Euclides (fl. c. 300 a. C., Alexandria, Egipto) foi o mais proeminente matemático da Antiguidade greco-romana, conhecido sobretudo devido ao seu tratado sobre geometria, os Elementos.
Da vida de Euclides nada se sabe, excepto o que o filósofo grego Proclo (c. 410–485 d. C.) relata no seu “sumário” de matemáticos gregos famosos. Segundo Proclo, Euclides deu aulas em Alexandria no tempo de Ptolemeu I Soter, que foi rei do Egipto de 323 a 285 a. C. Os tradutores e compiladores medievais confundiram-no amiúde com o filósofo Euclides de Mégara do século anterior, aproximadamente, que era um contemporâneo de Platão, e por isso chamavam-lhe “Megárico”. Proclo apoiava a data que atribuiu a Euclides, escrevendo que “Ptolemeu perguntou uma vez a Euclides se não havia uma via mais célere para a geometria que não pelos Elementos, ao que Euclides respondeu que não havia estrada real para a geometria”. Hoje, poucos historiadores põem em causa o consenso de que Euclides era mais velho do que Arquimedes (c. 290–212/211 a. C.).
Euclides compilou os Elementos de várias obras de autores anteriores. Entre eles conta-se Hipócrates de Quio (fl. c. 440 a. C.), que não deve ser confundido com o médico Hipócrates de Cós (c. 460–375 a. C.). O último compilador antes de Euclides foi Têudio, cujo manual foi usado na Academia, tendo provavelmente sido aquele que Aristóteles (384–322 a. C.) usou. Os elementos mais antigos foram de imediato superados pelo de Euclides e depois esquecidos. Com respeito ao conteúdo, Euclides baseou-se sem dúvida em todos os seus predecessores, mas é claro que toda a concepção da sua obra era da sua lavra, culminando na construção dos cinco sólidos regulares, hoje conhecidos como “sólidos platónicos”.
Um breve exame dos Elementos desmente a crença comum de que diz respeito apenas à geometria. Essa concepção errada poderá resultar de se ler apenas os Livros I–IV, que abrangem a geometria elementar do plano. Euclides compreendia que construir uma geometria (e uma matemática) lógica e rigorosa dependia das fundações — uma fundações que Euclides começou no Livro I, com vinte e três definições (como “um ponto é o que não tem partes” e “uma linha é um comprimento sem largura”), cinco pressupostos sem prova a que Euclides chamava “postulados” (conhecidos hoje como “axiomas”), e mais cinco pressupostos a que chamava “noções comuns”. (Veja-se a tabela com os dez primeiros pressupostos de Euclides.) O Livro I demonstra então teoremas elementares sobre triângulos e paralelogramos e termina com o teorema de Pitágoras.
Axiomas de Euclides | |
1 | Dados dois pontos, há uma linha recta que passa por ambos. |
2 | Um segmento de recta pode ser prolongado indefinidamente. |
3 | Um círculo pode ser construído quando for dado um ponto para o seu centro e uma distância para o seu raio. |
4 | Todos os ângulos rectos são iguais. |
5 | Se uma linha recta que passa por duas outras linhas rectas forma ângulos internos menores do que dois ângulos rectos, as duas rectas, se forem indefinidamente prolongadas, encontram-se no lado em que os ângulos são menores do que os dois ângulos rectos. |
Noções comuns de Euclides | |
6 | Coisas iguais à mesma coisa são iguais. |
7 | Se acrescentarmos iguais a iguais, os resultados são iguais. |
8 | Se iguais forem subtraídos de iguais, os restos são iguais. |
9 | Coisas que coincidem entre si são iguais. |
10 | O todo é maior do que uma parte. |
O tema do Livro II tem sido denominado “álgebra geométrica”, porque apresenta identidades algébricas como teoremas acerca de figuras geométricas equivalentes. O Livro II inclui uma construção da “secção”, a divisão de uma linha em duas partes de modo a que a proporção entre o segmento maior e o menor seja igual à proporção entre a linha original e o segmento maior. (Esta divisão foi redenominada como “secção áurea” no Renascimento quando os artistas redescobriram as suas proporções agradáveis.) O Livro II generaliza também o teorema de Pitágoras a triângulos arbitrários, um resultado que é equivalente à lei dos cossenos. O Livro III aborda as propriedades dos círculos, e o Livro IV a construção de polígonos regulares, em particular o pentágono.
O Livro V passa da geometria do plano para a exposição de uma teoria geral das proporções que é atribuída por Proclo (juntamente com o Livro XII) a Eudoxo de Cnido (c. 395/390–342/337 a. C.). Apesar de se poder ler o Livro V independentemente do resto dos Elementos, a sua solução do problema dos incomensuráveis (números irracionais) é essencial para os livros seguintes. Além disso, constituía a fundação da teoria geométrica dos números até à teoria analítica, desenvolvida em finais do século XIX. O Livro VI aplica esta teoria das proporções à geometria do plano, sobretudo triângulos e paralelogramos, culminando na “aplicação de áreas”, um método para resolver problemas quadráticos por meios geométricos.
