Este trabalho trata de um aspecto relativo ao debate sobre a legalização da eutanásia voluntária: o uso de argumentos do tipo declive escorregadio com o objetivo se de opor à legalização da prática. Minha intenção principal é a de defender que um argumento desse tipo usado contra a legalização, argumento este presente na obra do filósofo David S. Oderberg (2009), não é persuasivo. Não se trata, no entanto, do único argumento dele contra a legalização; pode ser que ele esteja certo quando afirma que não devemos legalizar a prática. Apenas não acho que o filósofo é bem-sucedido em favor disso com o argumento aqui tratado.
A razão pela qual o argumento não é persuasivo é o fato de ter uma premissa falsa, o que compromete sua solidez e é motivo para rejeitá-lo. Tal premissa é a seguinte: se legalizarmos a eutanásia voluntária utilizando como base a autonomia, tal como Peter Singer (2002) a entende, não teremos razões para rejeitar a eutanásia involuntária. Penso que é possível aceitar a eutanásia voluntária e rejeitar a contraparte involuntária tendo como base precisamente o que Oderberg pensa não oferecer razões para tal.
Minha intenção secundária é a de avaliar um argumento semelhante, oferecido por John Keown (2004). No entanto, diferentemente do declive escorregadio de Oderberg, que é puramente lógico, o argumento ora considerado será empírico. Este argumento sustenta que há indícios empíricos que apontam para o aumento de casos de eutanásia não voluntária ativa tão logo se aceita como legal a eutanásia voluntária ativa. Para comprovar isso, a experiência mais citada é a da Holanda. Como se sabe, em 1984 esse país europeu legalizou a eutanásia voluntária ativa em pacientes lúcidos e dispostos a morrer desde que seguidas regras rigorosas.1 As razões que pretendo apresentar sugerem que não há indício para pensar que a legalização é um passo em direção ao declive. Isso, no entanto, não exclui a possibilidade de eu estar errado tanto por ignorar outros dados quanto por interpretar mal os que uso.
Penso que a razão pela qual este artigo pode ser iluminante é que, tipicamente, quando são sugeridas mudanças legais no que diz respeito ao tratamento de problemas morais controversos, alguém surge munido de um argumento do tipo declive escorregadio para opor-se à mudança. Além do mais, tal tipo de argumento tem se mostrado influente.2 De maneira geral, o opositor afirma que se dermos o primeiro passo ao legalizarmos uma determinada prática, acabaremos legalizando práticas que são obviamente inaceitáveis do ponto de vista moral, pelo que é melhor não dar o primeiro passo. Pessoas contrárias à legalização do aborto poderiam argumentar, por exemplo, que se permitirmos por vias legais a prática de matar seres humanos em estágio inicial, perderemos progressivamente o respeito pela vida humana e, por fim, acabaremos por concordar com ações como o descarte de bebês por razões estéticas.
Procederei da seguinte forma: apresentarei o que são eutanásia voluntária, eutanásia não voluntária e eutanásia involuntária ativas e passivas. Após isso, apresentarei outra rápida distinção, que será entre os modos lógico e empírico do argumento do tipo declive escorregadio. A isso se seguirão uma análise do argumento de Oderberg e duas objeções a ele. Logo após, haverá uma breve exposição da posição de Singer e a rejeição do argumento de Oderberg. Por fim, apresentarei o argumento de Keown e a ele oferecerei objeções. Essas objeções serão baseadas principalmente em dados relativos à Holanda. Também serão usados dados relativos ao Reino Unido, Bélgica, Dinamarca, Itália, Holanda, Suécia e Suíça. O objetivo disso será mostrar o que argumento empírico segundo o qual a legalização da eutanásia voluntária ativa eleva as incidências da modalidade não voluntária enfrenta algumas dificuldades.
O termo “eutanásia” é atualmente usado para designar o ato de matar ou deixar morrer em prol do bem daquele que é morto ou morre. As expressões “morte compassiva” e “morte por misericórdia” também são utilizadas para se referir à prática. Na maioria dos casos, a eutanásia é levada a cabo em hospitais. Assim, pacientes terminais sofrendo de fortes dores são os candidatos mais óbvios a morrerem por meio da eutanásia. No entanto, também matam ou deixam morrer recém-nascidos com doenças muito severas e pessoas em estado vegetativo persistente.
As ações de matar e deixar morrer distinguem dois tipos de eutanásia: ativa e passiva. A eutanásia ativa é aquela na qual se toma uma atitude positiva para que a morte ocorra. Dessa forma, um médico que aplica uma injeção letal ao paciente estará praticando a modalidade ativa da eutanásia. A eutanásia passiva, por sua vez, é aquela na qual se deixa o paciente morrer sem que se tome qualquer atitude positiva para matá-lo. Geralmente, isso se dá com a recusa de tratamento.
