facto/valor
Ver juízo de facto / juízo de valor.
Ver juízo de facto / juízo de valor.
Um argumento mau que parece bom. Os argumentos podem ser falaciosos 1) por serem inválidos e parecerem válidos, por 2) terem premissas falsas que parecem verdadeiras, ou por 3) não serem cogentes mas o parecerem. Por exemplo, o argumento seguinte é inválido mas parece válido: «Todas as coisas têm uma causa; logo, há uma causa para todas as coisas». O argumento seguinte tem uma premissa falsa, mas não parece: «Ou gostas de Picasso ou odeias Picasso; dado que não gostas, odeias.» O argumento seguinte pode parecer cogente, mas não é: «Se os cépticos tivessem razão, nada se poderia saber; mas como é óbvio que se pode saber várias coisas, os cépticos não têm razão».
A distinção entre argumentos maus que são enganadores porque parecem bons e argumentos maus que não são enganadores porque não parecem bons não é formal mas sim informal. Esta distinção é crucial, uma vez que são as falácias que são particularmente perigosas. Os argumentos obviamente maus não são enganadores e, se todos os argumentos maus fossem assim, não seria necessário estudar lógica para saber evitar erros de argumentação.
Prova-se que um argumento é falacioso mostrando que é possível, ou muito provável, que as suas premissas sejam verdadeiras mas a sua conclusão falsa; ou que tem premissas subtilmente falsas; o que as premissas não são mais plausíveis do que a conclusão.
Quando se diz que uma definição, por exemplo, é falaciosa, quer-se dizer que é enganadora ou que pode ser usada num argumento que, por causa disso, será falacioso. Ver refutação. (Desidério Murcho)
(ataque à pessoa) Falácia pela qual se pretende refutar (ver refutação) uma afirmação, atacando, ou desvalorizando de alguma maneira, a pessoa que a defendeu. Pode assumir a forma de ataques ao carácter, à raça, à religião ou à nacionalidade da pessoa. Exemplo: “O meu pai diz que não se deve fumar, mas fuma. Logo, não há razões para deixar de fumar”. Neste caso, pretende-se refutar a ideia de que não se deve fumar atacando a pessoa que a defendeu por ela ser incoerente. (Júlio Sameiro)
Falácia que consiste em supor que da condicional “Se P, então Q” e da afirmação da consequente dessa condicional, “Q”, se pode concluir “P”. Exemplo: “Se jogamos bem, então ganhamos o jogo. Ganhámos o jogo. Logo, jogámos bem”. é fácil apresentar uma refutação desta forma de argumento com um contra-exemplo com a mesma forma lógica: o argumento “Se isso é sardinha então isso é peixe. É peixe. Logo, é sardinha”., implicando a falsidade “Basta ser peixe para ser sardinha”, mostra que este padrão argumentativo é falacioso. (Júlio Sameiro)
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1. Um argumento cuja conclusão esteja explícita ou implicitamente contida nas premissas; chama-se petição de princípio ou petitio principii a este tipo de falácia. Os casos mais evidentes são aqueles em que a conclusão se limita a repetir a premissa: “Deus existe porque diz na Bíblia e a Bíblia é a palavra de Deus”. Os casos mais subtis incluem variações gramaticais: “Os animais não têm direitos porque não são contemplados na legislação”. É falso que nos argumentos dedutivos válidos a conclusão esteja “contida” nas premissas, como por vezes se pensa. Pois há argumentos dedutivos válidos cujas conclusões não estão “contidas” nas premissas: “Sócrates é grego; logo, Sócrates é grego ou os livros estão errados”. E há argumentos dedutivos inválidos cujas conclusões estão “contidas” nas premissas: “Se Sócrates tivesse nascido em Estagira, seria grego; Sócrates era grego; logo, Sócrates nasceu em Estagira”.
2. Uma definição é falaciosamente circular se definir A em termos de B e depois B em termos de A, sem com isso esclarecer A. Por exemplo: “Uma pessoa solteira é uma pessoa não casada”. E o que é uma pessoa casada? “É uma pessoa não solteira”. Um certo grau de circularidade nas definições é aceitável, desde que se trate de uma circularidade informativa. Por exemplo, as definições científicas de massa, peso, energia, força, etc., acabam por ser circulares, mas são informativas. (Desidério Murcho)
Falácia que consiste em concluir que, por as partes de um todo ou os elementos de uma classe terem uma propriedade, o todo ou a classe também devem ter tal propriedade. Exemplo: “As células não têm consciência. Portanto, o cérebro, que é feito de células, não tem consciência.” Provamos que esta forma de argumento é falaciosa com exemplos simples como, por exemplo, “O oxigénio e o hidrogénio não são bebíveis. Logo, a água não é bebível”. (Júlio Sameiro)
Falácia que consiste em atribuir às partes de um todo ou aos elementos de uma classe uma propriedade do todo ou da classe. “F é uma excelente equipa. i joga na equipa F. Logo, i é um excelente jogador." contra-exemplo: “A classe dos números é infinita. Ora 2 é um número. Logo, 2 é infinito”. (Júlio Sameiro)
São frequentes os argumentos que omitem conhecimentos relevantes para avaliar uma conclusão. Por exemplo: uma pessoa empenhada em provar que as guerras são inevitáveis e que se limite a coleccionar os exemplos favoráveis oferecidos pela história, incorre nesta falácia por excluir conhecimentos relevantes — deveria, por exemplo, explicar por que razão a Suíça, estando trezentos anos sem guerrear, não é um contra-exemplo que arruína a sua tese. (Júlio Sameiro)
Um argumento analógico é fraco quando sobrevaloriza as semelhanças entre duas ou mais coisas ou quando despreza diferenças relevantes. Os casos mais extremos são falsas analogias. O argumento “Uma casa teve um arquitecto e tem um senhor; assim o Universo, a casa de todos, teve um arquitecto e tem um senhor — Deus” é um caso óbvio de falsa analogia porque a pretensa semelhança entre “casa” e “Universo” é apenas um efeito literário e retórico. Ver também falácia, analogia e argumento por analogia. (Júlio Sameiro)
Falácia que consiste em supor que, se uma condicional, “Se P, então Q”, e a negação da sua antecedente, isto é, “não P”, forem verdadeiras, a negação da sua consequente, isto é, “não Q”, também é verdadeira. Exemplo: “Se copiaste, acertaste. Não copiaste. Logo, não acertaste”. Apesar de ser fácil apresentar contra-exemplos — “Se Camões é espanhol, então é ibérico. Camões não é espanhol. Logo, Camões não é ibérico" — é uma falácia muito frequente. (Júlio Sameiro)
Pergunta formulada de tal modo que uma resposta directa compromete a pessoa com mais do que uma afirmação. Cria-se esta falácia incluindo na pergunta afirmações ou suposições às quais o interrogado ainda não assentiu. A pergunta “Já deixaste de copiar?” só deve ser aceite por quem já reconheceu ter copiado porque tanto o “sim" como o “não” são comprometedores: o “sim” será interpretado como confissão de que a pessoa copiou; o “não” será interpretado como confissão de que a pessoa ainda copia. (Júlio Sameiro)
