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23 de Agosto de 2004   Ética

A resposta de Confúcio ao problema dos direitos humanos

André Bueno

À primeira vista, pode parecer anacrônico tentar responder a um problema dos direitos humanos, que consideramos “moderno”, com a visão de um autor “clássico” como Confúcio. Como veremos, existe uma série de motivos para acreditarmos que o problema dos direitos humanos seja mais antigo do que pensamos, enquanto que uma leitura moderna do confucionismo abre-nos perspectivas inauditas sobre a sabedoria do mestre, se estivermos dispostos a lê-lo despidos de um certo número de preconceitos históricos e culturais.

Há quase 2600 anos, o mestre chinês já colocava em questão o paradigma da universalidade dos saberes e da diversidade dos seres, tópicos fundamentais para elaboração de sistemas éticos. Poderia, então, estar capacitado a dar uma resposta ao problema dos direitos humanos, tal como entendemos hoje, no Ocidente?

A universalidade dos direitos humanos

Uma das primeiras questões que podemos colocar, para iniciar este debate, é se os direitos humanos representam realmente uma proposta universal. Se nos basearmos apenas em seu intuito primeiro, não seria difícil afirmar que sim, já que o código surgiu com esse objetivo. O problema desta premissa, porém, é se o conjunto dos direitos humanos tem, ou não, a possibilidade de serem aceitos como universais.

A análise deste problema apresenta o quanto, realmente, estamos distantes de compreender a realidade que cerca a composição do discurso. Em primeiro lugar, aceitamos as idéias dos direitos humanos como algo imanente, consensual e deontológico, uma formulação perfeita sobre os direitos de liberdade do ser humano. Assim sendo, nosso primeiro engano consiste em admitir, naturalmente, que toda e qualquer civilização que aparentemente não compreenda ou viole os direitos humanos é, por conseguinte, composta por grupos de gente “atrasada” ou culturalmente ignorante, desprovida de um senso de “humanidade” (Panikkar, 1983:5-29).

Sem perceber, manifestamos aí a velha questão do preconceito cultural eurocentrista, que nos induz a não admitir qualquer coisa fora do padrão ocidental como cultural — mesmo que isso seja resultado de nossa má leitura sobre a mentalidade do outro, tido quase sempre como “diferente e exótico” (Said, 1996).

Por conseguinte, ficamos chocados com imagens de violência vindas da África ou Ásia, acreditando que estes continentes são compostos de gente estranha e pouco civilizada. O mesmo pode ser dito a respeito de hábitos cotidianos e religiosos, tidos como estranhos e desprovidos de uma razão teológica. Se isso não fosse somente uma mistura de estereótipos e preconceitos da pior espécie, o mínimo que um leitor ocidental mais atento poderia fazer, antes de realizar qualquer julgamento, é se perguntar se sua sociedade também não tem problemas, hábitos ou costumes que ele próprio não compreende; segundo, se essa estranheza que o Ocidente sente pelo Oriente não seria recíproca, e sem um diálogo amplo e aberto o outro sempre parecerá um desconhecido; por fim, o referencial de correto que este leitor tem é apenas o de sua cultura — o que, a princípio, não o torna em nada um observador capacitado para analisar outros sistemas culturais.1

Em que circunstâncias, portanto, podemos trabalhar esta questão em relação às civilizações orientais, tão “afastadas” culturalmente de nós? Aliás, quando começamos a nos preocupar com a realidade moral e material de outras sociedades diferentes?

Historicamente, a idéia dos direitos humanos surgiu como uma proposta para administrar o mundo segundo um critério liberal e individualista, proporcionando-lhe equilíbrio social e um respeito maior pela condição humana. Ela é resultante de dois momentos marcantes no Ocidente: a Revolução Francesa e a proclamação da ONU em 1948 (Panikkar, ibidem).

Não se pode negar o caráter inovador e abrangente da revolução francesa, que buscava gerar um mundo mais equânime tendo como pano de fundo o lema “liberdade, igualdade e fraternidade” e... a morte da nobreza! Um contexto de crítica ética e moral parece exigir, para sua reformulação, algum grave conflito social (no caso da China isso não foi diferente), mas o ponto importante no qual devemos nos concentrar é a formulação de uma ampla proposta cívica, que incluía os direitos e os deveres dos indivíduos — em que surgiria, pela primeira vez, o termo “direitos do homem”. Este código francês serviria como base para a proclamação feita pela ONU em 1948 na chamada Declaração Universal dos Direitos do Homem. Assim sendo, se consideramos a possibilidade do código dos direitos humanos ser realmente universal — tanto em conceito como em aplicação — devemos nos perguntar, portanto, se os franceses da época conseguiram inferir uma idéia que pudesse responder diretamente aos problemas provenientes de todos os seres humanos, culturas e sociedades. Acidentalmente, pois, a proclamação dos direitos do homem já nasce numa hierarquia cultural, partindo do pressuposto de que nenhuma outra civilização teve uma idéia como esta antes; de que esta proposta tem um alcance nunca antes vislumbrado (o universalismo); e, de que aqueles que não podem aplicá-la ou entendê-la (pois ela é universal) são culturalmente “inaptos” ou “inferiores”.