Além da distinção entre matar e deixar morrer, é também importante distinguir entre eutanásia voluntária, eutanásia não voluntária e eutanásia involuntária. A primeira diz respeito aos casos em que a pessoa é morta por expressão de sua própria vontade. Assim, um paciente terminal que faz um pedido explícito aos médicos para que o matem ou o deixem morrer é, caso os médicos atendam ao pedido, um caso de eutanásia voluntária. Os filósofos também consideram como sendo voluntários os casos de indivíduos que manifestam antecipadamente o desejo de serem mortos caso cheguem a um estado no qual é impossível fazer o pedido. Uma diretiva desse tipo pode ser dada, por exemplo, por um paciente com uma doença degenerativa como o mal de Alzheimer. Detectado com essa doença, ele pode dizer algo como “desejo que se ponha fim à minha vida tão logo eu perca minhas capacidades intelectuais”.
A eutanásia não voluntária, por sua vez, consiste em matar ou deixar morrer um indivíduo que jamais foi autoconsciente e que, dessa forma, nunca pôde fazer qualquer juízo racional sobre a vontade de viver ou morrer. Além disso, também são voluntários os casos em que se mata ou deixa morrer um indivíduo que já foi autoconsciente e capaz de deliberar sobre a vontade de viver ou morrer mas que, por algum motivo, nunca expressou qualquer preferência quando competente para tal. (McMahan, 2011). Portanto, tanto um bebê que nasce sem cérebro e lhe é recusado tratamento vital quanto a injeção letal a uma vítima de acidente automobilístico em estado vegetativo persistente da qual não se conhece qualquer desejo anterior sobre a vida ou a morte são casos de eutanásia não voluntária.
Por fim, a eutanásia involuntária consiste em matar ou deixar morrer um indivíduo mesmo que a vontade dele seja a de continuar a viver. Também recebe o nome “eutanásia involuntária” os casos em que, sem consultá-lo antes, se mata ou deixa morrer um indivíduo que tem competência para deliberar racionalmente se quer viver ou morrer. Um paciente que manifestou o desejo de continuar vivendo mas que é morto pela equipe médica sob o argumento de que suas dores são, de acordo com os médicos, insuportáveis, é um caso de eutanásia involuntária. Tal como também esta será involuntária na ocasião em que um médico desejoso de matar o paciente, a quem julga estar sofrendo demais, o injeta uma solução letal sem consultá-lo antes.
É importante distinguir entre homicídio e eutanásia involuntária: o que as distingue é o fato de a eutanásia involuntária ser um dos modos de matar ou deixar morrer em prol do bem daquele que morre, como o próprio termo “eutanásia” deixa claro. Mesmo quando ativa, trata-se ainda de morte por misericórdia. Isso não é verdadeiro em um caso de homicídio, que é o ato de matar intencionalmente por qualquer outra razão, como a carteira de quem é morto, ou sem razão alguma.
Existem seis diferentes combinações entre os caráteres ativo e passivo da eutanásia e os aspectos relativos à voluntariedade. Podemos ter, por exemplo, tanto casos de eutanásia voluntária ativa quanto de eutanásia voluntária passiva. No entanto, o que querem normalmente os pacientes desejosos de morrer é morrer rápido, pelo que têm preferência pelo modo ativo. Da mesma forma, podemos ter casos de eutanásia não voluntária ativa ou passiva. Atualmente, o mais comum é que as eutanásias não voluntárias sejam realizadas de forma passiva, como ocorreu no caso da norte-americana Terri Schiavo. Em 2005, após longa luta judicial entre os pais e o marido dela, a equipe médica a deixou morrer. Schiavo, na altura, vivia em estado vegetativo persistente e tinha atrofia cerebral. Os casos de eutanásia involuntária não são tão comuns, porque bastante mais difíceis de justificar. No entanto, pode-se matar ou deixar morrer alguém contra a vontade dessa pessoa ou sem consultá-la.
Tendo clarificado os casos possíveis de eutanásia, podemos, a partir da próxima seção, distinguir os tipos lógico e empírico do argumento chamado “declive escorregadio”. Oderberg, como vimos, lança mão de um argumento desse tipo como uma razão para se opor à legalização da eutanásia voluntária. Para ele, se a legalização da eutanásia voluntária for feita na base citada, teremos, por coerência, de aceitar o modo involuntário. O filósofo tem, de saída, dois trunfos: o primeiro é que embora possamos, pelo menos em princípio, aceitar o modo não voluntário como desdobramento imediato de se aceitar a eutanásia voluntária, temos mais dificuldade em aceitar a modalidade involuntária. Afinal, não queremos que médicos nos matem contra ou ignorando o nosso consentimento – fato que pode nos convencer a recusar dar o passo inicial, que é a legalização da eutanásia voluntária. O segundo é que o argumento de Oderberg não depende da legalização da modalidade voluntária ser moralmente permissível ou não. Para os fins do argumento, ele até poderia conceder que isso é, de fato, permissível. Parte da força desse argumento consiste em afirmar que, seja a legalização permissível ou não, o resultado de aceitá-la será mau.