Argumento que, para defender a sua conclusão, apresenta ameaças em vez de razões. As ameaças podem ser directas ou consequências possíveis e apenas sugeridas. Exemplo: “Isso talvez seja verdadeiro mas se o afirmar a empresa terá de prescindir dos seus serviços”. O apelo à força é legítimo em algumas circunstâncias, por exemplo para fazer cumprir a lei ou como conselho técnico destinado a evitar acidentes. (Júlio Sameiro)
Argumento em que, confessada a ignorância sobre a verdade de uma afirmação, se conclui que a afirmação é falsa (ou que da ignorância sobre se uma afirmação é falsa se conclui que ela é verdadeira). Exemplos clássicos de apelos à ignorância falaciosos (ver falácia): “Ninguém provou que Deus existe. Logo, Deus não existe”, “Não há provas de que Deus não exista. Logo, Deus existe”, “Ninguém sabe qual é a causa natural de X. Logo, X tem uma causa sobrenatural”. Há apelos à ignorância não falaciosos. Por exemplo: se uma pessoa acusa o nosso pacato vizinho de ser um ladrão mas não apresenta indícios, devemos rejeitar a acusação. Em geral, o apelo à ignorância é legítimo se a negação da sua conclusão colide com o conhecimento comum. (Júlio Sameiro)
Um apelo à piedade do auditório é falacioso (ver falácia) se puser em segundo plano os factos ou critérios que devem justificar uma afirmação. Exemplo: “O professor deve dar-me o 18 porque de outra maneira não entro em medicina e a minha vida atrasa-se”. é um apelo ao sentimento de piedade do professor para que este altere os seus critérios. (Júlio Sameiro)
Esta falácia caracteriza-se pelo apelo às emoções de um grupo ou à suposta sabedoria partilhada por todos (povo). Em regra, este apelo a emoções ou saberes comuns apela a motivos e não a razões. Exemplo: “Todas as pessoas sensatas rejeitam X. Logo, deves rejeitar X”. Neste caso, espera-se que o desejo de ser incluído na classe das pessoas sensatas leve o auditório a aprovar a conclusão. (Júlio Sameiro)
Falácia, ou classe de falácias, em que possíveis consequências práticas de uma proposição são usadas como prova. Exemplo: “Se toda a ordem fosse apenas aparente, o mundo seria inquietante. Logo, a ordem não é apenas aparente.” Neste caso espera-se que o desejo de segurança do auditório o leve a rejeitar uma proposição e a tomar a sua negação como verdadeira. (Júlio Sameiro)
Falácia que consiste na suposição de que, sobre um determinado assunto, só há duas alternativas quando de facto há mais. Exemplos: “Estás com a América ou contra a América”., “És rico ou pobre”., “És bom ou mau”. Estas suposições falsas são muitas vezes usadas como premissas de argumentos dedutivos válidos (ver validade), do género: “Estás com a América ou contra a América: Não estás com a América; logo, estás contra a América”. Ver também disjunção. (Júlio Sameiro)
Esta falácia consiste em atacar as ideias de uma pessoa apresentando-as numa versão deficiente ou distorcida. Constitui uma violação do princípio de caridade — a exigência de que, no debate racional, se ataque a versão mais sólida das ideias que queremos contestar. Exemplos desta falácia: “A única razão para defender a pena de morte é o desejo primitivo de vingança”., “Reprovaram-me porque só olharam para o meu comportamento”. (Júlio Sameiro)
Esta falácia ocorre quando, para avaliar uma teoria ou afirmação, se invocam factores do contexto de descoberta que são irrelevantes como prova. Em regra, é falacioso apelar a contextos históricos ou sociais ou às circunstâncias psicológicas em que surgiu uma teoria para legitimar um juízo sobre essa teoria. Exemplos: os nazis cometeram a falácia genética ao desvalorizar as teorias de Einstein por este ser judeu; muitas pessoas acreditam falaciosamente que o casamento monogâmico é a única forma de família legítima apenas com base na sua longa história. Ver também relativismo. (Júlio Sameiro)
Falácia também designada “depois disso, por causa disso” porque consiste em presumir que se dois acontecimentos são sucessivos, então o primeiro é causa do segundo. “Ingeriu o mel e a constipação passou. Logo, o mel é bom para tratar constipações”., “Rezou e a sorte mudou. Logo, rezar é eficaz para mudar o curso dos acontecimentos”. Na base desta falácia pode estar a sobrevalorização de sequências acidentais, o descarte de possíveis causas subjacentes ou o simples desejo de acreditar. (Júlio Sameiro)
Ver falácia da falsa analogia.
Ver contradição.
Diz-se do que é falsificável. Uma teoria (ou proposição) é falsificável quando pode ser submetida a testes empíricos que a possam refutar. E uma teoria está falsificada quando é realmente refutada por dados empíricos quando se mostra que é falsa. Não se pode confundir a noção de falsificado com a de falsificável. Se uma teoria foi falsificada, então é falsa. Todas as boas teorias científicas são falsificáveis, mas não são, claro está, todas falsas. Por exemplo, a proposição de que a Lua gira em torno da Terra é falsificável, pois seria possível observar que a Lua afinal não girava em torno da Terra, se ela não girasse. Mas a proposição de que a posição dos astros influencia o comportamento das pessoas não é falsificável, pois não é possível observar seja o que for que a falsifique. Karl Popper usou esta noção, central na sua filosofia da ciência, para responder ao problema da demarcação (ver critério de demarcação). Ver falsificacionismo. (Célia Teixeira)
Teoria de filosofia da ciência proposta por Karl Popper como forma de responder ao problema da indução. Em A Lógica da Pesquisa Científica (1934, trad. Cultrix, 1974) e Conjecturas e Refutações (1963; trad. Almedina, 2003) Popper defende que os cientistas não chegam às suas teorias pelo método de generalizações a partir de observações. A ideia é que os cientistas começam por propor as suas teorias (ou conjecturas) sujeitando-as depois a rigorosos testes. Ou seja, o que está na base do método científico não é a indução, mas um processo de conjecturas e refutações. Quando uma teoria passa o teste empírico, diz-se que foi corroborada (ver corroboração) continuando a ser desenvolvida e testada. Quando falha o teste, é falsificada e consequentemente abandonada. Uma teoria é tanto melhor quanto maior for o seu grau de falsificabilidade, dado que quantas mais previsões fizer maiores serão os riscos de refutação. Ver critério de demarcação. (Célia Teixeira)
Ver falsificabilidade.
Ver falsificabilidade.
Ver falácia do falso dilema.
