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Crítica
30 de Setembro de 2007   Ética

Poderia Quine ser um cognitivista moral?

Rafael Martins1

1. Introdução

Quine é freqüentemente citado pelo seu compromisso ontológico e pela defesa de uma epistemologia naturalizada. Apesar disso, sua visão sobre ética não satisfaz alguns de seus críticos tais como Flanagan (1982) e Morton White (1998). Essas críticas devem-se ao fato de que sua perspectiva naturalista de epistemologia comum não o levou a uma defesa cognitivista dos valores morais. Em On the nature of moral values (1981), Quine expressa claramente uma posição emotivista acerca do conhecimento moral. Mas por que sua teoria acerca da realidade extralingüística dos objetos e propriedades o impediu de assumir uma posição cognitivista em filosofia moral?

On the nature of moral values tem como objetivo avaliar a justificação dos valores morais. Para isso Quine toma como base argumentativa a comparação entre as possíveis uniformidades encontradas nos valores estéticos, nas regras da linguagem e nas sentenças observacionais da ciência. Segundo este filósofo, as diferentes culturas no mundo parecem exibir uma multiplicidade de expressões estéticas e lingüísticas muito maior do que a relatividade dos valores morais em que estas culturas possam se fundamentar. Contudo, seu principal argumento afirma que comparada com a ciência, a ética é metodologicamente mais instável.

Minha análise pretende mostrar que o emotivismo de Quine, ao contrário do que dizem seus críticos, não é incoerente com o seu sistema. Entretanto, esta coerência não o isenta de manter uma defesa equivocada, ainda que típica da sua época,2 acerca da justificação dos valores morais. Contrariamente ao que pensava Quine, um sistema moral exige que pelo menos algumas das suas sentenças refiram-se a propriedades no mundo externo. Por isso, defenderei que uma teoria coerentista de justificação das considerações morais não nos leva necessariamente ao emotivismo.

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2. Emotivismo

Em geral, os emotivistas negam que juízos morais veiculem conhecimento, pois defendem que esses juízos são expressões de emoções, desejos ou prescrições. O emotivismo típico do século XX fundamentou-se em larga escala no sistema crença-desejo de Hume. Este sistema é definido no Tratado da seguinte maneira: “a natureza humana compõe-se de duas partes necessárias para todas as suas ações, essas partes são as afeições e o entendimento. Os movimentos cegos daquelas, sem a direção deste último, tornam o homem incapaz para a sociedade. Logo, podemos considerar separadamente as operações destas duas partes que compõem o espírito” (2001, p. 569).

Sobre a função de cada uma dessas partes, Hume explica que “a razão somente pode influenciar nossa conduta de dois modos: quando desperta uma paixão, informando-nos da existência de uma coisa que é o objeto próprio dessa paixão ou quando descobre a conexão das causas e dos efeitos de modo a proporcionar-nos um meio de exercitar qualquer paixão” (2001, p. 531). Entretanto, a razão jamais se opõe à paixão, seja para mudar seu curso, seja para estabelecer regras morais. Ela tem apenas um escasso papel funcional de reconhecimento de objetos, formação de hábito e raciocínios meio-fim.

Assim como Hume, Quine defende o que chama de “natureza bipartida da motivação” onde ocorrem tanto 1) a crença como 2) a avaliação (1981, p. 55):

  1. A crença consiste na capacidade inata de reconhecimento de similaridades a partir de uma ciência indutiva da percepção dos valores. Segundo Quine, este particular tipo de indução consiste, primitivamente, na expectativa de que episódios similares terão conseqüências similares de acordo com um padrão subjetivo de similaridade.
  2. Na contraparte da motivação, a avaliação moral nasce nos gostos e aversões inatas do sujeito.

Portanto, para Quine essa relação dual entre crença e avaliação, sempre aperfeiçoada pelo hábito, é a responsável por tornar o sujeito capaz de deliberar e agir.

Na tentativa de evitar interpretações relativistas, Quine, assim como Hume,3 argumenta que a natureza humana, invariável de cultura para cultura, torna o homem propenso a valorizar determinadas ações e objetos em função de certos prazeres e aversões que ocorrem a todos os homens. Mas, não ingenuamente, ambos admitem que os conflitos morais ocorram por falta de aprendizado moral e por falta das condições pragmáticas que favoreçam a prática da deliberação moral pública e livre.