Os Livros VII–IX incluem elementos de teoria dos números, onde “número” (arithmos) quer dizer inteiros positivos maiores do que 1. Começando com vinte e duas definições — como unidade, par, ímpar e primo — estes livros desenvolvem várias propriedades dos inteiros positivos. Por exemplo, o Livro VII descreve um método, antanaresis (hoje conhecido como “algoritmo euclidiano”), para encontrar o maior divisor comum entre dois ou mais números; o Livro VIII examina números em proporções contínuas, hoje conhecidos como “sequências geométricas” (como ax, ax2, ax3, ax4…); e o Livro IX demonstra que há um número infinito de primos.
Segundo Proclo, os Livros X e XIII incorporam o trabalho do pitagórico Teeteto (c. 417–369 a. C.). O Livro X, que constitui aproximadamente um quarto dos Elementos, parece desproporcional face à importância da sua classificação de linhas e áreas incomensuráveis (apesar de ter sido o estudo deste livro que inspirou Johannes Kepler [1571–1630], quando procurava um modelo cosmológico).
Os Livros XI–XIII examinam figuras tridimensionais, stereometria em grego. O Livro XI diz respeito a intersecções de figuras planas, linhas e paralelepípedos (figuras sólidas com paralelogramos paralelos como faces opostas). O Livro XII aplica o método da exaustão de Eudoxo para demonstrar que as áreas dos círculos estão umas para as outras como os quadrados dos seus diâmetros, e que os volumes das esferas estão uns para os outros como os cubos dos seus diâmetros. O Livro XIII culmina na construção dos cinco sólidos platónicos regulares (pirâmide, cubo, octaedro, dodecaedro, icosaedro) numa dada esfera.
O desequilíbrio dos vários livros e os diferentes níveis de matemática poderá dar a impressão de Euclides não passar de um compilador de tratados redigidos por outros matemáticos. Até certo ponto, isto é certamente verdadeiro, ainda que seja provavelmente impossível distinguir entre as partes que são suas e as que são dos seus predecessores. Os contemporâneos de Euclides consideravam que a sua obra era final e abalizada; se mais havia a dizer, seria apenas como comentários aos Elementos.
Nos tempos antigos, há comentários de Heron de Alexandria (fl. 62 d. C.), Papo de Alexandria (fl. c. 320 d. C.), Proclo e Simplício da Cilícia (fl. c 530 d. C.). O pai de Hipácia, Téon de Alexandria (c. 335–405 d. C.), compilou os Elementos, introduzindo mudanças no texto e alguns aditamentos; a sua versão rapidamente apagou as outras edições, e continuou a ser a fonte grega de todas as traduções árabes e latinas seguintes até 1808, quando uma edição anterior foi descoberta no Vaticano.
O impacto imenso dos Elementos na matemática islâmica é visível nas muitas traduções árabes a partir do século IX, três das quais é imperativo mencionar: duas de al-Ḥajjāj ibn Yūsuf ibn Maṭar, a primeira para o califa ʿAbbāsid Hārūn al-Rashīd (que reinou de 786 a 809), e a outra para o califa al-Maʾmūn (que reinou entre 813 e 833); uma terceira de Isḥāq ibn Ḥunayn (m. 910), filho de Ḥunayn ibn Isḥāq (808–873), que foi revista por Thābit ibn Qurrah (c. 836–901) e de novo por Naṣīr al-Dīn al-Ṭūsī (1201–1274). Euclides tornou-se inicialmente conhecido na Europa por meio de traduções latinas destas versões.
A primeira tradução latina que nos chegou dos Elementos foi levada a cabo por volta de 1120 e é da autoria de Adelardo de Bath, que obteve uma cópia de uma versão árabe em Espanha, para onde viajou disfarçado de estudante islâmico. Adelardo compôs também uma versão abreviada e uma edição comentada, dando assim início a uma tradição euclidiana da maior importância, até à descoberta de manuscritos gregos, no Renascimento. Incontestavelmente, a melhor tradução latina do árabe foi da autoria de Gerardo de Cremona (c. 1114–1187), feita a partir das versões de Isḥāq-Thābit.
A primeira tradução directa do grego, sem intermediário árabe, foi a de Bartolomeo Zamberti, publicada em Viena em latim em 1505, e a editio princeps do texto grego foi publicada na Basileia em 1533 por Simon Grynaeus. A primeira tradução inglesa dos Elementos foi da autoria de Sir Henry Billingsley, em 1570. Não se pode exagerar o impacto desta actividade na matemática europeia; as ideias e métodos de Kepler, Pierre de Fermat (1601–1665), René Descartes (1596–1650) e Isaac Newton (1642–1727) estavam profundamente enraizados nos Elementos de Euclides, sem os quais seriam inconcebíveis.
