóteles. Conceitos como phronesis, habitualmente traduzido por “prudência” ou pelo, muito inglês, “practical wisdom”, são substituídos pelo equivalente em português, “sensatez”. Techné é fixado pelo tradutor como “perícia”, em vez dos habituais “arte” ou “técnica”, da tradição latina, escolha talvez mais contestável que a anterior. Ambas as opções, discutíveis por certo, são admitidas, explicadas e devidamente fundamentadas em bastante completas notas de tradução, através de um profundo estudo etimológico da língua grega, numa tentativa de trazer o sentido correcto do que se pretende com as expressões escolhidas pelo próprio Aristóteles.
Exemplo flagrante é como o tradutor introduz a etimologia da palavra que dá o mote à obra. Ethos significa originalmente o lugar, o domicílio, aprofundando mais ainda o sentido da expressão “ética”. Mais do que uma prática ou um hábito deve ser o lugar onde nos sentimos em casa, onde habitamos e para o qual devemos sempre regressar. A ética não é apenas um mero conjunto de conceitos e orientações a seguir, a ética, tal como o étimo indica, deve ser o domicílio onde executamos a nossa vida. Como o construir, é o que Aristóteles nos legou através de uma das suas obras mais importantes.
Esta edição bastante competente inclui uma bibliografia abrangente e um glossário de termos muito completo. As notas de tradução, a justificar com clareza determinada opção ou a enquadrar determinada expressão, são simples de entender, mesmo para quem não perceba o grego, embora muitas vezes algumas citações de Homero ou Píndaro venham apenas em grego antigo e sem tradução, assim como as expressões originais que aparecem a maior parte das vezes grafadas em caracteres gregos. Algo que não mancha o objecto pois trata-se de uma obra virada para estudantes de filosofia que tiveram, pelo menos uma vez, contacto com as expressões gregas e com a sua grafia original. Não será por aí que o grande público será prejudicado.
Em resumo, esta é uma obra fundamental que agora poder ser lida em português.
Humberto Silva