O argumento do tipo declive escorregadio lógico aqui em causa é oferecido da seguinte maneira: A e B são práticas significativamente diferentes. Sejam elas o aborto e o assassinato de adultos inocentes. Em casos assim, não parece ser difícil apresentar justificações para aceitar a legalização de uma delas e rejeitar a da outra. O proponente do argumento do declive escorregadio afirmará, no entanto, que há uma ilusão de que podemos coerentemente aceitar A e rejeitar B. Assim é porque as mesmas justificações que usamos para aceitar A podem também ser usadas para o aceite de B. Teríamos, por coerência, de aceitar também B caso A fosse aceita, coisa que é muito má, já que B é obviamente inaceitável. Já que é assim, conclui o proponente, é melhor não dar sequer o passo de legalizar a ação A. O termo “lógico” é aqui usado simplesmente para designar aquilo a que uma pessoa teria coerentemente de se comprometer caso aceitasse tal gênero de argumento.
Esse é precisamente o gênero de coisa que Oderberg faz. Ele afirma é que as mesmas razões propostas por filósofos como Singer para legalizarmos a eutanásia voluntária podem ser igualmente usadas para legalizarmos a contraparte involuntária. Isso significa que seríamos incoerentes se usássemos tais razões para legalizar a eutanásia voluntária e as rejeitássemos quando chamados a legalizar a contraparte involuntária. O melhor, portanto, é não dar o primeiro passo, que é legalizar a eutanásia voluntária usando as referidas razões.
O argumento do declive escorregadio empírico tem, por sua vez, sido oferecido como o que se segue: se permitirmos o estado de coisas A, o estado de coisas B torna-se plausível. Dizemos que o argumento é empírico porque o que o seu proponente precisa para nos convencer de que estamos na beirada de um declive escorregadio em direção a B não é a exigência de coerência em nossas posições, mas sim de indícios empíricos. Assim, quem quiser usar esse tipo de argumento para se opor à legalidade da eutanásia voluntária terá de apresentar indícios de que há pelo menos uma correlação entre a aceitação dessa prática e a maior incidência estatística de algum dos outros modos. Isso poderia ser feito, por exemplo, mostrando indícios de que, muito embora não tenha havido qualquer mudança social significativa na sociedade, tão logo se aceitou a modalidade voluntária houve um aumento de qualquer uma das outras. A ideia aqui é que já que a sociedade, em seus aspectos mais relevantes, permaneceu mais ou menos igual, a melhor explicação para o aumento estatístico dos tipos indesejados de eutanásia é a legalização do modo voluntário.
De forma menos decisiva, pode-se também mostrar que o aspecto psicológico da população se altera em favor da aceitação ou da eutanásia não voluntária ou da eutanásia involuntária tão logo aceitamos como legal a contraparte voluntária, o que pode ser feito recorrendo a uma pesquisa de opinião adequadamente realizada. Portanto, o que é preciso aqui para nos recomendar a não dar o primeiro passo é ter indícios empíricos de que nos encontramos à beira do declive.
Oferecido o esclarecimento sobre o que são argumentos do tipo declive escorregadio, podemos agora avaliar sua plausibilidade dentro dos limites propostos. As seções seguintes serão dedicadas a avaliar e rejeitar o argumento de Oderberg, que faz uso da variante lógica do argumento.
O argumento de Oderberg é o seguinte: se legalizarmos a eutanásia voluntária utilizando como base moral a autonomia, tal como Peter Singer a entende, não teremos razões lógicas para rejeitar a legalização da modalidade involuntária. Assim, a legalização nessa base acarretará o problema de não termos razões lógicas para recusar a esta última. Oderberg não formula claramente tal argumento da forma como eu o apresentei. No entanto, penso que ele pode ser formulado a partir da seguinte passagem:
“Ao contrário de sua contraparte voluntária, a eutanásia involuntária é tipicamente considerada obviamente incorreta do ponto de vista moral, porque se confere um grande peso ético à autonomia; assim, da mesma maneira que se considera que o facto de a pessoa consentir em ser morta legitima o ato de matar, assim também a suspensão desse consentimento (ou ignorância dos desejos da pessoa quando havia a possibilidade de ela ser consultada) torna ilegítimo o mesmo acto. Contudo, como se mostrará adiante, o conceito de autonomia apresentado pelos defensores da eutanásia é eticamente irrelevante para o debate, e ambos os lados estão implicitamente de acordo com isso. As verdadeiras razões para se apoiar a eutanásia não têm absolutamente nada a ver com a autonomia e são comuns à prática em todas as suas formas”. (Oderberg 2009: 73; itálico no original)
O que Oderberg quer dizer é que a razão oferecida pelos defensores da eutanásia para se apoiar a modalidade voluntária e se rejeitar a modalidade involuntária não é suficiente para que aceitemos a primeira e rejeitemos a segunda. Na verdade, essa razão é irrelevante. A autonomia, assim, não é de grande ajuda para se rejeitar a modalidade involuntária. Além disso, tudo o mais que consequencialistas como Singer dizem para apoiar a eutanásia, tal como avaliações sobre a qualidade de vida de um paciente, poderá ser usado para justificar qualquer das modalidades. Ou seja, se aceitarmos a eutanásia voluntária, teremos também de aceitar a involuntária.
