Por que razão não consigo dividir sete sardinhas inteiras por três gatos? Por que razão não consigo atravessar as sete pontes de Königsberg, uma só vez e numa única caminhada?1 Por que razão a espécie Magicicada de cigarras da América do Norte tem ciclos de vida ímpares, de 13 ou 17 anos?
A Matemática fornece uma explicação para as questões acima. Não consigo dividir sete sardinhas inteiras por três gatos, porque sete não é divisível por três. Não consigo atravessar as sete pontes de Königsberg, uma só vez e numa única caminhada, porque a configuração das pontes não é um grafo de Euler. A espécie Magicicada de cigarras da América do Norte tem ciclos de vida ímpares, de 13 ou 17 anos, porque ciclos de vida ímpares minimizam a intersecção com predadores. Neste tipo de explicações temos assim um explanandum empírico, que se pretende explicar, e um explanans matemático que alegadamente explica o explanandum.
A maior parte das vezes, a Matemática tem apenas um papel instrumental nas teorias científicas, sem qualquer papel explicativo associado. O papel instrumental da matemática pode ser assim ilustrado. Se pretendo explicar por que razão aterrei no Rio de Janeiro às 21h35m (GMT), partindo de Lisboa às 12h (GMT), obviamente, tenho de fazer alguns cálculos matemáticos. Nomeadamente, tenho de dividir a distância entre o Rio e Lisboa, pela velocidade média do avião. No entanto, intuitivamente, não parece de todo que este cálculo explique por que razão aterrei no Rio às 21h35m. A explicação para a minha aterragem no Rio às 21h35m parece depender unicamente das leis físicas que governam o deslocamento de corpos no planeta Terra. Infinitos exemplos deste género podem ser construídos, mesmo aqueles que apelam aos cálculos matemáticos mais avançados.
Temos assim dois tipos de explicações: explicações científicas ordinárias que usam matemática, mas cujo uso é meramente instrumental; e explicações genuinamente matemáticas, onde o explanans é pelo menos constituído por uma proposição matemática e esta proposição é essencial para a explicação. O primeiro tipo de explicações cai no âmbito da explicação científica ordinária. O segundo tipo de explicações é o que nos interessa neste texto. Intuitivamente, compreendemos que estas explicações são diferentes entre si, mas a filosofia tem tido dificuldades em modelar esta intuição. Este tem sido o grande calcanhar de Aquiles da explicação matemática: distinguir adequadamente entre estes dois tipos de explicação.
Tanto quanto sei, o primeiro artigo que tentou modelar a explicação matemática é um artigo de Mark Steiner de 1978. O modelo tem dois passos. Num primeiro passo, Steiner começa por defender que há demonstrações matemáticas que são elas próprias explicativas. Este tipo de explicação é uma explicação completamente interna à matemática. Ou seja, quer o explanans, quer o explanandum, são proposições matemáticas. Neste texto não vou abordar este tipo de explicações internas. Num segundo passo, Steiner defende que a proposição matemática que é demonstrada na explicação anterior conecta-se com o acontecimento empírico a explicar. Pondo tudo junto, uma explicação matemática de um acontecimento empírico é constituída por uma demonstração matemática e pelo próprio acontecimento empírico a explicar.
A proposta de Steiner é bastante desadequada. Quando afirmo que não consigo dividir sete sardinhas inteiras por três gatos, porque sete não é divisível por três, não invoco qualquer demonstração matemática formal da proposição de que sete não é divisível por três. Em geral, a explicação matemática de um acontecimento empírico não requer qualquer demonstração matemática formal a suportar essa explicação. Outra fragilidade deste modelo é que simplesmente não avança qualquer ideia para resolver o problema acima de distinguir entre explicações científicas ordinárias, que usam matemática de forma instrumental, e explicações genuinamente matemáticas.