3. Escala de uniformidades

Tendo em vista o levantamento de possíveis uniformidades recorrentes, Quine procurou estabelecer comparações entre a moralidade e três outros campos da investigação filosófica: a estética, a linguagem, e a prática científica. Primeiramente, ao comparar os valores morais com os valores estéticos, Quine conclui que a moralidade tende, em virtude de seu caráter social, a ser mais uniforme do que a estética. Segundo ele a valoração moral ocorre em todos os indivíduos, ainda que não se origine de idéias inatas ou predisposições biológicas. Tal valoração é verificada na medida em que a constituição da sociedade depende necessariamente dos valores morais, mas apenas contingentemente dos valores estéticos. Por esse motivo, para Quine, a sociedade pode viver sem arte, mas não sem ética (1981, §1–2, p. 61).

Em seguida, numa comparação entre a linguagem e a moralidade Quine afirma que ambas foram criadas com funções objetivas. Nesse sentido, a linguagem, além de ser um dos principais fatores que capacita o agente a influenciar decisões, tem como principal mérito carregar informação factual. Somando-se a isso, “a moralidade de uma sociedade coordena as escalas de valores dos indivíduos de modo a resolver as incompatibilidades e promover a satisfação geral” (1981, §3, p.61).

Dessa forma, Quine nos faz perceber que na linguagem há uma uniformidade prática para facilitar a comunicação e na ética há uma uniformidade de valores morais para sustentar a convivência. Além disso, tanto na linguagem como na ética a uniformidade é realizada pela instrução onde cada geração ensina à próxima. Entretanto, lembra Quine, a linguagem tende a uma grande uniformidade num mesmo grupo social, mas a uma diversidade caótica quando observada em grupos diferentes (1981, p.62).

Segundo o filósofo, espera-se que os valores morais variem em menor grau de uma sociedade para outra, ainda que isoladas. Mesmo que algumas proibições e concessões de algumas sociedades choquem a nossa imaginação, podemos esperar um núcleo valorativo comum já que os problemas mais básicos dos seres humanos estendem-se a necessidades naturais. Portanto, certas regras da moralidade originam-se de algo que toda a humanidade possui em comum.

Entretanto, para Quine as regras da linguagem não seguem a mesma particularidade. A ética parece então ser mais estável do que a linguagem. Nesse sentido, variações observáveis na moralidade de diferentes sociedades motivam Quine a fazer uma terceira comparação. Ele acredita que a variação entre as visões científicas das diferentes culturas é menor do que entre seus sistemas morais. Quine quer dizer que para os limites da ciência temos sempre a restrição imposta pelo fato recalcitrante ou pelas falhas da previsão. Mas para demarcar os limites da moralidade temos apenas nossos vagos valores morais (opinião que discordarei no final deste artigo) (1981, p.65).

Quine afirma que as teorias científicas, úteis ou não, são sustentadas pelo controle empírico ainda que parcial e errante. Ele chama de “amarga ironia” o fato de que um problema tão vital como a diferença entre os valores morais não tenha comparação com tal objetividade encontrada na ciência (1981, p. 63). Mesmo assim, desde o tempo em que os heróis da mitologia grega eram o exemplo moral a ser seguido, existem esforços no sentido de uma justificação desses valores dentro de uma estrutura que possa se passar por uma ciência factual. Não obstante, para Quine, existe uma mistura legítima entre ética e ciência, que de alguma forma alivia a situação desagradável em que se encontram tais esforços pela justificação da moralidade. Pois qualquer um que se veja envolvido com questões morais se apóia em conexões causais.

Segundo Quine, a variedade de axiomas morais pode ser minimizada pela redução de alguns valores a outros (1981, p. 64). A redução seria, nesse caso, eficiente na solução de conflitos morais, não apenas subjetivamente, mas também no âmbito objetivo. Numa disputa moral, podemos recorrer a uma justificativa instrumental através da redução de algum fim ulterior que todas as partes dissidentes valorizem. Qualquer uma delas pode, então, contestar ou ser persuadida pela redução de forma que o debate passe a depender de uma questão científica. Esta maneira nos permite resolver desacordos morais reduzindo a multiplicidade de valores em questão a um pequeno conjunto de valores seminais que viabilize um acordo entre as partes. Mas, perguntamos a Quine, como esses valores seminais podem garantir alguma concordância?

Regularmente fundamentado em pressupostos emotivistas, Quine argumenta que “deve haver fins últimos em si mesmos irredutíveis e injustificáveis” que uma vez identificados, tendem a ser amplamente aceitos (1981, p.64). Apenas dessa forma seria possível que os valores morais representassem alguma uniformidade. Por isso podemos concordar com Quine em relação à recusa do relativismo moral. Realmente os problemas mais básicos que as sociedades e seus indivíduos enfrentam na busca pela sobrevivência e qualidade de vida parecem-nos muito semelhantes. Entretanto, não podemos aceitar sua afirmação de que o comportamento moral se baseie em valores irredutíveis e injustificáveis.