Admitindo isso, seríamos forçados a concluir que este momento foi único na História, pois ocorreu a formulação de uma idéia capaz de extrapolar qualquer barreira cultural, acessível a todos os grupos humanos. Mas somos novamente obrigados a perguntar: se os direitos humanos são universais, e por conseqüência, resultam da apreciação profunda da identidade do ser humano, então, por que nem todas as culturas conseguem compreendê-lo de forma simples? Aliás, se a identidade do ser humano é o ponto de partida dos direitos humanos, esta idéia não poderia ter sido alcançada por outras culturas? E se o foi, por que então essas culturas não propuseram sistemas que, aparentemente, fossem universalistas?

Essa é uma questão complicada, que se remete ao problema da definição do ser humano em si. O código dos direitos humanos estabelece um paradoxo flagrante: admitindo-o, estaremos aceitando também que existe uma hierarquia de culturas, e conseqüentemente, uma diferença entre os seres humanos. Pior; damos sustento à idéia de que existem grupos que precisam ser “educados” culturalmente (ou seja, imposição de valores) e ainda assim, nada garante que os mesmos assimilem os conceitos de igualdade que o Ocidente os propõe. Parece absurdo, mas neste ponto o código dos direitos humanos parece praticamente ratificar a diferença, promovendo a necessidade da civilização moderna de impor suas ideologias.

Por outro lado, se esta mesma proposta admite que os seres humanos são iguais entre si, logo, todas as sociedades do mundo — como foi dito anteriormente — poderiam entender as propostas de liberdade e igualdade contidas nos direitos humanos. Aqui podemos precisar um dos primeiros pontos importantes para nossa discussão:parece ser universal a idéia de que precisamos garantir algum tipo de liberdade individual e de igualdade social, moral e ética. A forma pelo qual estes conceitos são interpretados e aplicados culturalmente é que parece variar, o que finalmente nos mostra que os seres humanos têm alguma espécie de identidade entre si: a capacidade crítica em relação à sociedade e a si próprios.

Mas sabemos (ou mesmo, intuímos) que a identidade entre os seres humanos vai bem além disso; eles podem concluir as mesmas coisas a respeito de sua relação com a natureza universal, e, por conseguinte, inferir códigos semelhantes de ética e conduta, mesmo que em épocas diferentes na história de cada um. A abrangência destes códigos parece variar segundo a capacidade que as civilizações possuem de enxergar o mundo que está além de suas próprias fronteiras, criando mecanismos pelos quais elas regulam não apenas as suas sociedades, mas a forma pela qual elas interagem com outras culturas.

Admitindo que outras civilizações podem, portanto, gerar códigos semelhantes ao dos direitos humanos — posto que seria inerente a busca do ser pelas noções de liberdade e equanimidade — devemos investigar em que outros contextos espaciais e temporais isso poderia ter ocorrido, e em que medida estas propostas alcançaram alguma espécie de repercussão.

Neste ponto se torna fundamental a análise das civilizações asiáticas, cujas tradições históricas e filosóficas são bastante diferentes das nossas (De Bary, 2000). A China Antiga, nosso objeto de estudo neste artigo, produziu uma grande quantidade de teorias éticas e políticas, quase todas baseadas numa concepção universalista do ser humano — e como poderíamos acreditar que os antigos sábios, como veremos adiante, não estavam preocupados em responder a esta questão? Aqui, nos deslocamos do problema temporal e contextual — que inadvertidamente estabelece as hierarquias culturais e ideológicas — e nos colocamos no plano conceitual, onde as idéias surgem quando os problemas aparecem: ou, como diria o grande mestre Confúcio, “sábio é aquele que, estudando o antigo, nos revela o novo” (Lunyu, 2).

O problema da universalidade e da individualidade no antigo pensar chinês

O Ocidente conhece muito pouco do que a Ásia produziu em termos de conceituação teórica, cultura, saber, etc. Este desconhecimento não se limita ao reduzido número de escolas filosóficas a que tivemos acesso, mas também ao conhecimento superficial que delas temos (Chan, 1978:164-5).

Isso nos remete a possibilidade de os orientais já terem concluído pontos semelhantes aos que fundamentam o código dos direitos humanos bem antes dos europeus — e mesmo assim, terminaram por elaborar sistemas completamente diferentes daqueles que conhecemos.

O caso chinês, em toda sua singularidade, responde bem a esta demanda. Baseados em um profundo sistema cosmológico, os antigos pensadores chineses estruturariam todas as suas discussões éticas sobre liberdade, igualdade e respeito tendo por referência um valor fundamental e indiscutível: a universalidade do ser humano.

Esse axioma derivava da idéia de criação do universo: tudo se origina de Li (Princípio), gerador da oposição complementar (Taiji, composto das essências Yin e Yang) que produz e faz nascer de sua cópula contínua, atemporal, universal e imutável todas as coisas existentes no universo. Como disse Laozi: “o um gera o dois, o dois gera o três e o três gera as dez mil coisas — e todas as coisas possuem yin, possuem yang e a mistura do Qi gera a harmonia” (Daodejing, 42) Assim, todos os seres derivam da grande árvore da vida (Mu), eles são seus galhos (Mo) que contém a substância original dentro de si (Ti), raiz de todo o fenômeno da existência. Mas, pela teoria da oposição complementar, se o processo de criação baseia-se em regras imutáveis, a existência dos seres deve ser regida, conseqüentemente, por regras mutáveis. Por isso existem espécies diferentes de animais e coisas, mas cada espécie tem um conjunto de elementos que a identifica como tal (o seu Li específico, que a liga ao Li original) — e, no entanto, nenhum exemplar de uma espécie é igual. Nenhum ser escapa do ciclo de nascimento, crescimento e morte, mas seus tempos de vida são variáveis: e mesmos os seres de uma mesma espécie vivem tempos diferentes de vida. Ou seja, na ocasião em que ocorre a grande revolução do pensar chinês no século VI a.C. os chineses já estavam preparados para acreditar que, mesmo sendo diferentes em aparência, todos o seres humanos são iguais em essência. Mudam as formas, mas as origens são as mesmas (Henderson, 1984 e Bueno, 2003).

