Strangers Drowning, da jornalista Larissa MacFarquhar, não é um livro de filosofia, mas instiga intuições filosóficas importantes. O livro discute inúmeros exemplos concretos capazes de obrigar a rever os nossos preconceitos filosóficos acerca dos agentes morais altruístas, que usualmente são tão menosprezados por pessoas de temperamento mais individualista. O livro trata dos feitos morais de pessoas que a autora chama “benfeitores” (do-gooders), denominados “santos morais” em discussões de ética normativa. Ao apresentar vívidas histórias de diferentes benfeitores, a autora desafia a crença de que o altruísmo está muito mais próximo de uma falha de caráter ou da falta de sanidade do que de algo digno de elogio. Com um estilo claro, a autora nos descreve em quinze capítulos as desafiadoras histórias de vários benfeitores, intercalando-as com reflexões sobre os quase incansáveis sentidos de dever e de imparcialidade para com quem sofre e a desconfiança em torno de sua conduta generosa. Os feitos altruístas narrados são tão incomuns e permeados de tantas adversidades que o leitor muitas vezes sente-se embarcando em uma jornada tão dramática quanto a de um livro de aventuras.
Para a autora, os benfeitores são pessoas que além de possuir um forte sentido de dever, são altruístas, imparciais e desejam, quase incontrolavelmente, fazer o bem. Os benfeitores vivem sob a contínua impressão de que estão em “tempo de guerra”, isto é, de que não podem se dar ao luxo de sentar em suas poltronas para assistir TV, pois podem empregar esse tempo ajudando muitos seres sencientes que estão sofrendo e morrendo por falta de abrigo, comida e liberdade. Para o casal Sue Hoag e Hector Badeau, por exemplo, nunca houve “tempo de paz”. De tempos em tempos uma criança sofrida fora adotada (vinte no total, algumas com sérios problemas de saúde); em certo momento deram abrigo a pessoas recém-desinstitucionalizadas; e em certa altura, o casal precisou disponibilizar um espaço dentro de casa para receber uma família de oito refugiados vindos do outro lado do oceano.
Os benfeitores geram inúmeras controvérsias filosóficas. Alguns filósofos os vêem com bons olhos, pois pensam que os seus feitos são deveres morais (Kagan, 1989), ao passo que outros os aprovam por considerá-los dignos de louvor, mas não obrigatórios (Urmson, 1958). Os primeiros argumentam que a sociedade tem tanto a ganhar com tais feitos que é imperativo que sejam obrigatórios para todos. Já os segundos acreditam que esses feitos descrevem uma realidade moral única e que seria absurdo exigir que todos agissem como Sue Hoag e Hector Badeau. O capítulo do livro filosoficamente mais interessante (o quarto) segue mais ou menos nessa linha de discussão e aborda brevemente o tema da exigência moral.
Uma razão para pensar que os feitos altruístas são louváveis é que pretendem promover um grande bem para os outros pagando o custo de grandes sacrifícios para si. Algumas ações promovem um grande bem, mas não são dignas de elogio precisamente porque não envolvem um grande sacrifício pessoal. Por exemplo, se ao salvar uma criança de se afogar em um lago, eu preciso apenas molhar a minha calça, isso não será digno de elogio, pois não envolve um grande sacrifício, ainda que promova um grande bem (Singer, 2006, pp. 240–241). Por outro lado, apenas sacrificar-se enormemente por nenhum bem em especial, apenas pelo desafio de se sacrificar, por exemplo, pode causar espanto, mas também não justifica qualquer sentimento de admiração. Porém, tentar realizar um grande bem para os outros pagando um alto custo para si requer um desprendimento incomum e acima da média; logo, admirável. Logo, ao menos nessas circunstâncias, temos razões para acreditar que os feitos altruístas dos benfeitores são louváveis.