Crença na existência de um Deus ou deuses. Em contextos não religiosos, a palavra refere-se unicamente a uma crença muito forte; por exemplo, quando dizemos que temos fé na recuperação de uma doença. Ver, filosofia da religião, fideísmo. (Célia Teixeira)
Palavra de origem grega que, em geral, designa o que aparece à consciência e tem origem nos sentidos, por oposição ao que é apreendido apenas pelo intelecto. Em Platão, o fenómeno é o que pertence ao mundo sensível, enquanto o númeno (a ideia ou Forma) pertence ao mundo inteligível. Para Kant, o fenómeno é o objecto da experiência possível, o que é dado no espaço e no tempo e opõe-se ao númeno ou coisa em si. (Álvaro Nunes)
Termo pelo qual é designado o movimento filosófico surgido a partir da obra de Edmund Husserl (1859-1938) e que tem por objectivo principal a investigação e a descrição dos fenómenos (ver fenómeno) tal como ocorrem na consciência, independentemente de quaisquer preconceitos, pressupostos ou teorias explicativas. É possível detectar pelo menos quatro tendências principais neste movimento: a fenomenologia realista, que põe ênfase na descrição das essências (ver essência) universais (Nicolai Hartman, Max Scheler); a fenomenologia constitutiva, que procura dar conta dos objectos em termos da consciência que temos deles (Dorion Cairns, Aron Gurwitsch); a fenomenologia existencial (ver existência), que realça a existência humana no mundo (Hannah Arendt, Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty); e a fenomenologia hermenêutica (ver hermenêutica), que realça o papel da interpretação em todas as esferas da vida (Hans-Georg Gadamer, Paul Ricoeur). (Álvaro Nunes)
Filósofo da ciência americano, de origem austríaca, que advogava a inutilidade da própria filosofia da ciência. Segundo Feyerabend, qualquer tentativa de identificar um método, ou sequer um conjunto de métodos, na história da ciência está condenada ao fracasso. Isto acontece porque, segundo ele, a ciência tem tanto de racional — e de irracional — como qualquer outra actividade humana, seja ela a religião, a alquimia ou o ocultismo. O chamado “sucesso” da ciência deve tanto à razão como ao desleixo, ao caos, ao acaso, à incompetência, à retórica ou ao oportunismo dos cientistas. Longe de se procurar eliminar estes aspectos, é até desejável que eles actuem livremente no seio da ciência. Por isso Feyerabend se opõe à ideia de método e defende uma concepção anarquista da ciência. Considera também irrelevante a questão de saber o que distingue a actividade científica de outras actividades não-científicas. As ideias de Feyerabend, principalmente defendidas em obras como Contra o Método (1975; trad. 1993, Relógio d'Água) e Adeus à Razão (1987; trad. 1991, Edições 70), foram fortemente criticadas por vários filósofos da ciência, entre os quais Karl Popper. Ver também método científico. (Aires Almeida)
A tese segundo a qual as crenças religiosas não são susceptíveis de discussão racional. A ideia é que as questões religiosas não podem ser justificadas por meio de argumentos ou provas, mas apenas pela fé. Os fideístas mais radicais, como Kierkegaard, defendem que justificar a nossa crença em Deus é não só impossível, pois Deus está para lá da nossa compreensão, como uma má opção, pois ao fazê-lo estamos a retirar o que há de essencial à própria fé. Este tipo de fideísmo é assim uma forma de irracionalismo cujo mote é: “acredito porque é absurdo”. Já Blaise Pascal (1623-1662) e Santo Agostinho defendem uma forma mais moderada de fideísmo segundo a qual, apesar de a fé ter um estatuto privilegiado em matérias religiosas, podemos apelar à razão para a fundamentar. Ver Aposta de Pascal. (Célia Teixeira)
O estudo dos problemas de carácter mais geral e conceptual que afectam o nosso pensamento científico, religioso, artístico e quotidiano, para os quais não há respostas científicas. Eis alguns exemplos de problemas filosóficos: Será tudo relativo e mera opinião? Será que temos livre-arbítrio? O que é o conhecimento? Será o conhecimento possível? Como devemos viver? O que é o bem moral e qual é o seu fundamento? O que é a justiça? Dizer que os problemas da filosofia são conceptuais é dizer que não são problemas que se possam decidir recorrendo à experiência. Neste aspecto, a filosofia é como a matemática, e não como a história ou a física.
O método da filosofia é a discussão racional de argumentos. Isto significa que não há métodos formais nem científicos de prova, como na matemática ou na física; tudo o que se pode fazer é pensar tão correctamente quanto possível, procurando soluções adequadas.
Os primeiros filósofos não faziam uma distinção profunda entre as diferentes áreas do conhecimento. Aristóteles, por exemplo, dedicou-se não apenas ao que hoje reconhecemos como filosofia, mas também à física, astronomia, biologia, etc. Para os primeiros filósofos, o estudo da filosofia tinha muito mais em comum com a biologia, a matemática ou a história, do que com outras manifestações culturais como a arte ou a religião. E o que tinha em comum era o estudo racional da natureza das coisas e a procura da verdade. A filosofia surge assim associada, juntamente com as outras áreas do conhecimento, à própria ideia de investigação livre, opondo-se à atitude dogmática que consiste em proclamar pretensas “verdades” que não se podem colocar em causa.
A filosofia não é coisa do passado. Apesar da sua longa história (ver filosofia, história da), a filosofia continua viva; na verdade, há talvez mais filósofos hoje em dia do que ao longo de toda a história da humanidade. E também não é verdade que não exista progresso em filosofia; sem dúvida que a compreensão actual dos problemas, teorias e argumentos da filosofia é superior à de qualquer época do passado. Simplesmente, talvez não haja na filosofia o tipo de progresso por acumulação de resultados que podemos encontrar na ciência. O progresso da filosofia é um alargamento da compreensão. Podemos continuar sem conseguir provar se temos ou não livre-arbítrio, ou se Deus existe ou não, ou sequer como se pode justificar a nossa crença no mundo exterior; mas a compreensão que temos hoje destes problemas é mais profunda do que a que se tinha no passado.
Não se pode exigir do filósofo, ou do estudante de filosofia, respostas definitivas como temos em medicina, por exemplo, em que é possível dizer exactamente o que provoca a diabetes, ou como se cura a tuberculose. Mas isto não significa que as opiniões dos filósofos, ou do estudante de filosofia, sejam “meras opiniões”, incomensuráveis, subjectivas e pessoais, insusceptíveis de avaliação racional e de estar mais ou menos próximas da verdade ou da plausibilidade. A opinião que se espera de um filósofo, ou de um estudante de filosofia, é como a opinião que se espera de um médico quando vamos a uma consulta: uma opinião fundamentada e informada, que se pode discutir e avaliar racionalmente. O objectivo do estudo da filosofia é saber avançar “diagnósticos”, tão bons quanto possível, relativamente aos problemas tradicionais da filosofia. Isto exige um bom conhecimento do que está em causa e das diferentes respostas que tentam resolver esse problema, tanto antigas como modernas. Exige a capacidade para compreender os diferentes aspectos dos problemas, os diferentes mecanismos de argumentação ou fundamentação e as diferentes maneiras como uma teoria ou ideia pode ser melhorada para responder a objecções e contra-exemplos.
As principais disciplinas da filosofia merecem artigos próprios neste dicionário: metafísica, epistemologia, ética, lógica, filosofia da religião, filosofia política, estética, filosofia da ciência, filosofia da mente, filosofia da linguagem, filosofia da acção. (Desidério Murcho)
Nagel, Thomas, Que Quer Dizer Tudo Isto? (Lisboa: Gradiva, 1995).
