Neste seu livro — o primeiro de uma trilogia, que tem por foco o estatuto moral dos animais não-humanos — Sônia Felipe vem resgatar uma dívida que nós humanos temos para com os outros animais, em razão de termos — ao longo dos séculos — nos comportado frente a eles como se existissem para nos servir e satisfazer nossos interesses e caprichos. Todavia, se quisermos que nosso agir seja eticamente defensável, devemos afastar a crueldade e a indiferença em nosso trato com os animais não-humanos, sobretudo com aqueles dotados de sensibilidade e consciência; é necessário expandir a comunidade moral para além das fronteiras da espécie humana de sorte que ela possa acolher como seus membros os animais não-humanos: esta é uma demanda ética que não pode mais ser adiada.
No volume em apreço, Sônia Felipe nos brinda com uma análise primorosa das teses de Peter Singer concernentes ao estatuto moral dos animais não-humanos. O segundo volume é dedicado à obra de Tom Regan, que se destacou por sua defesa dos direitos morais e políticos dos animais. O terceiro é devotado ao exame do princípio de coerência, endossado tanto por Singer como por Regan. Em sua trilogia, Felipe vai ao encontro de um tema que, embora estudado e discutido nos grandes centros filosóficos europeus e norte-americanos, tem sido lamentavelmente relegado ao descaso pela maioria dos eticistas brasileiros, apesar de há muito clamar por sua inclusão na agenda de estudos e debates filosóficos; refiro-me a todo o conjunto de questões de ordem moral, que dizem respeito ao modo como devemos tratar os animais, se quisermos que nossa conduta tenha legitimidade ética. Duas partes compõem o volume objeto desta resenha: a primeira tem como título “O Alcance da Igual Consideração de Interesses na Ética de Peter Singer em Defesa dos Animais” e está subdividida nos itens “Tradição e Especismo nas Filosofias Morais Antigas” e “Crítica ao Especismo da Filosofia Moderna”. Não se trata obviamente da apresentação de um simples resumo das teses de Singer. Sua exposição foi enriquecida com a leitura de diversos autores contemporâneos de Singer, tais como A. Linzey, T. Regan e R.D. Ryder, como também daqueles que os antecederam na luta em favor da inserção dos animais na esfera da moralidade, dentre os quais merecem especial realce Humphrey Primatt, J. Bentham e Henry Salt. A segunda parte é intitulada “Limites da Teoria Crítica de Singer em Defesa dos Animais”; ela contém um exame da recepção de Singer por diversos de seus estudiosos e críticos, e termina com uma breve conclusão.
Cabe a este livro, de saída, um mérito inegável, que consiste em seu pioneirismo; até onde sei, inexiste no Brasil um livro de filosofia que aborda a questão do estatuto moral dos animais não-humanos. Sônia Felipe rompe o silêncio acerca de uma temática que de tão séria não pode continuar sendo negligenciada por aqueles que se dedicam à filosofia, em especial à ética.
Apoiando-se em diversos textos de Singer, Regan e Linzey, Felipe nos apresenta os fundamentos religiosos, filosóficos e ideológicos do especismo, que caracteriza a civilização ocidental. O termo “especismo”, como nos esclarece a autora, foi cunhado por R. D. Ryder para designar o comportamento discriminatório que os seres humanos adotam frente aos indivíduos de outras espécies, consideradas inferiores, como se eles existissem para serem espoliados com vistas a atender aos interesses e necessidades dos humanos. A fim de trazer à luz o especismo, recorrente em todo o pensamento ocidental, a autora passa em revista tradições como o judaísmo, a filosofia grega, o cristianismo, o pensamento político-romano, o mecanicismo cartesiano e o antropomorfismo, característico da filosofia moderna. A despeito de o especismo ter estado fortemente presente nessas tradições, sempre houve algumas poucas, porém significativas, vozes dissonantes, adequadamente pontuadas. O curioso é que, em muitos casos, como aprendemos com a autora, aqueles que defenderam uma posição mais amena frente aos animais, não o fizeram em atenção aos próprios animais, mas por admitirem, por exemplo, que a crueldade seria indigna do ser humano, o que significa que, a rigor, não lograram romper o esquema de pensamento especista. Todavia, houve também aqueles que foram capazes de desenvolver uma consideração especial para com os animais, como é o caso, por exemplo, de Leonardo da Vinci e Giordano Bruno, na renascença, bem como de Montaigne, Hume e Rousseau na filosofia moderna. Outro nome assinalado por Felipe é o de Humphrey Primatt, para quem dor é sempre dor e esta, quando injustamente infligida a outro ser, não passa de pura exibição de poder, reveladora de crueldade e injustiça por parte do agente. Felipe menciona também a contribuição de Linzey, uma das vozes dissidentes mais importantes no seio da igreja católica e autor de uma teologia animal que defende a inclusão de seres não-humanos no âmbito da justiça.