Quine, em palavras pouco precisas, diz que “podemos esperar uma considerável concordância em relação ao componente imposto socialmente quando reduzido às suas bases mais fundamentais” (1981, p. 64). Atualmente, esta afirmação só faz sentido se considerarmos que estas bases fundamentais sejam de caráter biológico.

Ao concluir suas comparações, Quine propõe uma visão anti-realista que nos levará à última parte deste artigo. Ele diz que “mesmo em casos extremos onde o desacordo se estende irredutivelmente a fins morais últimos, ainda podemos chamar o bom de bom e o mal de mal e, como Stevenson, esperar que esses adjetivos produzam sua força emotiva” (1981, p. 65).

4. O que faz uma teoria ética ser coerente e por que Quine não assumiu o cognitivismo

Frente à uniformidade funcional da ciência, Quine acredita que é mais fácil encontrarmos desacordos morais dentro de núcleos familiares e inclusive dentro de nós mesmos. Tendo em vista esse fato, só nos resta lamentar a debilidade metodológica da ética em comparação com a ciência. Quine afirma que a base empírica da teoria científica está no evento previsível e observável, assim como o código moral está na observável ação moral. Entretanto, ele argumenta que enquanto podemos testar uma previsão científica contra o curso independente da natureza observável, julgamos a moralidade de uma ação exclusivamente através dos nossos padrões morais subjetivos. Portanto a ciência em grande parte determina-se por uma teoria da verdade por correspondência, enquanto a ética recai sob uma teoria coerentista (1981, p.63).

A teoria coerentista de Quine propõe o abandono da distinção entre proposições analíticas e sintéticas. Para ele não há separação nítida entre a sentença sobre o que se observa e todas as outras informações, sejam teóricas ou observacionais que auxiliam na compreensão da realidade observada. A justificação coerentista de uma proposição pode ser, então, explicada pela função que esta proposição exerce ou pela relação lógica, probabilística ou causal que ela assume na totalidade de um sistema de crenças. Segundo a tese coerentista de Quine:

A sentença observacional é a pedra angular da semântica. Pois ela é fundamental para a aprendizagem do significado. Além disso, é nelas que o significado tem maior firmeza. Mas as sentenças que nas teorias se situam mais acima não têm conseqüências empíricas que pudessem ser ditas próprias a elas; elas só se defrontam com o tribunal da evidência sensorial em agregados mais ou menos amplos. A sentença observacional, situada na periferia sensorial do corpo científico, é o agregado verificável mínimo (1980c, p. 168).

Daqui em diante veremos como esta tese coerentista se aplica a uma teoria ética.

A verdade num sistema moral coerentista se apresenta da seguinte forma:

V: Uma sentença normativa x é verdadeira num sistema Z sse x é um membro de Z e Z é coerente. A coerência de Z = x enquanto membro de um sistema Y submetido ao método da mutilação mínima.

Segundo a teoria coerentista proposta acima, temos razão para aceitar uma sentença moral x como verdadeira se ela for coerente com as crenças que estiverem no centro do sistema Z. Este sistema foi gerado quando a deliberação moral exigiu um teste contrafactual das crenças que constituíam Y para garantir sua objetividade, logo, através do método da mutilação mínima temos Z. Para Quine, em ética esse teste jamais seria possível, pois a moralidade lamenta a irreparável falta de pontos de verificação empírica, segundo ele, “conforto dos cientistas”.

Mas no que consiste um sistema moral? Quais sentenças fazem parte dele?

Temos então o conteúdo do sistema Z:

  1. Crenças morais (ex: Escravizar seres humanos é errado).
  2. Sentenças não-normativas (ex: Em vários lugares do mundo pessoas são escravizadas. Pessoas escravizadas sofrem fisicamente.)
  3. Sentença normativa (ex: Os escravocratas agem erradamente)

Agora estamos em condições de definir o Princípio Coerentista:

C: Um sistema normativo Z é coerente sse, para todas as sentenças normativas x (do tipo 3), se x é um membro de Z, x é coerente com todos os outros membros (1 e 2) de Z e suas implicações normativas. Onde x é derivável por dedução ou por generalização com todas as outras sentenças de Z disponíveis como premissas.