E o que deriva desta percepção cosmológica chinesa? A crença de que todos os seres humanos podem pensar as mesmas coisas, pelo simples fato de serem humanos. A busca pelo conhecimento, pela sabedoria, pela retificação moral e espiritual deste mundo constitui aquilo que os chineses chamaram de dao — caminho — denominação extensiva a qualquer proposta ou método de auto-aprimoramento consignada por uma escola de pensamento (Jia). O fato de existirem várias Jia, cada qual com seu dao, segue a lógica da oposição complementar primordial; todos os seres “sabem” o que é necessário para preservar o mundo, mas cada um traduzirá esta proposta de uma forma particular (a lógica da lei imutável da criação regida pela regra da manifestação mutável do fenômeno material). Por isso não é estranho para um chinês instruído que haja semelhança entre uma idéia de Confúcio e de Sócrates ou Aristóteles; afinal, não são todos seres humanos? Da mesma maneira, constatar que esses conceitos podem redundar em propostas normativas completamente diferentes é algo mais do que compreensível; de que outra forma a diversidade humana poderia ser atendida em seus anseios? (Ching, 1999:67-83)

O problema se insere justamente na aplicabilidade destes dao na resolução de problemas sociais. Deve cada um seguir o seu próprio caminho? Ou, deve-se estabelecer alguma grande política pública, baseada nos ensinamentos de uma destas escolas, que atinja todos os níveis sociais? Tentando conjugar o problema universalidade-diversidade dos seres, os sábios chineses antigos tentariam incluir em suas propostas a possibilidade da ampla participação das comunidades em seus projetos, mesmo que isso significasse clamar pela reforma íntima de cada indivíduo...

A resposta do antigo pensamento chinês

O Daoísmo chinês lidou com esta com esta perspectiva de modo brilhante e singular. Laozi (século VI a.C.) teria deixado claro, no seu Daodejing, que todos os seres provém de uma única fonte, e por isso são iguais perante a natureza (Daodejing, 42). No entanto, tal como a mesma natureza os diferenciou segundo sua vontade, cada ser tem uma particularidade específica (Ibidem, 70). Isso não torna um ser mais importante que outro, mas apenas varia a função de cada um em relação ao cosmo, ponto que um de seus principais seguidores, Zhuangzi, enfatizaria:

“As coisas são assim por si mesmas e têm possibilidades por si próprias. Não existe nada que não seja de certo modo e não existe nada que não possa ser de certo modo. Por conseguinte tome, por exemplo, um galho novo e uma coluna, ou uma pessoa feia e uma grande beleza e tudo o que for estranho e monstruoso. Tudo isso é igual para o Dao. A divisão é o mesmo que criação; a criação é o mesmo que destruição. Não há uma criação ou uma destruição, porque essas condições são novamente igualadas numa Única. Somente os verdadeiros sábios compreendem esse principio de igualar todas as coisas numa Única [...]; O universo e eu viemos à existência juntos; eu e tudo que existe somos uma Única coisa [...] Se um homem dorme num lugar úmido, fica doente e morre. Mas o que me diz de uma enguia? Viver no cimo das árvores é vida precária e mexe com os nervos. Mas o que me diz dos macacos? Qual o “habitat” indicado para a enguia, o macaco e o homem? Qual o perfeitamente certo? Os seres humanos se nutrem de carne, os veados de ervas, as centopéias de pequenas cobras, as corujas e os corvos de camundongos. Desses quatro, qual o que tem, absolutamente, o gosto perfeito? O macaco une-se com a fêmea que tem cabeça parecida com a do cão, o gamo com a gazela, a enguia com os peixes, enquanto os homens admiram Maoqiang e Lishi, à vista de quem os peixes mergulham profundamente n'água, os pássaros alçam vôo alto no ar e os veados fogem correndo. Contudo, quem diria qual o perfeito padrão de beleza? Em minha opinião, as doutrinas de humanidade e justiça e os caminhos do direito e do erro são tão confusos que é impossível conhecer tudo o que todos contêm” (Zhuangzi, 2).

Zhuangzi sustentava com esta tese que os seres humanos, apesar de sua origem comum, seriam capazes de formular inúmeras propostas para tratar o problema da subjetividade do conhecimento. O efeito natural, pois, é a universalidade do princípio e a variabilidade da resposta.