Como vemos, trata-se do declive escorregadio lógico. Oderberg pretende que, uma vez derrubado o papel da autonomia, todas as outras razões que apoiam a legalização da eutanásia voluntária são também razões para apoiar a contraparte involuntária. Dessa forma, um eventual defensor da primeira e opositor da segunda poderia ser acusado de incoerência, já que uma vez que suas razões se aplicam igualmente às duas modalidades, não há qualquer justificação para aceitar uma e rejeitar outra. Terá Oderberg razão?
Antes de prosseguirmos, é bom ressaltar quer Oderberg rejeita o modo como Singer entende a autonomia, que é por “a capacidade de escolher, tomar decisões e agir de acordo com elas”. (Singer 2002: 109) Oderberg pensa que a autonomia é poder agir livremente desde que dentro dos limites impostos pelas alternativas moralmente legítimas, que, por sua vez, são subordinadas aos bens humanos, tal como a promoção da vida humana (2009: 81). É por essa razão que ele não considera que matar-se é uma manifestação da autonomia, uma vez que isso viola um bem humano. Uma ação dessa natureza seria a manifestação de algo que ele chama “soberania da vontade”. Dadas essas opiniões, penso que o que Oderberg entende como autonomia é suficiente para bloquear não apenas a eutanásia involuntária, mas qualquer tipo de eutanásia.
Para nos convencer que a concepção de Singer sobre a autonomia é irrelevante, Oderberg nos convida a fazer um experimento mental como o seguinte: suponha que apareça na rua uma pessoa qualquer a pedir que o leitor a mate (2009: 80, 82). De acordo com Oderberg, dificilmente alguém aceitaria matar essa pessoa. O procedimento que adotaríamos seria o de ponderar que a pessoa em questão não tem qualquer razão suficientemente forte que justifique um ato tão extremo.
Dessa forma, pergunta Oderberg, “por que motivo é relevante avaliar as razões do doente?” (2009: 82, itálico no original) Ele mesmo responde que “o facto de tal ser relevante é uma indicação de que não é a componente voluntária que tem peso moral; o que tem peso moral são as razões que conduzem à infração do direito à vida”. (2009: 82, itálico no original) Assim, conclui ele, “dá a impressão, pois, de que todas as partes do debate são forçadas a aceitar que não existe, pura e simplesmente, o direito de se fazer com a própria vida o que bem se entender”. (2009: 82) É importante esclarecer que o termo “razões”, aqui, refere-se não a razões como o que o paciente quer, mas sim a razões como, por exemplo, o estado de saúde do paciente.
Pode-se tirar interessantes consequências disso. Se a decisão tomada foi a de não matar o transeunte, assim foi porque o leitor não levou em conta a autonomia dele e também porque julgou que não havia razões suficientemente boas que fizessem com que a vida lhe fosse tirada. Ou seja, o que realmente pesou na decisão de não matá-lo foi não haver boas razões, digamos, físicas, para fazê-lo. Afinal, ele não estava sofrendo, ao que parece, de qualquer dor insuportável ou doença degenerativa grave. Mas se o que contou aqui para a decisão do leitor foi o fato de inexistirem tais razões para matá-lo, por que deveria se levar em conta a decisão autônoma de um doente terminal desejoso de continuar vivendo quando temos excelentes razões para matá-lo?