Russell, Bertrand, Os Problemas da Filosofia (Coimbra: Almedina, 2001).
Warburton, Nigel, Elementos Básicos de Filosofia (Lisboa: Gradiva, 1988).
Corrente surgida nos finais do séc. XIX na Inglaterra, Áustria e Alemanha. A filosofia analítica nunca foi um movimento unitário, sendo antes uma designação genérica para várias correntes particulares: 1) A abordagem de Russell e Frege, que procurava usar novos instrumentos lógicos para analisar a linguagem que usamos para exprimir os aspectos mais centrais da realidade; 2) O positivismo lógico austríaco, com origem em Moritz Schlick (1882–1936) e Carnap, e importado para o Reino Unido por A. J. Ayer (1910–1989); 3) A filosofia da linguagem corrente de Cambridge e Oxford, com origem em J. L. Austin (1911–1960). As duas últimas correntes foram entretanto abandonadas, e a primeira perdeu a sua centralidade. Hoje em dia, a filosofia analítica caracteriza-se por retomar os ideais gregos de discussão pública, racional e crítica de ideias, opondo-se sobretudo à prática académica da chamada “filosofia continental”, que tende a identificar a filosofia com a sua história e o trabalho filosófico com a interpretação de textos. (Desidério Murcho)
A filosofia da acção é uma disciplina com ligações à filosofia da mente e à metafísica e, ainda, à Psicologia e à Teoria da Decisão. Trata-se de uma área interdisciplinar e especializada da filosofia que tem como objecto central a acção e a razão prática.
Alguns dos problemas que trata são tipicamente metafísicos: O que é uma acção? O que distingue uma acção de qualquer outro acontecimento no mundo? Como distinguir as acções umas das outras? Como distinguir acções básicas de acções não básicas? Será o livre-arbítrio compatível com o determinismo?
Acerca do que é uma acção, os filósofos dividem-se entre concebê-la como um acontecimento particular concreto (ver abstracto/concreto), localizado no espaço e no tempo e discernível de qualquer outro; ou concebê-la como uma entidade abstracta que não tem localização espácio-temporal, mas que pode ser exemplificada através dos actos concretos realizados por um agente. Para estes últimos filósofos, a acção de estudar, por exemplo, é algo que não está localizado no espaço ou no tempo. Já para os primeiros filósofos, não existe a acção de estudar em abstracto — o que existe são pessoas concretas que estudam, num dado momento e num certo local. A resposta aos problemas da distinção das acções e da diferenciação entre acções básicas e acções não básicas depende da concepção de acção que cada filósofo partilha.
Outros problemas de filosofia da acção apelam a questões centrais da filosofia da mente, como a de saber qual o papel dos estados mentais intencionais na acção (ver intenção) e o de saber como se enquadra a acção nas relações de causalidade entre a mente e o corpo (ver dualismo/monismo).
Os filósofos da acção utilizam, ainda, os dados empíricos (ver empírico) acerca do comportamento proporcionados pela Psicologia para discutir o problema de saber se a crença na racionalidade humana é compatível com a irracionalidade exibida em numerosos comportamentos humanos (como a fraqueza da vontade ou as preferências irracionais); e recorrem aos instrumentos proporcionados pela moderna Teoria da Decisão (uma área da matemática aplicada) para a análise rigorosa da racionalidade das decisões.
Uma questão ainda mais abstracta diz respeito à natureza das explicações filosóficas da acção: serão elas teorias que apenas descrevem o modo como os seres humanos habitualmente agem? Ou, serão elas teorias que propõem modelos ideais segundo os quais todos os seres humanos racionais deveriam agir? Alguns filósofos inclinam-se para o carácter descritivo das teorias da acção, mas outros defendem o seu carácter normativo (ver normativo/descritivo). Uma vez mais, está em causa a justificação da crença na racionalidade humana. (António Paulo Costa)
Dennett, Daniel C., “A intencionalidade — a abordagem dos sistemas intencionais" in Tipos de Mentes (Lisboa: Temas e Debates, 2001).
Ricoeur, Paul, O Discurso da Acção (Lisboa: Edições 70, 1988).
Searle, John R., “Intenção e Acção" in Intencionalidade (Relógio d'Água, 1999).
Ramo da estética que se ocupa dos problemas filosóficos colocados pela arte, nomeadamente os problemas da definição de arte, do valor da arte e da avaliação das obras de arte. Os problemas acerca do gosto e do belo, não são, em rigor, problemas da filosofia da arte, mas da estética em geral, pelo que nem sequer são discutidos por muitos filósofos da arte. Apesar de gostarmos de muitas obras de arte por as considerarmos belas, não temos de gostar de um objecto para ser classificado como arte, assim como também não é necessário que seja belo. A ideia de que arte e beleza se identificam está bastante enraizada, porque durante muito tempo os próprios artistas perseguiram algum ideal de beleza. A filosofia da arte é actualmente uma disciplina filosófica com grande vitalidade, incluindo áreas mais especializadas da filosofia da arte, como a filosofia da música e a filosofia da literatura. Ver também problema do gosto e teoria do belo. (Aires Almeida)
Disciplina que estuda os problemas filosóficos levantados pelas ciências da natureza e pelas ciências sociais. Embora muitos desses problemas tenham recebido uma atenção considerável pelo menos desde Aristóteles, foi sobretudo a partir do séc. XX que, graças a filósofos como Carnap, Popper e Quine, a filosofia da ciência se afirmou como disciplina.
Uma preocupação central na filosofia da ciência é compreender o método científico. Proporcionar tal compreensão implica enfrentar problemas como os seguintes: Que tipos de raciocínio figuram nas teorias científicas? O que torna uma teoria melhor do que outra? As teorias científicas podem dar-nos um conhecimento objectivo (ver objectivo/subjectivo) da realidade? Qual é a natureza e o papel da observação científica? Em que consiste uma explicação científica de um acontecimento? Será que todas as ciências usam o mesmo método fundamental?
Para além destes problemas, que se situam sobretudo no domínio da epistemologia, os filósofos da ciência ocupam-se de problemas de natureza metafísica. Por exemplo, os cientistas descobrem leis da natureza e dizem-nos como certos acontecimentos causam outros — os filósofos querem saber o que é uma lei da natureza e em que consiste a causalidade.
O desenvolvimento da filosofia da ciência tem levado ao aparecimento de áreas mais especializadas, como a filosofia da biologia ou a filosofia das ciências sociais. Nestas áreas, para além de se procurar uma compreensão minuciosa dos métodos das ciências em causa, examina-se o conteúdo de certas teorias científicas para esclarecer questões filosóficas. Na filosofia da física, por exemplo, tenta-se saber até que ponto a mecânica quântica apoia o indeterminismo.
Os filósofos do positivismo lógico investigaram o conhecimento científico de um modo muito abstracto (ver abstracto/concreto), sem atender ao seu desenvolvimento e à maneira como os cientistas trabalham. Mas nas últimas décadas, em grande medida devido à influência de Kuhn, a filosofia da ciência tem prestado uma atenção considerável ao estudo da história e da sociologia da ciência. Ver confirmação, corroboração, falsificacionismo, fisicismo, paradigma, reducionismo, unidade da ciência. (Pedro Galvão)
Harré, Rom, As Filosofias da Ciência (Lisboa: Edições 70, 1988).
