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Crítica
9 de Janeiro de 2009   Ética

Eudemonia

Scott Carson
Tradução de Desidério Murcho

Estritamente falando, o termo “eudemonia” é uma transliteração da palavra grega para prosperidade, boa fortuna, riqueza ou felicidade. Em contextos filosóficos a palavra grega “eudaimonia” tem sido tradicionalmente traduzida simplesmente por “felicidade”, mas muitos estudiosos e tradutores contemporâneos tentaram evitar esta interpretação por poder sugerir conotações que nada ajudam no espírito do leitor acrítico. (Por exemplo, não se refere a um estado emotivo, nem é coextensional com a concepção utilitarista de felicidade, apesar de ambas as noções poderem, em alguns pensadores, contar como aspectos da eudemonia.) Dado que a palavra é composta pelo prefixo eu- (bem) e pelo substantivo “daimon” (espírito), tem-se proposto em alternativa expressões como “viver bem” ou “florescimento”. Mas o consenso aparente é que “felicidade” é adequado se o termo for apropriadamente compreendido no contexto filosófico da antiguidade.

Aristóteles escreveu que todos concordam que a eudemonia é o bem principal para os seres humanos, mas que há diferenças consideráveis de opinião quanto ao que consiste a eudemonia (Ética a Nicómaco I.2, 1095a15-30). Na imagem de Sócrates apresentada por Platão nos primeiros diálogos socráticos, o protagonista adopta a perspectiva de que a eudemonia consiste em viver uma vida justa, o que exige conhecimento, na forma de uma espécie de previdência (especialmente no Górgias). Nas obras posteriores (por exemplo, na República), Platão continuou a argumentar que a virtude é suficiente para a felicidade, e que os bens amorais não trazem eudemonia (a chamada tese da suficiência).

Como é bem sabido, Aristóteles concordava que a virtude é uma condição necessária para a eudemonia, mas sustentava que não é suficiente (a chamada tese da necessidade). Do seu ponto de vista, a “eudemonia” aplica-se mais apropriadamente não a qualquer momento particular da vida de uma pessoa, mas a uma vida inteira que tenha sido bem vivida. Apesar de a virtude ser necessária para uma vida dessas, Aristóteles argumentou que certos bens amorais podem contribuir para a eudemonia ou impedi-la pela sua ausência. Há alguma controvérsia entre os estudiosos quanto a saber como acabou Aristóteles por caracterizar a vida feliz, a vida marcada pela eudemonia. Ao longo dos primeiros nove livros da Ética a Nicómaco, Aristóteles parece pensar que uma vida feliz é a que envolve centralmente a actividade cívica. As virtudes que caracterizam a pessoa feliz são em si definidas como estados da alma que resultam de certas interacções que têm lugar nas relações sociais. Mas no livro X, o argumento de Aristóteles é aparentemente que uma vida de contemplação do teórico (theoria) é o género mais feliz de vida, podendo até a vida cívica impedir este género de actividade (apesar de a vida privada de contemplação parecer pressupor a vida pública, dado que sem a vida pública para produzir bens e serviços, o filósofo é incapaz de viver em isolamento).

Onde Sócrates, Platão e Aristóteles concordam é na natureza objectiva da eudemonia, o que os afasta nitidamente da moralidade popular do seu tempo. Numa famosa passagem do Górgias (468e-467a), Sócrates choca Pólo argumentando que quem pratica o mal fica na verdade a perder relativamente a quem ele prejudicou, e que quem pratica o mal está condenado a ser infeliz até ser punido. A vítima do mal, em contraste, pode ser feliz ainda que seja vítima do maior sofrimento físico às mãos de quem pratica o mal. O Górgias conclui com um mito sobre o destino da alma humana depois da morte que torna claro que só o estado da alma, e não o estado físico do corpo, determina se alguém é feliz ou infeliz.