Mas se isso já não bastasse para provar que os chineses antigos podiam pensar em igualdade (mesmo que essa igualdade tornasse os seres diferentes), alguns outros autores defenderam a idéia de uma paridade total entre as criaturas. Mozi, por exemplo, acreditava num mundo sem escravos nem senhores. Todos seriam literalmente iguais, numa sociedade ideal de caráter comunal, pacífica e religiosa:

“Ora, o que é que o Céu preza e o que é que o Céu abomina? Indubitavelmente, o Céu deseja que os homens se amem e auxiliem mutuamente, e reprova que se odeiem e hostilizem. Como chegamos a esta conclusão? Simplesmente porque o Céu ama e favorece toda a humanidade. E como sabemos que o Céu ama e favorece a humanidade inteira? Porque o céu protege a todos, e de todos aceita oferendas. Todos os países do mundo, grandes ou pequenos, são cidades do Céu; todos os homens, velhos ou moços, fidalgos ou humildes, são súditos celestes; em verdade, todos eles apascentam bois e ovelhas, alimentam cães e porcos e preparam vinho e bolos para sacrificá-los ao Céu. Acaso não significa isto que o Céu protege a todos e de todos aceita oferendas? Desde que é assim, como não deveríamos pensar que o Céu deseja que os homens se amem e auxiliem mutuamente? Logo, o Céu abençoará os que procederem de acordo com esse preceito, e amaldiçoará os que odeiam e prejudicam o próximo, pois foi dito que “a adversidade há de ferir o assassino do inocente”. Como explicaríamos de outro modo o fato de recair sobre os criminosos a maldição celeste? Logo, o Céu deseja o amor do próximo e detesta o ódio ao próximo” (Mozi, 4).

Amor: eis a palavra que, lançada por Confúcio, tornou-se o mote até mesmo de seu principal antagonista, Mozi: “Mas quais são as calamidades do mundo”? Mozi disse:

“Os ataques recíprocos entre os estados, a mútua usurpação entre as dinastias, as injúrias recíprocas entre os homens, a intolerância e a deslealdade entre governo e governados, o desamor e a ausência de piedade filial entre pai e filho, a desarmonia entre o irmão mais velho e o mais novo! Eis as maiores calamidades do mundo”.

E donde derivam essas desgraças? Diz Mozi:

“Elas nascem da falta de amor ao próximo. Hoje, os governantes aprenderam tão somente a apreciar os seus estados e não os dos outros. Não tem o menor escrúpulo em atacar os estados limítrofes. Os chefes de família habituaram-se a gostar apenas de sua casa e não da casa alheia; nem se envergonham de usurpar o lar do vizinho. Quanto aos indivíduos, a norma é estimarem-se a si mesmos e não aos outros. E não têm escrúpulos em se injuriarem mutuamente. Sempre que os governantes não se estimam reciprocamente, haverá guerra. Quando os chefes de família não se apreciam uns aos outros, acabarão usurpando a autoridade alheia. Se os homens não se estimarem, fatalmente hão de se injuriar uns aos outros. Entre governo e súditos que não se apreciam reciprocamente, não pode haver indulgência nem lealdade. Se pai e filho não se quiserem um ao outro, não haverá amor paterno nem sentimento filial. Faltando afeto entre irmãos, surgirá a desarmonia. Se ninguém no mundo quiser amar ao próximo, é óbvio que o forte sobrepujará o fraco, a maioria oprimirá a minoria, os ricos zombarão dos pobres, os poderosos desdenharão os humildes, os espertos enganarão os ingênuos. Todas as calamidades, as lutas, as queixas, o ódio, que infestam o mundo, nasceram da falta de amor ao próximo. Por isto, os bons reprovam esse desamor”.

Desde que é assim, como se poderiam alterar as condições? Diz Mozi: “Só as modificaremos por meio do amor ao próximo e do auxílio mútuo”. E o que se entende por amor ao próximo e auxílio mútuo? Diz Mozi:

“Significa respeitar o estado alheio como o próprio, a casa alheia como a nossa, o próximo como a nós mesmos. Quando os governantes se respeitarem mutuamente, cessarão as guerras; quando os chefes de família se apreciarem uns aos outros, acabarão as usurpações mútuas; se os homens se estimarem entre si, desaparecerão as injúrias recíprocas. Se o governo e os súditos se considerarem, haverá indulgência e lealdade; se pais e filhos se amarem mutuamente, serão uns e outros afetuosos e filiais; se os irmãos mais velhos e mais novos souberem apreciar-se uns aos outros, reinará harmonia. Se todos quiserem ao seu próximo, o forte não sobrepujará o fraco, os muitos não oprimirão os poucos, os ricos não zombarão dos pobres, os poderosos não desdenharão os humildes e os espertos não lograrão os simples. Graças ao amor do próximo, as lutas, as calamidades, as queixas e o ódio não conseguirão lavrar entre os homens. Por isto, o exaltam os bons” (Mozi, 15).

Apesar desta apologia ao amor, Mozi tornou sua proposta uma utopia ao negar o valor daquilo que serve, justamente, como via reprodutora de todo e qualquer saber: a cultura. Seu combate constante a tradição chinesa confunde-se com o combate as tradições diversas das civilizações, e Mozi tentou universalizar a idéia de igualdade e a liberdade através, principalmente, da supressão da variabilidade e da individualidade (Chan, 1978: 55-60). Isso provavelmente não é possível, nem ontem, nem hoje; tanto Mozi quanto alguns de seus principais admiradores contemporâneos — idealistas chineses ligados ao comunismo — estão desaparecendo, sem conseguir atingir grandes parcelas do público.

Se os discursos de Zhuangzi e Mozi nos parecem atuais — e podemos observar que, em termos conceituais, não há nenhum deles que não possa ser considerado um universalista —, devemos então nos remeter, finalmente, ao grande fundador moral da civilização chinesa, o grande mestre Confúcio. Tido como o “maior dos maiores sábios”, Confúcio foi o primeiro a encarar os problemas de uma civilização chinesa decadente e conflituosa, propondo uma via que pudesse, a princípio, ser seguida por todos. Embora a receita de dao confucionista não fosse completamente restritiva (e nem poderia, pois isso contrariaria o principio da individualidade), o sábio estruturou os ensinamentos de sua escola de forma abrangente, permitindo que qualquer um pudesse ter acesso aos mesmos; “Meu ensinamento dirige-se a todos indistintamente” (Lunyu, 15), disse o Mestre. É o que veremos adiante.