A partir desse exemplo, Oderberg pensa que não é o fato de a eutanásia ser voluntária ou involuntária que é relevante para o raciocínio moral – isto é, não é a componente da ação que comporta a autonomia que é importante. O que conta são razões de outra natureza em favor de praticar a eutanásia ou deixar de fazê-lo. O exemplo mostra um caso no qual a autonomia do indivíduo foi completamente dada como irrelevante presumivelmente para o seu bem. O problema, contudo, é que podemos inverter a situação e desconsiderar a autonomia de outro indivíduo não para que ele viva, mas sim para que morra. Portanto, já que a autonomia não passa de um adorno ético — não é relevante no raciocínio moral relativo à eutanásia -, temos de aceitar tanto a eutanásia voluntária quanto a involuntária. A única diferença entre ambas seria a de que, pelo menos no caso da contraparte voluntária, a morte coincidiria com o desejo de quem é morto. Isso pode até ser um acaso feliz, mas está longe de ser moralmente relevante, afinal, não é isso que realmente consideramos.
Oderberg parece entender o seguinte: o fato de uma ação tomada divergir daquela que seria requerida pela autonomia de um agente moral é condição suficiente para que a autonomia desse agente não tenha qualquer peso no raciocínio moral quando da ação. Portanto, o leitor não matou o transeunte que queria ser morto assim o fez em parte porque sequer levou em conta a autonomia dele. Penso que Oderberg está a exagerar o papel da autonomia no raciocínio moral com o objetivo de depois descartá-la, pois é defensável que o peso da autonomia no raciocínio moral é relativo a outras razões, e não absoluto. Isso significa que o peso atribuído à autonomia no raciocínio moral pode ser suplantado por outras razões que pesem em favor de agir de modo a contrariar o que seria requerido pela autonomia. Pensar que o peso da autonomia é absoluto é ter de se comprometer com a tese segundo a qual nenhuma razão pode suplantá-la no raciocínio moral, o que significa que se a ação contrariar a autonomia, esta sequer foi considerada. Se tivesse sido, teríamos de agir segundo o que ela requer, uma vez que tem peso absoluto e as razões para agir de outra forma, por mais numerosas que sejam, não podem suplantá-la. Penso que atribuir peso absoluto à autonomia é implausível.
Vê-se isso mais claramente por meio de um exemplo: A pede a B que este o leve até uma concessionária de veículos porque quer comprar um carro novo. Num caso em que B atende ao pedido, a vontade de A constitui uma razão para levá-lo até o local desejado. Mas o mesmo parece valer quando B recusa o pedido de A. É difícil aceitar que só porque B, em outra situação, não levou A até o local, a razão para levá-lo desapareceu de seu raciocínio moral. Não poderá simplesmente o desejo autônomo de A ter sido suplantado por outras razões?
Assumir um posicionamento como o de Oderberg parece descaracterizar o modo como agimos: embora atribuamos peso à autonomia das pessoas, muitas vezes é o caso de termos razões para tomar um curso de ação diferente daquilo que a autonomia delas exige. O experimento mental que Oderberg propõe não parece mostrar o que ele pensa que mostra.
Tal como está, o experimento mental proposto por Oderberg é enganador. Assim o é porque, ao nos vermos em uma situação daquelas, não iremos matar o transeunte em grande parte porque não queremos ser acusados de assassinato e também porque matar uma pessoa é, presumivelmente, uma experiência desagradável. Isso sem mencionar a possibilidade apavorante de o transeunte estar refém de algum sádico. Dificilmente chegaremos ao ponto de fazer qualquer juízo acerca da autonomia daquele indivíduo, seja ela relevante ou não. Penso que de fato agiremos em desacordo com a autonomia do transeunte, mas não por considerá-la irrelevante, mas sim porque teremos em conta muitas outras coisas mais importantes. O que Oderberg deveria mostrar é que ao nos depararmos com a autonomia do indivíduo, não atribuiríamos a ela qualquer peso no raciocínio moral, ou seja, não a levaríamos em conta.
Penso que um experimento mental melhor seria um no qual pudéssemos remover componentes como o medo de ser acusado e o fato de ser desagradável matar. Aqui, já não é mais tão óbvio que não ajudaríamos a pessoa a morrer, quanto mais que não levaríamos sua autonomia em conta.
Suponha o leitor que haja em uma cápsula espacial defeituosa um astronauta que, por qualquer razão, está impossibilitado de tentar se matar. Além disso, não há qualquer possibilidade de resgatá-lo, pelo que ele terá de ficar lá indefinidamente. Suponha também que, após dias pensando sobre isso, ele passe a manifestar repetidamente o desejo de ser morto por meio de um gás letal de rápido efeito que pode ser acionado somente da Terra. Afinal de contas, além de não ser agradável viver lá, ele não tem qualquer parente, amigo ou dependente com o qual ele possa passar o tempo a conversar por rádio.