Como observa a autora, Singer constrói sua teoria ética animal a partir de uma crítica filosófica contundente à tradição especista, propugnando pelo ideal de igualdade e pela exigência de coerência. Seguindo a trilha aberta por Bentham, Singer busca ampliar a esfera da moralidade para que ela possa abrigar também os animais não-humanos. Em nome da igualdade elege a sensibilidade como parâmetro de moralidade ; a razão e a linguagem lhe parecem inadequados como parâmetros para se delimitar a esfera da comunidade moral, posto que tal critério excluiria da esfera da moralidade até mesmo boa parte dos seres humanos, como bebês, crianças, adolescentes, senis, doentes graves, etc. Como corretamente pontuado por Felipe, Singer faz depender a outorga de estatuto moral a um ser da capacidade deste para sentir dor e prazer e ter, portanto, interesses. Seu critério, por conseguinte, expande a comunidade moral, a qual passa a integrar todas as espécies portadoras de um sistema nervoso central.
Felipe considera a crítica de Singer à tradição religiosa, filosófica, política e econômica que dá sustentação ao especismo um dos pontos fortes da teoria ética singeriana e isso por duas razões: 1) Pelo fato de ele conduzir sua crítica em nome e em defesa da expansão do princípio de igualdade na consideração dos interesses. A igualdade se aplica a seres portadores de interesses, ou seja: a pessoas. Para Singer o predicado “pessoa” não se restringe aos humanos. Pessoa é o indivíduo consciente de si no tempo e que demonstra uma preferência pela continuação de sua existência em condições favoráveis à expansão de seu próprio ser. 2) E por sua exigência de coerência. Se o que importa é a capacidade de sofrer, e se não é moralmente lícito que se inflija sofrimento aos seres humanos, nem mesmo àqueles deficientes nos quais o raciocínio e a linguagem não chegam a se manifestar, segue-se que, por uma questão de coerência, não se pode infligir sofrimento aos animais.
É importante notar, como lembra Felipe, que o princípio básico da igualdade não requer tratamento igual, tampouco a concessão de direitos iguais. Requer, porém, igual consideração. Consideração igual para seres diferentes pode significar tratamento diferente como também direitos diferentes. Significa que nenhum indivíduo tem seus direitos assegurados às custas do sacrifício de interesses ou de preferências semelhantes de outros indivíduos. Singer reivindica que o princípio de igual consideração dos interesses seja alargado a todos os seres capazes de sentir e de sofrer, sem distinção de raça, cor, sexo, ou espécie.
De acordo com as éticas utilitaristas temos deveres de consideração moral para com todos os seres que têm interesses, vale dizer, que são capazes de sofrer. Outro aspecto muitas vezes gerador de mal-entendidos nos leitores de Singer — e que é devidamente esclarecido por Felipe —, consiste em que longe de visar rebaixar o estatuto dos seres humanos, Singer pretende elevar o dos animais. Admite que aquele que possui autoconsciência pode ter uma vida com valor mais elevado, o que todavia não lhe outorga direitos absolutos sobre a vida e a morte de outros. Como ressalta acertadamente a autora, a única situação na qual Singer admite que tirar a vida de um indivíduo possa ser moralmente justificável é aquela em que o teste realizado em um indivíduo sirva de fato para salvar a vida de milhares de outros indivíduos. Apenas experimentos claramente relevantes são justificáveis. E a relevância de uma pesquisa feita com animais é definida pelo objetivo exclusivo de minimização do sofrimento de humanos e não-humanos, tese que encontra respaldo no utilitarismo preferencial. Esta versão do utilitarismo endossada por Singer defende a maximização das preferências dos sujeitos. É a preferência de um ser por um determinado estado (por exemplo, manter-se vivo ou preferir a morte) que define se é ou não errado tirar-lhe a vida. Matar um animal que deseja continuar vivendo pode ser, do ponto de vista do utilitarismo de preferências, mais grave do que matar a um indivíduo que pede a morte.