Losee, John, Uma Introdução Histórica à Filosofia da Ciência (Lisboa: Terramar, 1997).
Warburton, Nigel, “Ciência" in Elementos Básicos de Filosofia (Lisboa: Gradiva, 1998).
A filosofia da linguagem estuda o funcionamento da linguagem corrente (designadamente no que diz respeito ao significado), socorrendo-se muitas vezes de linguagens formais como as da lógica clássica. A linguagem é objecto de interesse filosófico explícito pelo menos desde Platão, mas só no séc. XX a filosofia da linguagem se tornou tecnicamente rigorosa (particularmente na filosofia analítica). Associadamente, tornou-se popular a tese de que a filosofia da linguagem é a mais fundamental das disciplinas filosóficas, no sentido em que a discussão das teorias e dos argumentos pertencentes às outras pode ser identificada com a discussão do uso correcto dos termos usados nessas teorias e argumentos. Esta tese perdeu entretanto aceitação, mas é ainda uma preocupação típica dos filósofos analíticos a clareza e o rigor com que expõem os seus pontos de vista. Uma vez que se ocupa do significado linguístico, a filosofia da linguagem tem uma relação estreita com a metafísica (pois é chamada a pronunciar-se sobre os tipos de entidades extralinguísticas com os quais nos comprometemos quando usamos a linguagem) e com a filosofia da mente (pois analisa quer a nossa capacidade de produzir sequências linguísticas quer os conteúdos mentais que são comunicáveis linguisticamente). Como aconteceu em outras áreas da filosofia, muitos dos problemas e teorias historicamente associados à filosofia da linguagem autonomizaram-se e são hoje do domínio de outras disciplinas (por exemplo, a semântica e a pragmática). Tópicos estudados tipicamente em filosofia da linguagem são, além do significado, a referência, a verdade, a metáfora e a relação do significado com o uso da linguagem pelos falantes. (Pedro Santos)
Na tradição filosófica, termos como “alma”, “espírito” ou “intelecto” foram usados para referir, embora em contextos filosóficos diferentes e com significados nem sempre coincidentes, aquilo que os filósofos contemporâneos referem com o termo “mente”. A filosofia da mente é a disciplina que discute os problemas relacionados com a mente e os fenómenos mentais — a sua existência, a sua natureza, a sua relação com o mundo. Estes problemas possuem estreitas ligações com problemas da metafísica, da filosofia da linguagem, da epistemologia e da filosofia da ciência, mas não devem ser confundidos com os problemas empíricos da Psicologia (ver problema filosófico).
Sendo uma das disciplinas filosóficas que mais interesse suscitou ao longo da história, particularmente no séc. XX, os seus problemas centrais são a relação mente/corpo, o solipsismo, a causalidade mental e a intencionalidade (ver intenção). Por exemplo, os filósofos da mente procuram respostas para perguntas como: O que é a mente? Qual o seu lugar na natureza? Existe uma relação causal entre a mente e a matéria? Que razões temos para acreditar que existem outras mentes para além da nossa? O que é a intenção e qual é o seu papel na acção? Qual é a natureza dos acontecimentos mentais? O que está em causa quando falamos de pensamento, memória, emoção, sentimento ou imaginação? Será correcto dividir as funções mentais, ou existirá nelas uma certa unidade? Poderão as máquinas ser conscientes?
A variedade destes problemas suscitou o aparecimento de teorias que, não sendo as únicas, são porventura as mais influentes em filosofia da mente: as teorias dualistas sobre a relação mente/corpo, a que se opõem doutrinas monistas (ver dualismo/monismo) como o fisicismo; o externismo, que se caracteriza pela defesa de que quaisquer conteúdos mentais dependem causalmente de estados do mundo que são exteriores à mente, e a que se opõe o internismo; e o funcionalismo, segundo o qual os estados mentais devem ser descritos, não em virtude de quaisquer propriedades intrínsecas (ver propriedade), mas em virtude da relação causal que mantêm com outros estados mentais e da função que têm relativamente ao comportamento. Ver crença, desejo, idealismo e filosofia. (António Paulo Costa)
Nagel, Thomas, Que Quer Dizer Tudo Isto?, Cap. 3 (Lisboa: Gradiva, 1995).
Sagal, Paul, Mente, Homem e Máquina (Lisboa: Gradiva, 1996).
Warburton, Nigel, Elementos Básicos de Filosofia, Capítulo 6 (Lisboa: Gradiva, 1998).
O estudo filosófico dos conceitos e afirmações religiosas. Apesar da multiplicidade de religiões com diferentes cultos, mitos e práticas, os filósofos têm-se tradicionalmente centrado nas religiões dominantes no ocidente o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Uma das razões deve-se ao facto de estas religiões fornecerem visões complexas acerca do modo como o mundo e o universo se comportam, ao contrário do que se passa com as religiões orientais como o hinduísmo, o budismo e o confucionismo que se preocupam mais em propor formas de conduta e de viver. O que interessa em geral aos filósofos é saber se a visão religiosa do universo é ou não verdadeira. Comum às religiões ocidentais é a crença na existência de Deus. Deus é caracterizado como uma pessoa incorpórea e eterna, que criou o universo, que é sumamente boa (moralmente perfeita), que é toda-poderosa (omnipotente), que sabe tudo (omnisciente), que está em todo o lado (omnipresente), etc. Diz-se que este deus é o Deus teísta, e chama-se teísmo à crença na sua existência, de modo que não é de estranhar que os problemas que mais têm atraído a atenção dos filósofos sejam o da coerência do conceito de Deus e o da existência de Deus.
Um dos paradoxos clássicos relativamente à coerência do conceito de Deus é o de saber se Deus pode criar uma pedra tão pesada que Ele não a possa levantar. Se Deus é omnipotente, então pode criar tal pedra, mas se a criar então não é omnipotente, porque depois não pode levantá-la. Por outro lado, se não a pode criar, então não é omnipotente. Uma resposta a este problema é a de que Deus não pode criar impossibilidades lógicas. Outro problema é o de saber se a existência de Deus é compatível com a liberdade humana: se Deus sabe tudo, então sabe o que vamos fazer; mas, se sabe o que vamos fazer, então o que vamos fazer já está determinado; logo, não pode haver livre-arbítrio.
A questão de saber se Deus existe é a que mais tem interessado aos filósofos. São vários os argumentos a favor da existência de Deus, muitos deles apresentados na Idade Média. Por exemplo, só da autoria de Tomás de Aquino há cinco argumentos a favor da existência de Deus. Os principais tipos de argumentos a favor da existência de Deus são: o argumento ontológico, o argumento cosmológico e o argumento do desígnio. Estes argumentos ganharam um novo fôlego nas mãos de teístas contemporâneos como Alvin Plantinga (n. 1932) e Richard Swinburne (n. 1934), que defendem versões mais sofisticadas de alguns deles. Chama-se “teologia natural” ao estudo racional de Deus. A “teologia revelada” é o estudo de Deus baseado na fé e na revelação.