O humanismo confucionista

O Confucionismo, também conhecido por Escola dos Letrados, merece nossa atenção especial ao tratar-se da questão dos direitos humanos. Criado por Confúcio, tido como o primeiro dos sábios chineses historicamente reconhecidos2, este sistema filosófico defendia que toda e qualquer noção de humanidade (Ren) residia na importância da difusão do ensino moral, da cultura e do respeito mútuo (Jingpan, 1990; Yao, 2001). O próprio termo Ren, objetivo perseguido por toda a doutrina de Confúcio, tem um significado todo especial: consiste numa palavra formada pela junção do ideograma “pessoa” com o número “dois”, o que significa, em termos gerais, “união de duas pessoas, respeito mútuo”; é, em essência, o próprio humanismo (Chan, 1978: 44). Para Confúcio, portanto, uma sociedade só poderia ser harmônica se todos os seres fossem capazes de compreender a lógica subjacente à formação das regras morais. “A própria busca da humanidade (ren) não deixa espaço para a prática do mal” (Lunyu, 4), pois “a prática da humanidade tem origem no eu e não no outro” (Lunyu, 12). Estudar, portanto, é fundamental para se construir uma sociedade sadia, pois é através da educação que as pessoas conhecem os preceitos necessários a uma vida comum: “estude para aplicar seus conhecimentos com um fim moral” (Lunyu, 19), pois ter conhecimento é “conhecer o homem” (Lunyu, 12). Estudar, para Confúcio, era “cumprir a lei de nossa natureza humana que é o que chamamos caminho (dao). O cultivo do caminho é o que chamamos educação (jiao). O Caminho é uma lei a que não podemos, por um só instante que seja em nossa existência, fugir. Se pudéssemos dele escapar, não seria mais o Caminho” (Zhongyong, 1). O Acesso ao saber é o que torna uma sociedade mais igualitária: “numa sociedade instruída, não existem diferenças entre os seres” (Lunyu, 15) e “sem princípios comuns, é inútil discutir” (Lunyu, 15).

Para Confúcio, portanto, o alicerce da igualdade entre os seres humanos é a busca de sua perfeição moral através da prática do humanismo, vinculado por uma política ampla de educação; “[...] a única maneira de civilizar o povo e instituir bons costumes sociais é pela educação. Por isso os antigos soberanos consideravam a educação como o elemento mais importante, em seus esforços por implantar a ordem [...]” (Liji, 18); “Apenas com a educação [...] é possível civilizar o povo e reformar a moral da nação, de maneira que os cidadãos se sintam felizes e os habitantes de outras terras gostem de visitar o país” (ibidem).

Qual é, porém, a base de todo o humanismo e moral? Qual é o fundamento ético das noções que permeiam a existência equânime entre os seres humanos? Ren, o humanismo confucionista, estará sempre próximo de outra palavra importante no discurso do mestre: Ai, o Amor — atributo estrutural indispensável a todo o tipo de relações social, motor da fraternidade e do respeito que devem reger a consciência dos seres (Peerenboom, 1999: 234-61). Ren e Ai são os laços que unem o que somos: ramos de uma mesma árvore da vida, derivações do mesmo princípio gerador (Li).

Disse o mestre: “não faça aos outros o que não quer que lhe façam” (Lunyu, 15) e “Ame a todos, sem distinção” (ibidem, 12). Estas máximas deixaram extremamente confusos os jesuítas europeus que começaram a afluir ao oriente em busca de almas para converter; como, seis séculos antes de Jesus, um sábio que nada sabia da revelação poderia lançar epígrafes exatamente iguais as do Cristianismo? Voltaire encantou-se com uma China que podia falar de amor e de moral sem precisar de uma religião para isso.3

Mêncio (372–289 a.C.), o principal comentador de Confúcio na antiguidade, afirmaria sobre esta questão:

“Todos os homens têm um espírito que não pode agüentar ver os sofrimentos dos outros... Se os homens de hoje virem uma criança a cair a um poço, eles experimentarão, sem exceção, um sentimento de alarme e de angústia. E isto não como um modo de ganharem o favor dos pais da criança, nem de procurarem o elogio dos vizinhos e amigos, nem porque temam a reputação de não terem virtude. Daí podemos compreender que aquele que não possui o sentimento da comiseração não é um homem; aquele que não possui o sentimento da vergonha e do desagrado não é um homem; aquele que não possui o sentimento da modéstia e da submissão não é um homem; e aquele que não possui o sentido do bem e do mal não é um homem. O sentimento da comiseração é o começo do amor (ren). O sentimento da vergonha e do desagrado é o começo da retidão (yi). O sentimento da modéstia e da submissão é o começo do decoro (li). O sentimento do bem e do mal é o começo da sabedoria (zhi)” (Mengzi, 2a: 6)

pois “Nada equivale à força que provém da concórdia dos homens” (ibidem, 2b: 1), derivada justamente daquele que “nunca perde seu coração de criança” (ibidem, 4b: 12), ou seja, daquele que tudo perdoa, que nunca perde a sinceridade e que se entrega de toda a alma a amar os que estão próximos. (Bloom, 1999)

Conhecendo o amor, o junzi (o ser moral completo) compreende a base de todo e qualquer normação; “A razão pela qual o Sábio é capaz de olhar o mundo como uma família e seu país como uma pessoa é que ele não cria regras arbitrárias; procura, por outro lado, conhecer a natureza humana, definir as inclinações dos homens e chegar a uma noção bem clara do que seja bom ou mau para a humanidade” (Liji, 9).