Nesse caso, em que retiramos todos os outros fatores, a única coisa a ser levada em conta é a autonomia do astronauta. E a melhor forma de ver que a levaríamos em conta na hora de agir é nos colocarmos no lugar dele. Certamente, naquela situação, consideraríamos bastante importante o fato de a nossa autonomia ser levada em conta quando da decisão das pessoas sobre apertar o botão. Não é surpresa que, agora no lugar daqueles que têm de decidir sobre apertar o botão, consideraríamos importante fazer o mesmo com a autonomia do astronauta. Afinal, seria o que gostaríamos que fosse feito a nós caso estivéssemos na situação do dele. E, no exemplo, levar a autonomia do astronauta em conta significa ter uma razão para matá-lo.
Oderberg poderia ainda responder que ao apertarmos o botão, estamos a não levar a autonomia dele em conta. Afinal, um pedido absurdo como esse não pode ser visto como um exemplo autêntico de autonomia, pois quem iria desejar a morte? Pode até ser o caso, mas cabe a Oderberg mostrar que o é. Em princípio, as pessoas podem simplesmente deliberar racionalmente e decidir por morrer. O fato de dada preferência nos parecer absurda não nos permite concluir que ela não é fruto do raciocínio autônomo.
Vimos na primeira objeção que Oderberg não consegue mostrar a irrelevância da autonomia com o experimento mental proposto. Isso é assim porque é possível agirmos contrariamente à autonomia de alguém a tendo em conta. A segunda objeção estabelece que o experimento de Oderberg não é bem concebido. Se fizermos um experimento adequado, o papel da autonomia, sendo ela não muito mais do que termos nossas escolhas autônomas consideradas moralmente, ganha relevo. Valorizamos o fato de levarem a nossa em conta e atribuímos importância à dos outros. E, por fim, não acho que temos razões para pensar que o alcance da autonomia dos indivíduos não inclui decisões sobre vida e morte. O próximo passo será o de apresentar brevemente o papel da autonomia para Singer. E é por fazer isso que veremos que a autonomia tem um papel relevante na distinção moral entre os modos voluntário e involuntário de eutanásia. A próxima seção é, assim, a última etapa para rejeitarmos o argumento de Oderberg.
Antes disso, no entanto, é bom deixar algo claro. Como vimos, a principal diferença entre a eutanásia voluntária e a involuntária é como se considera o desejo de quem será morto, fato que tem muito a ver com o respeito à autonomia. Como tentarei mostrar, o respeito à autonomia terá um papel moral a desempenhar. Ela será um elemento ao qual poderemos recorrer para justificar a eutanásia voluntária e não justificar a contraparte involuntária. Isso, no entanto, não significa que a posição de Singer implicará ser sempre um erro praticar a eutanásia involuntária. O que quero estabelecer é que o respeito pela autonomia marca uma diferença moralmente significativa entre ambos os modos de eutanásia, uma vez que a autonomia é geradora de preferências. Preferências estas que terão, como veremos, papel importante.
Antes de qualquer coisa, é necessário deixar claro que Singer é um utilitarista preferencial. Todo utilitarista é um consequencialista, no sentido de que a atribuição de valor moral a uma dada ação dependerá do estado de coisas que a ação gerar – isto é, será uma função das consequências da ação. Para Singer, o estado de coisas maximamente bom será aquele no qual o maior número de preferências por parte do maior número possível de pessoas for satisfeito. Preferências são coisas do gênero “sentir prazer”, “ter uma moradia decente”, “ver-se fora de uma situação desagradável”, etc. Devemos, tanto quanto possível, satisfazer as preferências das pessoas.
Singer não pretende que calculemos a todo instante as consequências de cada ação que tomarmos. Tal seria contraproducente: “na vida real, em geral não somos capazes de prever todas as complexidades das nossas escolhas. Simplesmente não é prático tentar calcular, com antecedência, todas as consequências de qualquer opção que fazemos”. (2002: 102) O filósofo apenas quer que adotemos a sugestão de R.M. Hare acerca dos níveis crítico e intuitivo do raciocínio moral. O nível crítico é aquele no qual procuramos, por meio do raciocínio intenso, prever exatamente quais serão as consequências de uma determinada ação e, feito o raciocínio, agir de acordo com ele. Como vimos, isso é contraproducente. Podemos, assim, atuar no nível intuitivo do raciocínio moral:
“Pode ser que, a longo prazo, cheguemos a melhores resultados – uma maior felicidade geral – se instarmos com as pessoas para que não julguem cada ato individual com o critério de utilidade, mas que, em vez disso, pensem em termos de princípios mais amplos, que venham abranger todas, ou virtualmente todas, as situações com as quais possivelmente venham a deparar-se”. (Singer 2002: 102)
O que Singer quer dizer é que temos mais chances de gerar melhor resultados com as nossas ações seguindo princípios éticos gerais. A afirmação segundo a qual a correção moral de uma ação depende das consequências que ela gera não exige que façamos intrincados cálculos antes de agir. No entanto, muitas vezes podemos não agir de acordo com o nível intuitivo do raciocínio moral. Podem haver casos excepcionais em que o raciocínio crítico se impõe. Um exemplo famoso: suponha que o leitor, munido de uma arma, veja vários prisioneiros indo para um lugar onde serão torturados por várias semanas e por fim mortos. Infelizmente, não há como matar os algozes, pois eles controlam os prisioneiros escondidos e de uma distância segura. Embora “não matar sem consentimento” possa ser uma regra geral referendada pelo raciocínio moral intuitivo, o exemplo torna claro que violar tal regra geral em certos casos gera melhores resultados. Afinal, o leitor irá poupar os prisioneiros de um futuro horrível se matá-los no caminho.