Dois outros problemas igualmente muito discutidos são o papel dos milagres enquanto provas da existência de Deus, a que David Hume levantou fortes objecções (ver milagre), e o problema do mal.
Muitos filósofos fideístas (ver fideísmo) defendem que a questão de saber se Deus existe não é susceptível de discussão racional: é uma questão fé.
Outros problemas igualmente importantes são os seguintes: Será que a existência de Deus é compatível com a liberdade humana? Será que existe vida depois da morte? Como compreender conceitos como o de fé, salvação e criação, entre outros? (Célia Teixeira)
Swinburne, Richard, Será que Deus Existe? (Lisboa: Gradiva, 1998).
Blackburn, Simon, Pense: Uma introdução à Filosofia, Capítulo 5 (Lisboa: Gradiva, 2001).
Ward, Keith, Deus, Fé e o Novo Milénio (Mem Martins: Publicações Europa-América, 2000).
Warburton, Nigel, Elementos Básicos de Filosofia, Capítulo 1 (Lisboa: Gradiva, 1998).
Disciplina filosófica centrada na natureza e função do estado que está muito ligada à ética e que, tal como esta, tem um carácter normativo (ver normativo/descritivo).
O problema fundamental desta disciplina é o de saber como deve o estado relacionar-se com os cidadãos. Este problema dá origem a questões mais específicas: o que legitima a autoridade do estado? Até que ponto e para que fins pode o estado limitar a liberdade dos cidadãos? Em que medida e em que aspectos deve o estado fomentar a igualdade entre os cidadãos? O que é (ou seria) um estado que exibisse uma perfeita justiça social? Se a democracia é a melhor forma de governo, o que explica a sua superioridade? Será que mesmo num estado democrático o recurso à desobediência civil por vezes se justifica? E o recurso à discriminação positiva? Será uma forma aceitável de reagir a desigualdades profundas?
Ao procurar respostas satisfatórias para estas perguntas, os filósofos propõem teorias que têm frequentemente resultados práticos importantes, mas por vezes inesperados. A filosofia política de Marx, por exemplo, desencadeou revoluções em inúmeros países. E o pensamento de Mill promoveu a liberdade de expressão e a igualdade política entre homens e mulheres. Apesar de ser uma das disciplinas filosóficas mais cultivadas desde a Antiguidade, durante o século passado a filosofia política acusou um certo declínio até que, nos anos 70, Rawls revitalizou a reflexão neste domínio com Uma Teoria da Justiça (1971, trad. 2001 Presença). Ver contratualismo, Maquiavel, utopia. (Pedro Galvão)
Warburton, Nigel, “Política" in Elementos Básicos de Filosofia (Lisboa: Gradiva, 1998).
Costuma-se dividir a história da filosofia ocidental em quatro períodos, de acordo com a divisão habitual da própria história. Fala-se assim de filosofia antiga (do séc. VI a.C. ao séc. III d.C.), medieval (sécs. III-XV), moderna (sécs. XVI-XVIII) e contemporânea (do séc. XIX aos dias de hoje).
A filosofia ocidental surgiu na Grécia antiga, no séc. VI a.C. Os primeiros filósofos gregos foram Pitágoras (c. 580–500 a.C.) e Tales de Mileto (c. 624-546 a.C.), sendo ambos igualmente os fundadores do que hoje chamamos “ciência" (que eles não distinguiam da filosofia). Os primeiros filósofos dedicaram uma especial atenção à cosmologia (que hoje é uma disciplina científica), isto é, ao estudo da origem e natureza última do universo. Sócrates e Platão dedicaram-se depois a problemas éticos e políticos, assim como a alguns aspectos mais conceptuais da filosofia. Fizeram da procura de definições explícitas de conceitos básicos como beleza, justiça e conhecimento a sua actividade principal. Aristóteles desenvolveu praticamente todas as áreas da filosofia e da ciência, e estabeleceu firmemente o estudo sistemático de problemas filosóficos e científicos. Fundaram-se várias escolas dedicadas ao estudo da filosofia e surgiram vários filósofos importantes.
No período medieval a filosofia foi estudada num contexto sobretudo religioso. Muitos filósofos deste período foram extraordinariamente perspicazes, tendo desenvolvido algumas ideias e argumentos hoje considerados centrais em filosofia, não só na filosofia da religião e na metafísica, mas também na ética, filosofia da linguagem e lógica. Alguns dos debates mais importantes da época incluem o problema dos universais, as provas da existência de Deus e a compatibilidade entre a presciência divina e o livre-arbítrio humano (a presciência é a capacidade para saber de antemão o que vai acontecer). Alguns dos mais destacados filósofos ocidentais do período medieval foram Santo Agostinho, Santo Anselmo (1033-1109) (ver argumento ontológico), Abelardo (1079-1142), Tomás de Aquino, Duns Escoto (c. 1265-1308) e Guilherme de Ockham.
No período moderno, a epistemologia foi considerada por muitos filósofos o ponto de partida da filosofia. Descartes tornou-se um dos mais influentes filósofos de sempre. Neste período, a oposição entre empirismo e racionalismo tornou-se central. Do lado racionalista, juntamente com Descartes, estão filósofos como Espinosa (1632–77) e Leibniz. Do lado empirista, filósofos como Hobbes, Locke, Berkeley e Hume. Hobbes, Locke, Hume e Espinosa deram uma atenção especial à ética e à filosofia política, que tinham sido negligenciadas por Descartes. Outros filósofos importantes deste período foram Voltaire (1694-1778) e Jean- Jacques Rousseau (1712–78). Kant prossegue o trabalho dos filósofos racionalistas e empiristas, ocupando-se sobretudo de ética, epistemologia e metafísica. A sua obra foi uma das mais influentes de sempre. Os seus sucessores alemães, Fichte (1762–1814) e Hegel, adoptaram o idealismo. Schopenhauer (1788-1860) adopta a filosofia de Kant, mas desenvolve uma filosofia pessimista, muito influente nos sécs. XIX e XX, segundo a qual a existência humana é completamente desprovida de sentido. Jeremy Bentham (1748-1832) desenvolve o utilitarismo, uma das mais importantes teorias éticas e políticas, e a principal rival da ética de Kant e da filosofia política de Marx.
No séc. XIX, e sobretudo a partir do séc. XX, a filosofia conhece uma vitalidade e diversidade que ultrapassa de longe qualquer período histórico anterior. Alguns filósofos alemães e franceses fundam correntes como o existencialismo, a fenomenologia e a hermenêutica; nestas áreas, destacam-se filósofos como Husserl, Heidegger e Sartre. Alguns filósofos ingleses e americanos deixam-se influenciar decisivamente pelo trabalho de Frege, Russell e Wittgenstein, recuperando o projecto original da filosofia: o estudo racional de problemas conceptuais. Sobretudo depois da segunda guerra mundial, florescem disciplinas antes negligenciadas, como a metafísica, a filosofia da religião, a filosofia da arte, a ética, incluindo a ética aplicada) e a filosofia política. A filosofia da ciência e a epistemologia atingem resultados de grande importância, assim como a filosofia da linguagem e a lógica, que em grande parte se autonomiza relativamente à filosofia. A filosofia, tal como as artes e as ciências, entra no séc. XXI com um grau de sofisticação, pertinência e alcance nunca antes atingido. (Desidério Murcho)
Kenny, Anthony, História Concisa da Filosofia Ocidental (Lisboa: Temas e Debates, 1999).