Confucionistas posteriores levariam adiante este pensamento de forma plena: Dong Zhongshu, pensador do século II a.C. afirmaria que as virtudes e a regras morais são universais e estão presentes em todos os seres humanos (Jopert, 1978: 188-91)4. Uma outra filósofa do século I d.C., Banzhao, iria ressaltar a importância da equanimidade e do respeito nas relações entre homens e mulheres (Lee Swann, 1932).

Como não crer que Confúcio e seus discípulos seriam, pois, universalistas? Como afirmar que o confucionismo não privilegia a relação harmônica entre os seres, mesmo que não utilizemos o termo direitos humanos? Se tomarmos os ensinamentos do mestre como base, não poderíamos acreditar na possibilidade de alguns pensadores chineses já terem concluído que a base de uma integração entre as sociedades reside no respeito ao indivíduo, a família e a liberdade? Confúcio foi acusado muitas vezes de preservar as instituições da servidão e da submissão das classes; mas, até onde sabemos, ele teria vivido em penúria grande parte de sua vida, e nunca se recusou a ensinar a qualquer um que fosse. Podemos acreditar, por conseguinte, que quando afirmava “não invento nada, apenas transmito; confio e amo o passado” (Lunyu, 7), seu intento fosse preservar algo que há muito os chineses haviam aprendido a prezar: a moral, o amor ao próximo e a sabedoria como guias de uma vida plena e realizada. (Cheng, 1999)

O saber de Confúcio perante o problema dos direitos humanos

Por que a sociedade chinesa nos parece tão estranha então? Porque o Confucionismo não possui a mesma “aparência” dos nossos códigos éticos? Nossa primeira leitura foi falha? Não conhecemos a China, e por isso achamos a priori que tudo lá é diferente? O Confucionismo, como qualquer outra doutrina, também sofreu a ação do tempo e da incompreensão, transformando-se na ideologia oficial de várias nações asiáticas. Será o fenômeno da “deturpação” de boas idéias algo endócrino as civilizações? Afinal, o mesmo pode ser dito dos direitos humanos — incessantemente divulgado por sociedades que insistem, ao mesmo tempo, em violá-los através de invasões, guerras e pressões sociais, comerciais e políticas que tem por título “salvaguardar” o “direito de populações oprimidas” aos direitos humanos!

A resposta parece residir numa questão muito simples, mas que deve ser revista de forma profunda; a questão da Cultura. Parece óbvio que nos remetamos a esta idéia para explicar as diferenças de perspectiva que os orientais possuem em relação às noções de igualdade entre os seres, mas até então, temos tido a expectativa de que, mesmo sendo diferentes de nós, eles poderiam entender e absorver a nossa proposta de direitos humanos porque ela seria melhor para todos.

O potencial de atrito que reside neste posicionamento está pautado na estruturação dos sistemas sociais orientais que, com muita dificuldade (ou com extrema ingenuidade) costumamos a analisar e aceitar (quando aceitamos) (Shaw, 1978). Tomemos como exemplo a noção de individualismo ocidental em contraposição ao forte senso gregário dos chineses: enquanto na primeira noção a afirmação do indivíduo sobre a sociedade é uma meta primordial, na segunda, a vinculação do individuo com a família é o fator determinante de sua formação moral e social. Logo, no Ocidente a questão da Liberdade é tratada numa tendência egoística e antropocêntrica concentrada do indivíduo, mas, na Ásia, a restrição íntima do individualismo é considerada a base desta mesma liberdade social, através do equilíbrio comunitário. Como afirmou Confúcio: “o autocontrole raramente leva ao mau caminho” (Lunyu, 4).

Isso não quer dizer que a mentalidade oriental é pior ou melhor, do que a ocidental. Até recentemente as famílias tradicionais das Américas e da Europa também influenciavam a vida de suas comunidades através das restrições matrimonias, do monopólio do poder sobre os filhos, etc. Igualmente, os orientais tiveram suas experiências libertarias e individualistas. O que caracteriza a diferenciação atual é o fato do discurso ocidental se entender como o mais adequado para a resolução deste impasses, o que gera ainda mais atritos entre estas ditas concepções “modernas” (ocidentais) e “conservadoras” (orientais) (De Bary, 2000).

Tal consideração ficou clara na declaração dos direitos humanos feita pela ONU em 1948. Num grande passo para a formação de um mundo mais justo, os bem intencionados delegados da assembléia entenderam que seria adequado validar a Carta dos Direitos Internacionais do Homem5 como diretriz básica de entendimento entre os povos e sociedades. Só esqueceram de perguntar o que as nações da Ásia e da África achavam disso: mas elas não estavam ainda em condições de responder, e prevaleceu novamente a hierarquia cultural ocidental como referencial de discussão. O que se seguiu, nós sabemos: mais guerras, ditaduras e revoluções, tanto em nome da democracia como contra ela.

A corrupção política e os interesses econômicos ainda são grandes entraves para aplicação de toda e qualquer forma de sistema social mais justo. Outro problema colocado, por conseguinte, é que estes sistemas éticos não têm sido planejados de acordo com as variações culturais existentes entre as sociedades. Eis, aí, um dos pontos que os autores orientais tem trabalhado bastante no sentido de resolver, e o que o confucionismo teria logrado alcançar em sua expansão para as civilizações da China, Japão, Coréia, Vietnã, etc.