Há também quem duvide dos feitos altruístas. Pessoas adeptas de uma visão negativa da natureza humana tendem a acreditar que os feitos altruístas não passam de atos motivados por egoísmo e vaidade, ou mesmo por um notório desarranjo psicológico. Para MacFarquhar, historicamente, o grande vilão da desconfiança é Sigmund Freud, mas ela própria deixa claro que na história das ideias essa desconfiança é antiga, e apresenta exemplos na filosofia e na literatura para mostrar quão recorrente é a desconfiança direcionada aos benfeitores. Dentre as histórias narradas no livro, os feitos de Dorothy Granada e Charles Gray foram alvo da desconfiança de muitas pessoas. Pacifistas, dentre vários outros feitos, realizaram uma greve de fome de ampla repercussão contra a guerra nuclear. Em resultado, atraíram vários adeptos para sua causa, o seu grupo se encontrou com pessoas importantes e todo o processo captou a atenção dos meios de comunicação.
Na filosofia contemporânea a desconfiança ganhou destaque a partir do trabalho de Susan Wolf (1982). Segundo Wolf, por estarem comprometidos fundamentalmente com a promoção da felicidade alheia, os benfeitores perderiam a capacidade de apreciar uma vida agradável e não teriam tempo para a literatura, a música, os esportes ou o cinema. Também deveriam ser sempre gentis com todos, mesmo que estivessem furiosos, e não teriam qualquer sentido de humor ou sensibilidade artística. Em suma, na vida de um benfeitor faltaria todo o tipo de virtudes não-morais e de bens culturais, o que o tornaria um tipo insosso e desinteressante, além de mais propenso ao aparecimento de excentricidades e idiossincrasias que não estão de acordo com um ideal de perfeição moral.
Uma das respostas que podemos oferecer a críticas como as de Wolf é observar que as virtudes não-morais que ela afirma serem incompatíveis com uma vida pautada pelo altruísmo não só são afinal compatíveis como podem até ser motivadas por ele. Por exemplo, Vikas Amte, um dos benfeitores presentes no livro de MacFarquhar, não cursou a faculdade de engenharia para tornar-se médico e auxiliar seu pai, Baba Amte, num leprosário da Índia. Contudo, motivado pelo desejo de tornar as coisas melhores para os leprosos, utilizava sua habilidade para construir coisas a fim de tornar a vila do leprosário uma vila-modelo. O que ilustra que virtudes não-morais podem não ser incompatíveis com o altruísmo.
Antecipando objeções como essa, Wolf argumenta que a ideia de que as virtudes não-morais, os bens culturais, os talentos, etc. têm valor apenas como meios para a promoção da felicidade alheia revela uma visão superficial dessas virtudes e bens. A criatividade, por exemplo, tem valor não apenas porque pode melhorar a vida dos necessitados; é valiosa porque produz novidades que fazem as coisas que nos rodeiam ser diferentes, e muitas vezes essas novidades não têm qualquer aplicabilidade prática.
É argumentável, contudo, que as virtudes não-morais não são condições necessárias, nem suficientes, para que alguém seja considerado interessante. Isso porque podemos pensar em inúmeros exemplos de pessoas interessantes que pautaram a sua vida em termos altruístas. Considere novamente o caso de Vikas Amte. Segundo a narrativa de MacFarquhar, Vikas era uma pessoa cheia de energia e um entusiasta de novos projetos para ajudar aos necessitados. Além de trabalhar como médico e de melhorar as condições do leprosário, fundou uma orquestra, ensinou técnicas de plantio a agricultores falidos e criou um centro e treinamento vocacional para desempregados. A sua presença de espírito era um estímulo para muitas pessoas que trabalhavam à sua volta ou o procuravam para testar novas ideias e pedir melhoramentos. Além disso, podemos pensar ainda em inúmeros exemplos de pessoas que têm virtudes não-morais (cozinham bem, têm conhecimento de arte, etc.), mas que são tão arrogantes e egocêntricas que não são interessantes.
Wolf também parece oferecer uma caricatura do típico benfeitor ao descrevê-lo como alguém que sempre tenta ser gentil, não tem sentido de humor e não tem uma vida pessoal bem desenvolvida. Isso se parece mais com a figura de um asceta medieval do que com um altruísta motivado pelo desejo de fazer o bem e de melhorar o mundo e que é, antes de tudo, humano. Como mencionado, Vikas Amte era vivaz e criativo. Outro contra-exemplo que podemos extrair do livro de MacFarquhar é o de Jeff Kaufman, que doava boa parte de seu salário para a caridade e era um feliz e bem-sucedido esposo e programador.