Meta, objectivo ou fim de algo. A finalidade de uma acção é o resultado que se pretende obter com essa acção. Distingue-se as finalidades últimas das instrumentais. Apanhar o comboio pode ser uma finalidade instrumental, se temos por objectivo ir ao Algarve; mas beber um copo de leite pode ser uma finalidade última, se o fazemos unicamente por prazer. As finalidades instrumentais visam outras finalidades, ao passo que as finalidades últimas se esgotam em si. Em ética procura-se determinar quais são as finalidades racionais últimas, se é que existem. Em filosofia da acção discute-se se existe uma relação causal entre a acção e a sua finalidade, e qual dos termos desta relação é a causa e qual é o efeito: embora pareça adequado conceber a acção como causa e a finalidade (o resultado que se pretende obter) como efeito, a maneira como falamos parece inverter o sentido da relação causal — por exemplo, quando se diz “estou a estudar por causa do teste de amanhã”, é a finalidade que parece ser a causa e a acção que parece ser o efeito. Esta inversão confronta-nos com uma situação em que o efeito parece anteceder a causa, o que fere a noção comum de causalidade. Ver causa/efeito. (António Paulo Costa)
Par de conceitos opostos que são usados em contextos filosóficos muito diversos. Os filósofos gregos usaram-nos para pensar a realidade, associando finitude a acabado e perfeito, e infìnitude a indeterminado e imperfeito. Com os primeiros pensadores cristãos, as polarizações inverteram-se e estes conceitos passaram a servir para pensar a relação do homem, entendido como finito, limitado ou imperfeito, com o divino, entendido como infinito, ilimitado ou perfeito, e embora mais recentemente alguns pensadores contemporâneos, como Heidegger e Sartre, tenham posto em causa o segundo pólo desta relação, ela continua a ser importante na filosofia da religião. Ver deus, imanente/transcendente. (Álvaro Nunes)
Teoria segundo a qual tudo o que existe tem uma natureza física. O fisicista sustenta que todos os estados ou mudanças do mundo são apenas estados ou mudanças de matéria e energia; e defende que aquilo que existe possui apenas propriedades físicas, como a forma, a dimensão, a carga eléctrica ou o estado de movimento. Se for verdadeira, a teoria tem consequências para a discussão do problema corpo/mente: os acontecimentos mentais, exemplificados por sentimentos de dor, tristeza, entusiasmo, esperança, etc., nada mais serão do que eventos físicos ou, mais precisamente, acontecimentos cerebrais e neurofisiológicos. Recusando o dualismo corpo/mente, o fisicismo é, a par com o idealismo, uma das mais influentes doutrinas monistas. Várias versões de fisicismo foram defendidas ao longo da história, por exemplo, por Demócrito de Abdera (460 a.C.-370 a.C.), Thomas Hobbes ou W. v. O. Quine. Ver propriedade e dualismo/monismo. (António Paulo Costa)
Não é possível definir explicitamente a noção de forma lógica, mas pode-se dar exemplos claros: é evidente que há algo de comum às seguintes afirmações: “Se Deus existe, então a vida não faz sentido” e “Se Sócrates era ateniense, então não era alemão”. O que as duas frases têm de comum pode-se explicitar usando símbolos: Se P, então Q. Quando se substitui P por “Deus existe” e Q por “a vida não faz sentido” obtém-se a primeira afirmação. Quando se substitui P por “Sócrates era ateniense” e Q por “Sócrates não era alemão” obtém-se a segunda (que eliminou a repetição desnecessária da palavra “Sócrates”). Esta é a forma lógica mais superficial de afirmações muito simples, sendo suficiente para determinar a validade de certos tipos de argumentos, como o modus tollens e o modus ponens, por exemplo. A forma lógica de muitas afirmações é objecto de intensa discussão filosófica. (Desidério Murcho)
As propriedades formais, comuns a todas as obras de arte, e só a elas, que provocam em nós emoções estéticas (ver emoção estética). Segundo o filósofo e crítico de arte Clive Bell (1881–1964) um objecto desperta em nós emoções estéticas se, e só se, tiver forma significante. Defende, assim, uma teoria formalista da arte (ver formalismo estético). Não se trata simplesmente de afirmar que as obras de arte têm uma forma, porque isso muitas coisas que não são arte têm. A forma significante consiste, no caso da pintura, numa certa combinação de linhas e cores; no caso da música, numa determinada organização temporal dos sons, etc. Falamos de forma significante quando referimos aspectos como a harmonia, o equilíbrio, a proporção, a elegância, etc. De acordo com a teoria da forma significante, é irrelevante se uma obra representa alguma coisa e qual a intenção do artista que a criou, pois o que conta são as suas propriedades internas. (Aires Almeida)
Ver lógica formal.
Doutrina segundo a qual apenas as características formais de uma obra fazem dela uma obra de arte e que as obras de arte devem ser avaliadas apenas em função de tais características. Como características formais costumam ser referidas a harmonia, o equilíbrio, a proporção, a elegância, a simplicidade, a complexidade, a unidade, o ritmo, etc. As teorias formalistas opõem-se geralmente às teorias da imitação e da expressão. O que importa, para o formalista, não é aquilo que está a ser imitado (nem o virtuosismo da imitação) e também não interessam os sentimentos supostamente expressos pelo artista (ou sentidos pelo espectador), visto que esses são critérios exteriores às próprias obras. Para o formalista só as propriedades intrínsecas da obra contam. Muitos artistas tinham como ideal esta concepção da arte, como os compositores do período clássico (Mozart e Haydn), ou os pintores neo-clássicos (Ingres e Jacques Louis David). Em filosofia da arte, as teorias de Clive Bell (1881–1964) e do célebre crítico musical Eduard Hanslick (1825-1904), são teorias formalistas. Também o esteticismo de Walter Pater (1839-94) e Oscar Wilde (1854-1900) é normalmente associado ao formalismo estético. Ver também forma significante. (Aires Almeida)
(1926-84) Filósofo francês, Foucault é autor de uma obra desconcertante, que se situa entre a filosofia, a psicanálíse, a história e a linguística de maneira pouco convencional. Professor no Collège de France, as suas aulas intencionalmente obscuras trouxeram-lhe a fama de filósofo carismático. A sua investigação atravessa duas fases distintas. A primeira, conhecida como arqueológica, procura determinar as origens de práticas, teorias e instituições específicas. Na obra Loucura e Civilização (1961), por exemplo, Foucault tenta mostrar que o asilo teria sido uma instituição destinada a ocultar a relação perturbadora entre razão e loucura, que constituiria assim a “camada subterrânea” sobre a qual teria sido construído. A segunda fase consiste numa análise crítica das formas de exclusão social e cultural. Em Vigiar e Punir (1975), por exemplo, defende que a prisão moderna não resulta, como se pretende, do desejo de tratar os delinquentes de maneira mais humana, mas da intenção de dominar com eficácia indivíduos que ameaçam os poderes sociais e políticos. Este é apenas um caso da tese geral de que o conhecimento e o discurso humanista legitimam o poder instituído. A investigação de Foucault tem o objectivo de desafiar as divisões mais importantes de toda a nossa cultura: a divisão entre bem e mal, verdadeiro e falso (ver verdadeiro/falsidade), normal e patológico. Talvez isso explique que, para os seus admiradores, Foucault seja uma espécie de herói cultural. Ver também estruturalismo. (Faustino Vaz)
Foucault, Michel, A Arqueologia do Saber (Coimbra: Almedina, 2005)
Foucault, Michel, As Palavras e as Coisas (Lisboa: Edições 70, 2002)
Foucault, Michel, História da Sexualidade, vols. I, II e III (Lisboa: Relógio d'Água, 1994)
Uma sequência de palavras susceptíveis de serem usadas para fazer uma asserção ou uma pergunta, dar uma ordem ou exprimir um desejo. Um conjunto de palavras como “Se a neve é” não é uma frase. Uma frase interrogativa faz uma pergunta (“Será que Deus existe?”), uma frase imperativa dá uma ordem (“Não te atrevas a discordar de Kant!”), uma frase declarativa faz uma afirmação (“O aborto devia ser totalmente proibido”). Só as frases declarativas exprimem proposições, mas nem todas as frases declarativas exprimem proposições; uma frase declarativa como “As ideias verdes dormem furiosamente juntas” não exprime qualquer proposição. Não se deve confundir frase com proposição. (Desidério Murcho)
Matemático, lógico e filósofo da linguagem, da matemática e da lógica alemão. Revolucionou a lógica, sendo consensualmente considerado o fundador da lógica moderna e posto a par de Aristóteles como um dos grandes nomes da história da disciplina.