Voltemos ao aspecto preferencial do utilitarismo de Singer:
“De acordo com o utilitarismo preferencial, uma ação contrária à preferencia de qualquer ser é errada – a menos que essa preferência seja superada, em termos de seu valor, pelas preferências contrárias. Matar uma pessoa que prefere continuar vivendo é, portanto, errado, sendo iguais as demais condições”.3 (2002: 104)
Vimos que o que distingue a eutanásia voluntária da involuntária é o modo como se considera a preferência das pessoas. A manifestação da preferência por morrer daqueles que assim o querem é, nas ocasiões em que a deliberação está livre de constrangimentos, uma expressão da autonomia. Ao se respeitar uma preferência desse tipo, respeita-se também a autonomia do indivíduo que a manifestou. Dessa forma, a satisfação dessa preferência é, todos os outros fatores permanecendo constantes, o que deve ser feito. Isso também se aplica àqueles casos em que a preferência é por continuar vivendo, e não por morrer. Matar uma pessoa por meio da eutanásia involuntária violaria uma preferência relevante. Como vemos, existe uma boa razão para que se aceite a modalidade voluntária e se rejeite a contraparte involuntária: a preferência da pessoa. Logo, não penso que as razões que temos para aceitar uma modalidade são as mesmas para se aceitar a outra. Antes, levar em conta a preferência das pessoas submetidas à ação pode servir, ao mesmo tempo, como razão em favor de que se aceite a primeira e não a segunda. Além disso, a distinção proposta por Hare nos permite tornar esse modo de proceder em uma regra geral intuitiva a ser desconsiderada só nos casos em que é óbvio que violar a preferência das pessoas irá gerar melhores resultados.
Presumivelmente, Oderberg aceita que se for o caso de Singer conseguir fornecer razões para aceitar um modo de eutanásia e rejeitar o outro, o declive escorregadio estará bloqueado. Como vimos, ele pensa que a antecedente dessa condicional é falsa: não é possível extrair de Singer razões para tal, pelo que a condicional seria apenas vacuamente verdadeira. Procurei argumentar que a antecedente é verdadeira. Sendo ela verdadeira, por um modus ponens Oderberg terá de aceitar que o declive escorregadio está bloqueado pelas razões aqui apresentadas. Dessa forma, se o declive escorregadio está bloqueado, a premissa condicional do argumento de Oderberg vista ao longo do texto é falsa, uma vez que ter o declive escorregadio bloqueado se trata precisamente de aceitar as posições de Singer e ter razões para rejeitar a legalização da eutanásia involuntária, o que é exatamente a negação da condicional presente no argumento dele. Assim sendo, não acho que a legalização da eutanásia voluntária acarretará em um declive escorregadio do tipo lógico.
De acordo com John Keown, “o deslize declive abaixo [da eutanásia voluntária ativa até à contraparte não voluntária] resulta da dificuldade prática, se não impossibilidade, de conceber e aplicar salvaguardas para evitar o deslize”. (2004: 80, tradução minha) O que Keown quer dizer é que se a eutanásia voluntária ativa for aceita como legal, será pelo menos difícil barrar a prática da contraparte não voluntária. Ele oferece duas razões em favor disso: 1) as diretrizes que estabelecem as condições nas quais os médicos podem levar a cabo a eutanásia voluntária ativa não são precisas o suficiente4 e 2) a existência da dificuldade em fiscalizar as instâncias dessa prática. (2004: 72–73)
Como exemplo do primeiro problema, Keown cita as condições listadas em 1989 pela presidente do Conselho Holandês de Saúde, Dra. Els Borst. (2004: 85) Uma das condições é a de que o pedido para morrer por parte do paciente tenha de ser feito de modo livre e voluntário. Mas como garantir que um pedido aparentemente livre e voluntário de fato o é? Tomemos o caso de um paciente, que após seus familiares insistirem para que morra, percebe-se como um peso no mundo e, dessa forma, pede aos médicos que o matem. Dificilmente será esse um exemplo de decisão livre e voluntária. O segundo problema pode ser exemplificado a partir do procedimento que segundo Keown os médicos holandeses têm de seguir no caso de praticarem a eutanásia voluntária ativa: darem informações relevantes do caso a um examinador que, por sua vez, fará sua própria investigação. Ocorre que se pode colocar em dúvida um método de investigação no qual se dá muito peso ao depoimento da pessoa que levou a cabo a prática. (2004: 88)
Uma vez que a Holanda legalizou em 1984 a prática da eutanásia voluntária ativa, terá Keown razão em afirmar que o país se encontra em um declive escorregadio? Os dados que Keown usa para nos convencer de que o país se encontra em uma ladeira podem ser encontradas principalmente nos capítulos 9 e 12 da obra aqui referida. O que pretendo a partir de agora é simplesmente oferecer algumas objeções que apontam para a conclusão de que a Holanda não está em um declive.