Um dos méritos do livro de MacFarquhar consiste justamente em mostrar a face perturbadoramente humana dos benfeitores. Ela não mostra apenas as vicissitudes, mas também as faltas de vários deles: Aaron Pitkin era extremamente dado à caridade, mas achava o trabalho doméstico uma perda de tempo e, por conseguinte, mantinha a casa suja; Baba Amte, o pai de Vikas Amte, às vezes gritava com os trabalhadores do leprosário e mentia para conseguir que as pessoas próximas se juntassem a ele em sua incansável luta em favor dos leprosos. MacFarquhar nos informa também sobre como, apesar de imparciais, à imagem e semelhança de qualquer outro ser humano, agonizam com questões familiares de vários tipos (relacionamentos em crise, alcoolismo, filho na cadeia, gravidez indesejada, etc.).
Outra questão que os adeptos da desconfiança levantam e que merece destaque é se as ações altruístas dos benfeitores são mesmo todas boas, pois ao menos a longo prazo algumas parecem gerar mais mal do que bem. Será que Aaron Pitkin e Jeff Kaufman, que doavam boa parte de seus rendimentos para a caridade, não estariam, na verdade, alimentando uma cultura de parasitismo? Movidos por seu quase inabalável desejo de ajudar aos outros, os benfeitores nem sempre se fazem perguntas dessa natureza. Porém, dado o impacto econômico e social que têm as ações dos benfeitores, questões desse tipo merecem ser levantadas e investigadas não só por eles ou pelos adeptos da desconfiança, mas por toda a sociedade.
Há ainda outros tópicos relacionados aos feitos dos benfeitores que merecem atenção, como saber se é moralmente correto tratar “os de fora” do mesmo modo que tratamos “os de dentro”. Para entender melhor o que isso significa, pense no seguinte: se você tivesse de escolher entre salvar de um afogamento um ente querido e dois estranhos, o que você faria? A maior parte das pessoas optaria sem pensar por salvar o ente querido. Para os benfeitores, no entanto, a escolha parece mais difícil. Conforme nos mostram os fatos narrados por MacFarquhar, para muitas dessas pessoas a distinção entre os familiares e os estranhos que necessitam de ajuda simplesmente não existe. Baba Amte (o mesmo que às vezes era grosso e mentiroso), por exemplo, nunca fez distinção entre a esposa, os filhos e os doentes do seu leprosário. Para ele, todos precisavam igualmente de amparo. Os leprosos talvez até precisassem mais do que a esposa e os filhos.
Alguns filósofos consideram que agir com tamanha imparcialidade é um erro, uma vez que constitui uma violação de nossas obrigações especiais, aquelas que temos em relação aos nossos familiares, amigos, etc. (Cottingham, 1983). Para outros (Godwin, 1793), agir desse modo é correto, pois a ética é baseada na imparcialidade e exige que pesemos os interesses de todas as pessoas igualmente, a despeito das relações que temos com elas.
Para não apresentar apenas um lado da moeda, o livro também mostra que nem todos os benfeitores permanecem fiéis até o fim. O penúltimo capítulo do livro narra a história de uma apóstata. Na contramão da perseverança de pessoas como Baba Amte e das gerações de sua família que se dedicaram aos necessitados, aos trinta anos, após dedicar-se por certo tempo a uma instituição ligada à caridade, Stephanie Wykstra decidiu cuidar de si e simplesmente não acreditar mais no altruísmo ilimitado.
O livro apresenta uma rica variedade de referências ao final e termina com uma conclusão nada otimista. Para MacFarquhar, a vida prevalece sobre a moralidade. Ou seja, no fim, mesmo sabendo que o mundo seria melhor com mais benfeitores e da diferença que faríamos no mundo se mais de nós agíssemos como eles, a maioria das pessoas ainda prefere e preferirá a vida privada à moralidade. A despeito do quanto as mazelas no mundo se propagarem, a maior parte de nós continuará a assistir seriados de TV, a comer em restaurantes caros e a construir carreiras somente para o benefício próprio. Contudo, ninguém negará que o mundo é um lugar melhor devido aos benfeitores.
Fernanda Belo Gontijo