A questão dos sistemas culturais e de pensamento

A cultura tem sido entendida, tanto na China como na Índia, como uma variação técnica da necessidade de adaptação ao meio por parte do ser humano. Ela é entendida como uma produção dicotômica, tendo em vista que ao mesmo tempo é algo natural da evolução do ser (sua capacidade de adaptação) e ao mesmo tempo não natural, na medida em que destaca o ser do seu meio.

Cada sociedade produziu uma cultura específica pela necessidade de respostas aos mesmos problemas, mas em interação com ambientes diferentes. Logo, isso nos remete a idéia constante de que todos os seres são iguais, mas cada um tem seu próprio espaço e, por conseguinte, cada um desenvolve a melhor forma de viver nele.

Isso, porém, não quer dizer que os orientais acreditassem sempre que o meio fazia a pessoa: ele o influenciava, com certeza, mas todos possuem a capacidade de mudar o seu destino. Assim, a cultura é vista, portanto, como a melhor forma de interagir com o ambiente: e no momento que ela atinge sua conformação ideal, ela pode ser modificada de acordo com a necessidade, mantida como padrão ou cair em desuso, caso os novos tempos o exijam. O que não muda, portanto, são os pressupostos sobre as quais as culturas são construídas: a busca do equilíbrio harmônico entre o indivíduo e a sociedade, entre os seres e o meio, como já havia comentado Confúcio:

“Os antigos que desejavam tornar manifesto o caráter claro dos povos do mundo empenhavam-se primeiramente em ordenar sua vida nacional. Os que desejavam ordenar sua vida nacional empenhavam-se primeiro em regular sua vida familiar. Os que desejavam regular sua vida familiar empenhavam-se primeiro em cultivar sua vida pessoal. Os que desejavam cultivar sua vida pessoal empenhavam-se primeiro em pôr seu coração no caminho certo. Os que desejavam pôr seu coração no caminho certo empenhavam-se primeiro em tornar sinceras suas vontades. Os que desejavam tornar sinceras suas vontades empenhavam-se primeiro em ampliar seu conhecimento. A ampliação do conhecimento depende da investigação das coisas. Quando as coisas são investigadas, o conhecimento então se amplia, a vontade então se torna sincera; quando a vontade é sincera; o coração então se põem no caminho certo; quando o coração está no caminho certo, a vida pessoal então é cultivada; quando a vida pessoal é cultivada, a vida familiar então é regulada; quando a vida familiar é regulada, então a vida nacional está ordenada; e quando a vida nacional está ordenada, então há paz no mundo” (Daxue, 1)

Estas definições nos fazem compreender como o Oriente, em certa medida, foi forçado a abandonar seu antropocentrismo clássico em função dos tempos de dominação colonial. Concomitantemente, o imperialismo acirrou a xenofobia, mas deu margem à que os grupos intelectualizados pudessem pensar o relativismo cultural como um fator de diferenciação profundo, causador de barreiras mentais que terminariam sempre por provocar os conflitos existentes no mundo.

A questão da igualdade, portanto, não é uma premissa ocidental, mas universal. A forma de aplica-la, porém, é que tem variado durante os séculos (seja no formato religioso, legal, político, etc), e o fator cultural ainda não foi devidamente trabalhado para que haja um consenso sobre como estabelecer um critério de paridade entre as civilizações. Talvez devido aos tempos de invasão e repressão estrangeira, alguns orientais têm pensado em formas de administrar estes problemas baseados em suas experiências com o assunto. Pensar em resolver a questão da equanimidade sem atentar para a diversidade é, nas palavras do mestre, “atacar uma questão pelo lado errado — o que é realmente danoso” (Lunyu, 2).

Soluções possíveis

No aspecto cultural e filosófico, a compreensão dos códigos sociais e éticos das sociedades passa pela necessidade de uma tradução mais ampla, tanto lingüística quando comunicativa.

Já notamos desde muito a ampla necessidade que temos de conhecer um pouco mais sobre o oriente antes e fazermos qualquer avaliação de sua cultura. A língua chinesa, por exemplo, é a mais falada do mundo: e, no entanto, quantos de nós passamos a vida toda sem conhecer uma única expressão desta língua? O que sabemos sobre o senso religioso dos chineses, povo que nunca precisou de igrejas para legislar? (Ching, 1978)

Estas discrepâncias subsistem devido ao desconhecimento. No entanto, sua apresentação pura e simples não é suficiente para que possamos conhece-las melhor. Existe ainda o problema de tradução e adaptação dos conceitos destes sistemas mentais, aos quais muitas vezes fazemos associações grosserias com aquilo que julgamos ser semelhante na nossa cultura. Quantas vezes, por exemplo, sinólogos engajados não fizeram aparecer a figura de um Deus próximo do cristianismo nos textos clássicos da China6?

O mesmo ocorre com a questão dos direitos humanos. Não basta somente reconhecer que o Oriente possui outras culturas. É necessário compreender que cada uma delas tem um sistema de vida, para o qual foram criadas perspectivas de igualdade que são diferentes daquelas que nós, ocidentais, criamos para nós. Os direitos humanos são um código válido, portanto, para o Ocidente e para quem mais quiser utiliza-los, mas não podem servir de índice cultural na analise de qualquer sociedade. Se assim o fosse, os próprios criadores e difusores destas propostas estariam entre os que menos a praticam, o que tornaria este ideal igualitário um grande fracasso ideológico.