A articulação de V e C descreve a imagem que poderia ser adotada por Quine se ele defendesse o cognitivismo moral, onde x é extraída por dedução de 1 ou por generalização de 2 (apesar da famosa lei de Hume, que não será tratada aqui). Penso que Quine assumiu uma posição emotivista, pois não acreditou que em última instância as crenças mais periféricas de um sistema moral pudessem referir algo empírico que não fosse tão somente nossos próprios sentimentos. Se assim fosse, o sistema moral que assumimos em nossas deliberações não seria arbitrário já que seria determinado pelas crenças mais resistentes à revisão imposta pela experiência. (Ex: alguém que acredita que a escravidão é uma ação correta teria sua crença revisada pelas descobertas da ciência. Essas descobertas fariam esse alguém mudar de opinião e passar a acreditar que todos os homens são suficientemente iguais, fato que justifica a escravidão como ação reprovável.)

Em função do seu caráter epistêmico internista, toda a tradição coerentista tornou-se vítima do problema do regresso ao infinito. Para evitar este problema, responsável por ter levado Quine a assumir o emotivismo, precisamos nos perguntar se no final da cadeia de sentenças há alguma circularidade. Será que as sentenças ou crenças mais periféricas de um sistema moral Y podem passar tranquilamente pelo método da mutilação mínima e assim gerar Z? Com a intenção de excluir subjetivismos relativistas ou algum objetivismo idealista, sistemas morais exigem que algumas das suas sentenças refiram algo no mundo externo. Apesar de Quine concordar com isso, defendeu que este algo não existe. Minha proposta resume-se em discordar desta última posição.

Teorias realistas mais recentes, principalmente da década de 80 e 90,4 acerca da metafísica e epistemologia moral atestam que no mundo empírico, ao contrário do que pensava Quine, encontramos o material necessário para nossas conclusões morais. E nesse caso é a ele que algumas das sentenças morais do sistema se referem, sejam centrais ou periféricas. Dessa forma, a ética já não nos parece mais tão instável em relação à ciência. Entretanto a solução proposta parece nos comprometer com alguma forma híbrida de teoria epistemológica coerentista e teoria metafísica da verdade como correspondência. Isto pode parecer arriscado à primeira vista, mas qualquer teoria comprometida com a realidade busca as condições para que alguma coisa seja verdadeira.

Com a pretensão de evitar que a teoria da verdade aqui subjacente sofra imposições de ordem meramente semântica procuramos empregar uma análise substancial dos sistemas morais. A fusão entre teorias de caráter metafísico e epistemológico é natural, já que a justificação do conhecimento depende de pressupostos metafísicos. O fato de a plausibilidade de uma teoria epistemológica se dar pelo grau de coerência das relações entre as crenças que a compõem, não a torna independente da realidade. Por isso precisamos garantir que em última instância teorias morais sejam revisadas pela observação empírica. Se a coerência por si só não garante a verdade de uma teoria, então somos obrigados a testá-la contra os fatos.

Por isso, o hibridismo aqui proposto não implica risco algum, já que os problemas acerca da verdade estão intimamente ligados a questões acerca de saber se os fatos podem ser conhecidos e se podem existir independentemente de nossa capacidade para descobri-los.

Apesar dessas dificuldades, o propósito deste artigo foi mostrar que o emotivismo de Quine não é tão contraditório em relação à sua obra como parecia a princípio. Claro que sua epistemologia naturalizada e coerentista lhe dava todas as condições teóricas para assumir alguma forma de cognitivismo moral, mas ao não encontrar o evento com o qual confrontaria as sentenças normativas, preferiu seguir a corrente que imperou durante o século XX. Contemporaneamente existem vários trabalhos em realismo moral que procuram encaixar os fatos morais no mundo que intuímos. Não obstante, a função que esses fatos exercem no sistema de crenças morais de um indivíduo é alvo de intensos debates.

Rafael Martins

Referências Bibliográficas

Notas

  1. Texto produzido como resultado parcial do programa de iniciação científica PIBIC/CNPq 2006-2007.
  2. Cf. Ayer (1936), Stevenson (1944) e Hare (1996, 2003).
  3. Mesmo famoso por tentar nos convencer de que a razão é somente escrava das paixões (2001, p. 476), aprendemos com o próprio Hume que ambas colaboram em quase todas as decisões e conclusões morais. Segundo o filósofo empirista, “é provável que a sentença final que julga o caráter e as ações das pessoas como amáveis ou odiosos se apóie em algum sentido interno ou sensação que a natureza tornou universal na espécie humana” (2004, p. 229). Hume, apesar de afirmar a importância da razão para as distinções e generalizações de casos particulares, não elimina seu caráter subserviente aos afetos no processo de motivação moral.
  4. Cf. The Southern Journal of Philosophy, v. 24, 1986.
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ISSN 1749-8457