Na filosofia da ciência existe um canto de sereia antigo sobre a explicação científica — o modelo nomológico-dedutivo da explicação. Nos anos 40 do século passado, Carl Hempel e Paul Oppenheim (1948) propuseram um modelo nomológico-dedutivo para a explicação científica, segundo o qual as explicações científicas são argumentos dedutivos constituídos por leis da natureza e condições iniciais no explanans, a partir das quais se deduz um explanandum empírico. Este modelo foi proposto para modelar a explicação científica em geral.
O modelo nomológico-dedutivo da explicação científica é um corpo moribundo na filosofia da ciência contemporânea. Existe uma bateria de contra-exemplos a este modelo. Um contra-exemplo famoso é o seguinte. A altura do Cristo Rei, se aplicada em lei físicas sobre a propagação da luz, explica o comprimento da sombra do Cristo Rei, digamos, ao meio-dia. Este argumento, por sua vez, pode ser invertido. O comprimento da sombra do Cristo Rei, se aplicada em leis físicas sobre a propagação da luz, explica a altura do Cristo Rei, digamos, ao meio-dia. Todavia, intuitivamente, este último argumento invertido não parece de todo ser uma explicação legítima. Não parece que a sombra de um objecto tenha capacidade para explicar a altura do respectivo objecto. O problema para o modelo da explicação de Hempel-Oppenheim é que ambos os argumentos obedecem à estrutura dedutivista e às próprias condições do modelo. Este problema é conhecido na literatura como a assimetria da explicação. (Bromberger 1966: 92–93; Salmon 1998: 309).
Vários filósofos da matemática acreditaram que seria possível ressuscitar este corpo moribundo por intermédio da explicação matemática. A matemática é intrinsecamente uma actividade dedutiva e, por isso, talvez fizesse sentido tentar recuperar o modelo nomológico-dedutivo da explicação científica. Acresce que é muito fácil reconfigurar este modelo com vista a tentar acomodar as explicações genuinamente matemáticas. Para tal, basta modificar ligeiramente uma das condições do explanans no modelo, a saber: o argumento dedutivo tem um explanans que, necessariamente, incluiu uma proposição matemática, podendo esta proposição ser coadjuvada por leis da natureza.
Deixando de parte o exemplo das pontes de Königsberg, devido ao seu tecnicismo matemático, os dois outros exemplos acima podem ser estruturados em argumentos dedutivos explicativos.
Explanans:Explanandum:
- O João tem sete sardinhas inteiras na sua mão.
- Sete não é divisível por três. [proposição matemática]
O João não consegue dividir as sardinhas inteiras pelos seus três gatos.
Explanans:Explanandum:
- Minimiza a predação ter um ciclo de vida que apenas raramente se intersecta com os ciclos de vida de predadores.
- Os períodos com uma duração prima minimizam a intersecção (comparativamente aos períodos com uma duração não-prima). [Proposição matemática]
As cigarras com períodos de ciclo de vida de duração prima tendem a sofrer menos predação do que as cigarras com períodos de ciclo de vida de duração não-prima.2
Escusado será dizer que a bateria de contra-exemplos ao modelo nomológico-dedutivo da explicação científica muito rapidamente começou a ser direccionada para o novo modelo dedutivo da explicação matemática. Assim, por exemplo, as explicações matemáticas acima podem também ser invertidas e o problema de assimetria da explicação científica estende-se à explicação matemática. Concretamente, o exemplo das sardinhas fica assim:3
Explanans:Explanandum:
- O João divide as sardinhas inteiras pelos seus três gatos.
- Sete não é divisível por três. [proposição matemática]
O João não tem sete sardinhas inteiras.
Intuitivamente, este argumento não parece uma explicação. Não parece que o presumível facto de o João conseguir dividir sardinhas inteiras pelos seus três gatos explique por que razão o João não tem sete sardinhas inteiras em sua posse.