Apesar de Aristóteles não concordar que a felicidade não poderia diminuir de modo algum em virtude do sofrimento físico, não era por pensar que os sentires são decisivos para a felicidade. Pelo contrário, Aristóteles argumentou a favor de um padrão objectivo da felicidade humana, com base no seu realismo metafísico. Na Ética a Nicómaco (I.7), Aristóteles argumentou que a excelência humana deve ser interpretada em termos do que comummente caracteriza a vida humana (o chamado argumento funcional ou ergon). Este argumento funda-se claramente na sua doutrina da causalidade, segundo a qual qualquer membro de uma categoria natural se caracteriza por quatro causas: formal, material, eficiente e final. A causa final é inseparável da formal: ser uma certa categoria de coisa é apenas funcionar de um certo modo, e ter um certo género de função é apenas ser uma certa categoria de coisa. A função humana (ergon) encontra-se na actividade das nossas faculdades racionais, em particular a sabedoria prática (phronesis) e a ilustração (sofia). Dado que a actividade destas duas faculdades não é regulada por considerações subjectivas mas pelas restrições formais da própria razão, a excelência humana está determinada objectivamente: viver bem é viver uma vida caracterizada pelo uso excelente das nossas faculdades racionais, e esta excelência caracteriza-se pela aplicação bem-sucedida de regras gerais da vida virtuosa a situações particulares que exigem deliberação moral.

Aristóteles rejeitou perspectivas alternativas da felicidade por não estarem à altura do seu ideal (Ética a Nicómaco I.5, 1095b14–1096a10). A vida de honra política, por exemplo, reduz a felicidade ao grau de estima que os outros têm por nós, desligando assim a felicidade da operação da nossa própria função apropriada. Uma perspectiva mais popular equacionava a felicidade com o prazer, uma perspectiva que Aristóteles excluiu rapidamente por não distinguir a categoria natural dos seres humanos de outros animais que também sentem prazer e que nele se baseiam como força motivadora na sua luta diária pela sobrevivência. Para Aristóteles, como antes para Platão, a perspectiva hedonista negligencia a função essencial da racionalidade humana: regular e controlar os apetites e desejos humanos, canalizando-os para actividades que, a longo prazo, melhor assegurem o florescimento humano. Na verdade, é precisamente estas regulação e controlo que distinguem a sociedade humana de todas as outras formas de vida, de modo que há uma conexão íntima entre a excelência humana e a vida política. Esta conexão está sujeita a uma certa tensão, contudo, dado que tanto Platão, na República, como Aristóteles, na sua vida de contemplação teórica, tornam a ordem social uma condição necessária da excelência humana ao mesmo tempo que argumentam que a felicidade pessoal envolve num certo sentido que nos desliguemos da comunidade em geral.

Os estóicos concordavam que a felicidade é o nosso fim último, pelo qual fazemos tudo o resto, e definiam-na como uma vida consistentemente vivida de acordo com a natureza. Não queriam dizer apenas com isto a natureza humana, mas a natureza do universo inteiro, do qual somos parte, e a ordem racional que ambos exibem. A razão prática exige assim uma compreensão do mundo e do nosso lugar nele, juntamente com a nossa aceitação resoluta desse papel. Seguir a natureza desta maneira é uma vida de virtude e tem como resultado um “bom fluir da vida”, com paz e tranquilidade.

Os epicuristas também tomavam a eudemonia como o fim para os seres humanos, mas definiam-na em termos de prazer. Contudo, muitas das coisas que nos dão prazer têm consequências desagradáveis, que no cômputo geral perturbam a nossa vida, não nos fornecendo portanto a libertação das preocupações (ataraxia) nem a ausência de dor física (aponia) que caracterizam a verdadeira felicidade. Estes traços, pensavam, têm de ser assegurados pelo exercício da moderação, prudência e outras virtudes, que contudo não são valorizadas por si, mas apenas como meios instrumentais para uma vida de prazer e felicidade.

Esta forma de eudemonismo hedonista contrasta com o hedonismo dos cirenaicos, a principal excepção à afirmação de Aristóteles de que todos concordam que o mais elevado bem é a eudemonia. Versões incompletas do Aristipo tardio sugerem que o seu hedonismo envolvia dar livre vazão aos desejos sensuais (Xenofonte, Memorabilia 11.1.1–34), de modo a ser sempre capaz de desfrutar do momento, deitando mão ao que estava à mão (Diógenes Laércio 11.66). Mais tarde, os cirenaicos aperfeiçoaram esta posição de modo a procurar desfrutar por completo do prazer sensual sem sacrificar a autonomia nem a racionalidade. A sua concepção de prazer salientava os prazeres corporais, entendidos como um tipo de movimento (kinesis) ou o estado sobreveniente da alma (pathos). Por encararem tais estados transitórios como o mais elevado bem, os cirenaicos recusavam a perspectiva de que a eudemonia, um tipo de realização alargado e de longa duração, fosse o fim que devesse reger todas as nossas escolhas.

Scott Carson
Encyclopedia of Philosophy, ed. Donald M. Borchert (Macmillan Reference, 2006), Vol. X, pp. 10–12.

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ISSN 1749-8457