Felipe nos alerta que, ao discutir a questão do direito à vida, Singer indaga se existe ou não algum fundamento para atribuí-lo a pessoas. Só uma pessoa pode ter direito à vida, segundo Singer; todavia, do ponto de vista ético, ele considera mais profícuo discutir a questão em termos de deveres e não de direitos. A questão crucial é saber se temos ou não algum dever em relação aos seres que não são pessoas. Ou se há um dever de se respeitar o interesse que uma pessoa possa ter em que um ser que não é uma pessoa não seja maltratado ou morto. Vale ressaltar, como enfatiza Felipe, que, diferentemente de Tom Regan e de Andrew Linzey, Singer não apóia sua defesa dos animais na categoria de direitos, preferindo centrar sua ética na categoria de dever. Com acuidade nos adverte a autora que — contrariamente ao que muitos pensam — de sua tese não se segue que ele defenda ou tolere a morte de todos os seres não portadores do direito à vida. Mesmo recusando fundar sua ética em defesa dos animais na categoria de direitos, Singer julga poder defender com intransigência que não temos o direito de maltratar ou matar animais, sem que tenhamos uma boa razão para tal. Trata-se obviamente de uma questão polêmica, a de saber se é conveniente ou não se atribuir direitos aos animais. A recusa de Singer em postular direitos não deixa de estar em plena consonância com seu utilitarismo. Todavia, Felipe parece concordar com Regan que imputa a Singer o erro de declarar que os seres humanos têm obrigações para com os animais e, ao mesmo tempo, não reconhecer que estes possuem direitos. Com efeito, como se pode obrigar um ser racional a fazer algo que conflita com seus interesses particulares se não for pelo reconhecimento de direitos que ponham freios à persecução do interesse próprio? Este assunto com certeza será abordado com mais detalhe pela autora no segundo livro de sua trilogia.
Questões acerca do valor da vida costumam criar dificuldades para um utilitarismo. A vertente preferencialista do utilitarismo permite todavia a Singer distinguir o valor da vida de um ser dotado de consciência, do valor da vida de um ser dotado também de autoconsciência. Singer não reconhece que qualquer vida, quaisquer que sejam suas condições, tenha sempre o mesmo valor. A de pessoas tem mais valor do que a de seres que não são pessoas. Contudo, dado que não dispomos de critérios refinados para concluirmos que determinados seres são incapazes de se tornar pessoas, devemos conceder-lhes o benefício da dúvida — o que significa tratar a todos como se fossem pessoas. Ademais, existem razões indiretas para não se matar animais que sejam apenas sencientes mas não autoconscientes: o sofrimento imposto a eles no momento da morte e aos que o cercam. Por conseguinte, a forma mais segura de se comportar dentro das fronteiras da ética consiste em não matar qualquer tipo de animal para se alimentar ou fabricar acessórios.
Na segunda parte de seu livro, Felipe se debruça sobre os limites da teoria de Singer, procurando ir ao encontro dos argumentos de diversos de seus estudiosos e críticos. Posiciona-se frente às críticas com todo o equilíbrio e a isenção, que se exigem de uma pesquisadora competente, e que têm caracterizado sua atividade intelectual e acadêmica. Assim, ela aborda várias das questões mais relevantes que são suscitadas pela construção ética de Peter Singer, dentre outras o seu não-cognitivismo, o papel atribuído à razão e à emoção na ética, seu utilitarismo igualitário, os diversos questionamentos levantados por Tom Regan.
Trata-se de um livro de leitura indispensável para professores de filosofia, sobretudo aqueles que se dedicam ao ensino da ética. Por se tratar de uma obra cujos argumentos são expostos com muita clareza, sua leitura será proveitosa também para alunos de filosofia.
Maria Cecília Maringoni de Carvalho