A visão levantada pelos autores orientais é muito precisa no que toca a necessidade constante que devemos ter de preservar a cultura, trabalhando, porém, para aperfeiçoa-la de modo humanístico (Angle, 1999). Neste ponto, a idéia de Humanismo parece possuir uma afeição notável por parte de muitos pensadores de todas as partes do mundo. Confúcio — que parece ter resposta para todos estes problemas — já dizia que “a virtude não é solitária, ela tem seus vizinhos” (Lunyu, 4).

Uma análise transcultural como as propostas por Panikkar (1994) Wang (1997) ou de Zhu (2001) chamam nossa atenção para o fato de que temos que estabelecer o diálogo para que qualquer proposta de igualdade seja aceita. Em segundo lugar, que este diálogo estabeleça canais de comunicação, mas não regras de trato social com um caráter impositivo. Sem uma certa isenção inicial, e sem a capacidade de compreender que as culturas têm suas próprias formas de administrar o problema da liberdade, todo e qualquer processo de interação será inútil e estéril, o que acaba por promover o uso da força como corretivo. Para finalizar, a atenção dada a estes valores demonstra que dentro de cada sociedade existe mesmo uma diferenciação entre seus extratos, o que embora seja atenuado por questões de língua ou espaço, nos fazem rever a idéia que temos sobre a organização da nossa própria comunidade, sobre o que significam os conceitos de igualdade e convivência, e o que, por fim, explica o nosso espanto diante do aumento de fenômenos como a violência e a pobreza em nosso cotidiano.

Conclusão

Por esta nossa breve análise, podemos concluir que a questão da aplicação dos direitos humanos só pode ser universalista se levar em conta a diversidade das produções culturais. Assim sendo, não é impossível que as culturas estabeleçam noções de igualdade e vias de comunicação accessíveis a todos os seres, mas, para tal, existe a condição indispensável e primeira de todas as relações que é o reconhecimento do outro como um legítimo ser humano, indivíduo autônomo (e, no entanto, coletivo), produtor de saber e possuidor de valores tais como fraternidade, amor, respeito, etc a que todos os sistemas éticos e morais recorreram para elaborar suas propostas, tanto no Ocidente como no Oriente. Neste caso a resposta dos antigos, tal como Confúcio, nos deixa claro que as noções de igualdade, liberdade e fraternidade não são novas, mas precisam ser entendidas à luz de sociedades milenares como a chinesa. A articulação entre o eu e a sociedade, entre as diversas civilizações, passa necessariamente por um crivo ético que tem que ser aceito como universal, se quisermos ter uma base para discussão. Este alicerce não pode ser imposto culturalmente, mas descoberto pelo diálogo e pela troca. “A lei moral pode ser encontrada em toda parte, e no entanto ela parece ser um segredo!”, afirmou o mestre (Zhongyong, 12). Eis, aqui, o objetivo daquele que busca legitimar os direitos humanos como direitos do ser: “buscar o tênue fio que liga o nosso ser moral a ordem do mundo, este é o verdadeiro caminho a ser alcançado” (ibidem, 3), pois “a vida do ser moral é a exemplificação da ordem moral universal” (ibidem, 2). Vozes da antiguidade levantam-se pelo ser humano e ainda clamam, hoje, pelo inexorável processo de retificação das consciências, aguardando a era da justiça.

André Bueno

Bibliografia

Fontes primárias

Notas

  1. Este é, com certeza, um dos temas preferidos da Antropologia Ocidental — olhar o outro — exaustivamente discutido por diversos autores, tais como Mallinovski (1975), Geertz (1978), Levi-Strauss (1980) e Barth (1999), entre muitos outros. Nosso objetivo neste artigo, no entanto, é fazer falar Confúcio e os antigos chineses; precisamos, pois, ir além.
  2. Não existem informações precisas sobre vida de Laozi, que teria sido contemporâneo de Confúcio; Mozi teria vivido algumas décadas depois do período de vida do Mestre (551–479 a.C.), e todas os outros autores famosos teriam surgido num período posterior.
  3. Ver o Dicionário Filosófico, 1973: 124. e O Filósofo Ignorante, 1973: 329-30. in Voltaire e Diderot. Col. Os Pensadores. Rio de Janeiro: Abril, 1973.
  4. Dong Zhongshu, no entanto, foi um dos principais colaboradores para a instituição da ortodoxia confucionista como ideologia de Estado durante a Dinastia Han. Ele esperava que o governo conduzisse e patrocinasse o empreendimento de políticas púbicas de educação e provimento da população, o que só foi obtido em parte. A elite aproveitou o ensejo e começou a utilização do confucionismo como uma ideologia de submissão das massas, deturpando-o e criando um atrito com muitos escolares confucionistas.
  5. Até o nome “...Direitos do Homem” conserva a noção tradicional do masculino como sinônimo de ser humano. Na China, a palavra ren — que significa ser humano — é neutra, indicando tanto o feminino quanto o masculino. Ren, o humanismo confucionista (a pronúncia e a escrita desta em relação a primeira são ligeiramente diferentes) também é um termo neutro, aberto a qualquer gênero, povo ou grupo.
  6. É o caso das traduções chinesas de J. Legge e de H. Gilles, que apesar do profundo conhecimento da língua, insistiam constantemente no uso de termos cristãos para explicar conceitos filosóficos chineses
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