Marc Lange (2018) considera que o problema de assimetria da explicação matemática pode ser ultrapassado se tivermos em conta o contexto da explicação. Por outras palavras, a pergunta que se invoca numa explicação tem de especificar qual é a tarefa a realizar. Por exemplo, se queremos saber “por que razão o João não conseguiu dividir sete sardinhas inteiras pelos seus três gatos?”, esta pergunta especifica a tarefa a realizar, nomeadamente, dividir sete sardinhas inteiras por três gatos. No caso da explicação invertida, se queremos saber “por que razão o João não tem sete sardinhas?”, esta pergunta não especifica qualquer tarefa a realizar. Como tal, esta pergunta deve ser rejeitada, digamos, como uma pergunta “sem sentido”.
O novo modelo dedutivo da explicação matemática também enfrenta grandes dificuldades para distinguir entre explicações científicas ordinárias, que usam matemática de forma instrumental, e explicações genuinamente matemáticas. Pois ambas as explicações podem ser estruturadas em argumentos dedutivos, onde a matemática faz parte de ambos os explanantia. Com vista a tentar ultrapassar este problema, os filósofos da matemática “dedutivistas” têm acrescentado condições restritivas ao modelo original de Hempel-Oppenheim, tentando tornar o modelo sensível aos dois tipos de explicação. No entanto, na verdade, não tem havido um consenso sobre quais sejam efectivamente essas condições.
Mais recentemente, Lange (2013; 2016) tem defendido que as explicações matemáticas de acontecimentos empíricos são explicações modalmente mais fortes do que as explicações científicas causais ordinárias. A modalidade em questão é a modalidade matemática, no sentido de que estas explicações restringem aquilo que fisicamente pode ocorrer. Quando dizemos que é matematicamente impossível dividir sete sardinhas inteiras por três gatos dizemos que não há qualquer mundo possível onde ocorra esse acontecimento. Não há um mundo no qual a divisão de 7 por 3 resulte num resto 0. Em contraste, embora seja fisicamente impossível viajar a uma velocidade superior à velocidade da luz, matematicamente, é possível considerar alegados objectos que viajem a uma velocidade superior à velocidade da luz.
Consideremos novamente as pontes de Königsberg. Lange afirma que não haverá qualquer mundo possível no qual se consiga atravessar as sete pontes de Königsberg, uma só vez e numa única caminhada. Ora, imaginemos agora que um construtor civil decide recortar as pontes de Königsberg e alinhá-las uma-a-uma. Assim, na verdade, é possível atravessar as pontes de Königsberg, uma só vez e numa única caminhada! Ou seja, isso é possível, sem desafiar qualquer lei física e, muito menos, sem desafiar qualquer teoria matemática.
Lange defende-se da objecção anterior nos termos seguintes: tal alegado projecto de construção civil é uma batota filosófica. Quando dizemos que é impossível atravessar as pontes de Königsberg, uma só vez e numa única caminhada, estamos a supor que não podemos alterar a configuração das pontes de Königsberg. Ou seja, o impossível atravessamento das pontes de Königsberg refere-se às pontes tal como estão presentemente dispostas e não se refere a uma outra possível configuração imaginária de um construtor civil.
A proposta de Lange também não consegue distinguir claramente entre explicações científicas ordinárias, que usam matemática de forma instrumental, e explicações matemáticas genuínas. Lange considera que apenas se conseguem distinguir estas explicações recorrendo ao contexto específico em que as mesmas se apresentam (Lange 2013: 507). Assim, uma explicação x, num contexto y, pode ser uma explicação genuinamente matemática, mas num outro contexto z pode ser uma explicação científica ordinária que usa matemática de forma instrumental. O problema adicional que esta solução enfrenta a montante é especificar quais são as condições de contexto para cada explicação.
O subtítulo deste artigo foi “Sardinhas, pontes e cigarras”, mas muitos outros subtítulos seriam possíveis, a respeito de colmeias, nós de trevo, pêndulos, palitos, etc. Existem muitas outras explicações matemáticas de fenómenos empíricos. Neste texto dei uma breve ilustração de alguns problemas filosóficos que estas explicações levantam, bem como de alguns modelos propostos na literatura de filosofia da matemática.