Enquanto lógico, o seu objectivo básico foi a criação de um sistema formal no qual as demonstrações matemáticas pudessem ser rigorosamente formuladas, tornando explícitos todos os seus passos e permitindo assim a máxima clareza na justificação da sua validade (ou na exposição da sua invalidade). O seu inovador sistema permitiu pela primeira vez representar de modo sistemático relações lógicas que a forma gramatical das frases da linguagem corrente muitas vezes oculta. Por exemplo, Frege tornou popular a ideia de que a forma lógica de uma frase como “Todos os homens são mortais” esconde uma condicional (“Tome-se qualquer objecto; se esse objecto for um homem, então é mortal”). As inovações contidas na lógica de Frege perduraram até hoje e são os traços fundamentais da chamada “lógica clássica" (ver cálculo proposicional, cálculo de predicados, lógica), a qual substituiu com vantagem a lógica aristotélica como cânone da disciplina. As vantagens da substituição advêm não só do maior rigor do sistema de Frege mas também do seu maior poder expressivo. Com o sistema de Frege é possível, por exemplo, representar a forma lógica de afirmações como “se estiver a chover, nenhum estudante comparecerá” e “qualquer rapariga ama um actor americano”. O sistema permite, entre outras coisas, desfazer a ambiguidade de âmbito dos quantificadores de que esta última é um exemplo (a frase tem quer o significado de “qualquer rapariga ama um actor americano qualquer” quer o de “há um actor americano que todas as raparigas amam”).
Frege foi igualmente importante como filósofo da linguagem. Vale a pena notar que os princípios semânticos associados à sua lógica podem ser usados no estudo sistemático da linguagem corrente. Em particular, a sua distinção entre sentido e referência influenciou decisivamente não só a filosofia da linguagem posterior mas também a linguística moderna (ver semântica). Para Frege, as proposições ou “pensamentos” são entidades autónomas e objectivamente apreensíveis (uma concepção muitas vezes designada de “platonismo”, ver Platão) e não conteúdos psicológicos subjectivos e incomunicáveis. Em coerência com esta tese, também em filosofia da lógica Frege era anti-psicologista; e o seu anti-psicologismo nesta área determinou o modo como as leis da lógica passaram a ser canonicamente vistas: já não enquanto descrições do modo como os seres humanos de facto raciocinam, mas como princípios ilustrativos do modo como eles devem raciocinar para que os seus argumentos sejam válidos. Ver também cálculo proposicional, cálculo de predicados, lógica, lógica clássica. (Pedro Santos)
Frege, Gottlob, Fundamentos da Aritmética (Lisboa: INCM, 1992).
Kenny, Anthony, História Concisa da Filosofia Ocidental, cap. 21 (Lisboa: Temas e Debates, 1999).
Magee, Bryan, Os Grandes Filósofos, cap. 14 (Lisboa: Presença, 1989).
Ver operador verofuncional.
Perspectiva segundo a qual a arte tem uma função, servindo algum propósito ou finalidade. O funcionalismo estético, também chamado “instrumentalismo estético”, opõe-se assim ao esteticismo. A ideia de que a arte é um meio privilegiado para atingir certos fins considerados importantes é que justifica, de acordo com o funcionalista, o valor que lhe damos. Dependendo do tipo de função atribuída à arte, assim também podemos encontrar teorias funcionalistas diferentes: para uns, como o alemão Theodor Adorno (1903-69), tem uma função social; para outros, como o escritor russo Leão Tolstoi (1828-1910), tem uma função moral; para outros ainda, como o americano Nelson Goodman, a arte serve para aumentar o conhecimento. Ver também cognitivismo estético. (Aires Almeida)
Perspectiva epistemológica (ver epistemologia), segundo a qual as nossas crenças se apoiam num número reduzido de crenças mais básicas que servem de fundamento a todo o conhecimento. A ideia pode ser melhor compreendida a partir da conhecida metáfora de descartes que descreve o conhecimento como um edifício que precisa de se apoiar em alicerces sólidos. Tais alicerces têm de ser formados por um tipo diferente de crenças, cuja evidência seja indisputável. Assim, o fundacionalismo constitui uma perspectiva acerca do modo como se estrutura a justificação do nosso conhecimento. Quando pensamos no modo como justificamos a maior parte das nossas crenças, verificamos que o fazemos recorrendo a outras crenças que nos parecem mais evidentes do que as anteriores. Mas estas crenças precisam, por sua vez, de ser justificadas com outras crenças ainda mais evidentes, e assim sucessivamente, a não ser que se disponha de um conjunto limitado de crenças fundamentais e completamente evidentes, que bloqueiem o risco de regressão ao infinito. O fundacionalismo constitui, por isso mesmo, uma resposta às dúvidas dos cépticos (ver cepticismo) acerca da possibilidade de justificar satisfatoriamente as nossas crenças e opõe-se ao coerentismo, segundo o qual as nossas crenças se apoiam mutuamente entre si, sem qualquer necessidade de recorrer a qualquer tipo de crenças que lhes sirvam de fundamento. É de salientar que as crenças fundamentais exigidas pelo fundacionalista tanto podem ser de natureza empírica, apelando assim para um tipo de evidência sensível (ver empirismo), como de carácter racional, apelando para uma evidência de tipo racional (ver racionalismo). (Aires Almeida)