O corpus euclidiano divide-se em duas categorias: geometria elementar e matemática geral. Apesar de muitos dos escritos de Euclides terem sido traduzidos para árabe na Idade Média, desapareceram obras tanto de um grupo como do outro. Entre as que nos chegaram do primeiro grupo encontra-se Dado (da primeira palavra grega no livro, dedomena), uma colectânea heterogénea de noventa e quatro proposições geométricas avançadas que assumem todas a seguinte forma: dado um certo item ou propriedade, então outros itens ou propriedades são também “dados” — ou seja, podem ser determinados. Algumas das proposições podem ser vistas como exercícios de geometria para determinar se se consegue construir uma figura por meios euclidianos. Das Divisões (de figuras) — restaurada e compilada em 1915 com base em versões árabes e latinas — lida com a divisão de uma dada figura com uma ou mais linhas rectas com várias proporções entre si ou com proporções relativas a outras áreas.
Há quatro trabalhos de geometria perdidos que são descritos nas fontes gregas e atribuídas a Euclides. O propósito de Pseudaria (“Falácias”), afirma Proclo, era distinguir vários tipos de falácias de raciocínio geométrico às quais os iniciantes são susceptíveis, e avisá-los quanto a elas. Segundo Papo, o Porisma (“Corolários”), em três livros, continha 171 proposições. Michel Chasles (1793–1880) conjecturou que a obra incluiria proposições que pertencem à moderna teoria dos transversais e à geometria projectiva. Como aconteceu com as versões anteriores de “Elementos”, as Cónicas de Euclides, em quatro livros, foi superada por um livro mais exaustivo sobre secções cónicas, com o mesmo título, escrito por Apolónio de Perga (c. 262–190 a. C.). Papo menciona também Lugares de Superfícies (em dois livros), cujo tema só é conhecido por inferência a partir do título.
Entre as obras de Euclides que nos chegaram encontra-se a Óptica, o primeiro tratado grego sobre perspectiva, e Fenómenos, uma introdução à astronomia matemática. Estas obras fazem parte de um corpus conhecido como “Pequena Astronomia”, que inclui também Esfera em Movimento, de Autólico de Pitane.
Já se pensou erradamente que dois tratados musicais, “A Divisão da Escala” (que é basicamente uma teoria pitagórica da música) e “Introdução à Harmonia”, faziam parte de Elementos de Música, uma obra perdida atribuída por Proclo a Euclides.
Quase desde que foram redigidos, os Elementos exerceram uma forte e contínua influência na vida humana. Foi a fonte principal de raciocínio geométrico, de teoremas e de métodos, pelo menos até ao advento da geometria não-euclidiana, no século XIX. Afirma-se por vezes que, além da Bíblia, os Elementos são a obra mais traduzida, publicada e estudada de tudo o que se produziu no mundo ocidental. Euclides poderá não ter sido um matemático de primeira, mas estabeleceu um padrão do raciocínio dedutivo e da instrução geométrica que persistiu, praticamente sem mudar, durante mais de dois mil anos.
George Sarton, Introduction to the History of Science, 3 vol. em 5 (1927–1948), vol. 1, inclui uma bibliografia alargada até aos anos vinte. Thomas L. Heath, A History of Greek Mathematics (1921, reimpresso em 1993), vol. 1, apresenta um inspecção abalizada das obras de Euclides; pode ser complementada com Victor J. Katz, A History of Mathematics: An Introduction, 3.ª ed. (2009), cuja bibliografia refere as abordagens mais recentes das obras de Euclides. A informação sobre Euclides e o platonismo encontra-se em Glenn R. Morrow (trad.), Proclus: A Commentary on the First Book of Euclid’s Elements (1970, reimpresso em 1992). Um contributo recente acessível para a bibliografia é Benno Artmann, Euclid: The Creation of Mathematics (1999, reimpresso em 2012).
As obras de Euclides que nos chegaram foram coligidas em Euclidis Opera Omnia, ed. J. L. Heiberg e H. Menge, 9 vols. (1883–1916), incluindo Elementa, Libri I–XIII, Elementorum, Data, Optica e Phaenomena.
A tradução inglesa canónica de Elementos é de T. L. Heath, The Thirteen Books of Euclid’s Elements, 3 vol., (1908; 2.ª ed. revista com aditamentos: 1926). Uma restauração de Das Divisões, de Euclides, é da autoria de Raymond Clare Archibald, Euclid’s Book on Divisions of Figures (1915). Os contributos de Euclides para a astronomia estão disponíveis numa tradução inglesa recente, comentada, de J. L. Berggren e R.S.D. Thomas, Euclid’s Phaenomena (1996).