Embora Keown acredite que os casos de eutanásia não voluntária ativa são mais numerosos após a legalização da contraparte voluntária (2004: 146), não há dados relativos à eutanásia não voluntária antes da contraparte voluntária ter sido aceita pelo estado holandês. (de Wachter, 1989) Dessa forma, Keown não pode fazer muito mais do que afirmar que a proposição de que tais casos sofreram um aumento é mais plausível que sua negação. Em todo o caso, pesquisas realizadas na Holanda nos anos de 1990, 1995 e 2001 informam que as taxas de eutanásia não voluntária permaneceram estáveis durante esse período. No ano de 1990, a taxa foi de 0.8% de todos os óbitos. Em 1995 e 2001, verificou-se uma taxa de 0.7%. (Onwuteaka-Philipsen, 2003) Como afirmou Lewis, “um crescimento significativo nas taxas de eutanásia não voluntária dentro de um curto período de tempo durante o qual a legalização tivesse sido estabelecida sugeriria fortemente que a legalização teve uma influência nas taxas de eutanásia não voluntária”. (2007: 200, tradução minha) Faltam a Keown, no entanto, dados dessa natureza.
Pode-se também pôr em causa a afirmação de Keown segundo a qual o deslize resulta da dificuldade prática de conceber e aplicar salvaguardas que evitem o deslize da eutanásia voluntária ativa para a contraparte não voluntária. As incidências da eutanásia não voluntária seriam, assim, resultado direto desses fatos. No entanto, tal afirmação tem a fragilidade de não levar em conta outras razões que podem igualmente explicar tais incidências. Posner e Vermeule (2006) objetam que muitas vezes a mudança de comportamento relativa a uma prática qualquer pode surgir, por exemplo, a partir da discussão pública. (2006: 671–672)
Não há indícios de que demonstram que a taxa de eutanásia não voluntária ou involuntária é significativamente maior na Holanda do que em outros países europeus. (Griffiths, 2003) Dados de 2003 sobre taxas de “término da vida do paciente sem o pedido explícito deste” mostram que a situação na Holanda não era radicalmente diferente daquela vista em lugares como o Reino Unido, Bélgica, Dinamarca, Itália, Suécia e Suíça. (van der Heide, 2003)
Nenhum dos países citados à época da pesquisa reconhecia a eutanásia voluntária ativa como prática legal, com exceção da Holanda. É, portanto, de se perguntar se de fato a Holanda se encontra em um declive escorregadio, pois os resultados do país não são comparativamente discrepantes. Embora possamos ponderar que em muitas vezes diferenças em resultados como os vistos acima se devem a fatores sociais, religiosos, legais ou quaisquer outros, tal coisa pode servir de argumento também para quem é favorável à prática. Por exemplo, um apoiante poderia argumentar que, uma vez sendo ilegal a prática nos países citados à exceção da Holanda, muitos médicos podem ficar receosos na hora de confessar a verdade nas pesquisas simplesmente por estarem confessando algo ilegal – mesmo cientes do fato de elas garantirem o anonimato.
Acerca das baixíssimas taxas verificadas no Reino Unido, por exemplo, Clive Seale sugeriu que uma das razões que explicam tal resultado é o receio por parte de médicos britânicos de serem associados ao “escândalo Harold Shipman”. Harold Shipman é um médico que foi condenado por causar a morte de vários pacientes usando injeções letais (Seale, 2006). Portanto, segue o argumento, temos boas razões para acreditar que os resultados da Holanda são mais fiéis à realidade ao passo que temos razões para pensar que nos países onde a prática é ilegal os resultados mostram um número menor do que o real.
O argumento de Oderberg não é persuasivo e deve ser rejeitado. O argumento de Keown, por sua vez, enfrenta objeções que apontam para a conclusão de que a Holanda não está em um declive escorregadio. Além do mais, o fato de ele não dispor de dados relativos ao período anterior a 1984 é um revés.5
Aluízio Couto