A colecção Filosofia Aberta atingiu o décimo segundo volume com “O Significado das Coisas”, um livro notável de A. C. Grayling. Especialista em Berkeley, Wittgenstein e Russell, Grayling partilha com este último um interesse profundo tanto pela metafísica e epistemologia logicamente disciplinadas, como pela filosofia literária acessível a um público amplo. “O Significado das Coisas” situa-se neste segundo domínio. Consiste numa colecção de várias dezenas de pequenos ensaios que começaram por ser contribuições para “Last Word”, a coluna que Grayling manteve no “Guardian” durante vários anos.
Levando a sério a ideia socrática de que uma vida sem reflexão não merece ser vivida, Grayling procura proporcionar nos seus ensaios “esboços de mapas” para uma melhor compreensão da condição humana. Os ensaios, na sua maior parte com apenas três páginas, reflectem uma adesão sem reservas às virtudes liberais humanistas que emergiram com o Iluminismo. A diversidade temática é um dos aspectos mais atraentes do livro: entre muitos outros, encontramos ensaios sobre a tolerância, o medo, a franqueza, a morte, a vingança, a fé, a virgindade, a leitura, a traição e a privacidade. No fim aguarda-nos mesmo um ensaio sobre ninharias. Todos os ensaios são autónomos, pelo que o leitor pode escolher livremente o percurso a seguir.
A primeira das três partes do livro, “Virtudes e Atributos”, é tão heterogénea que não se consegue identificar um traço nítido que unifique os ensaios que a constituem, mas a sequência da sua apresentação está longe de ser arbitrária — por exemplo, as observações acerca da tolerância seguem-se imediatamente à crítica aos “moralizadores”, que recorrem à fantasia moralista dos “valores da família” para tentar impor o seu estilo de vida aos outros. E pouco depois surge o ensaio sobre civilidade, onde se defende que o problema do mundo ocidental não consiste num recuo moral, mas num défice generalizado de boas maneiras.
Já os ensaios da segunda parte, “Inimigos e Falácias”, têm um propósito comum bem definido: Grayling procura aí examinar algumas das coisas que se tornam obstáculos à prosperidade humana. Cerca de metade desta parte do livro é dedicada a uma crítica implacável à religião. “A atitude religiosa”, declara-se no ensaio sobre o cristianismo, “é marcada por uma forte recusa em aceitar as coisas como são, se isso se revelar inconveniente”. Grayling mostra-se especialmente perplexo com a posição privilegiada que é concedida às Igrejas no debate social acerca da moral, pois julga não existirem organizações menos competentes para deterem tal posição. Pedir às Igrejas que assumam um papel privilegiado em debates éticos, acrescenta Grayling usando uma imagem expressiva, é como pedir à raposa que estabeleça as regras da caça à raposa. E não nos devemos impressionar sequer com as organizações caritativas apoiadas pelas Igrejas, pois “o artifício da preocupação caritativa exibido pelas organizações religiosas faz pouco para compensar o imenso sofrimento que cada religião infligiu ao mundo e que constitui, de longe, a maior parte dos frutos pelas quais as conhecemos”.
Nem a terceira profecia de Fátima escapa ao escrutínio crítico de Grayling. No ensaio sobre profecias, a revelação do conteúdo da mesma pelo Vaticano merece o seguinte comentário: “As profecias são sempre mais plausíveis quando os seus futuros são os nossos passados, de forma a podermos interpretá-las historicamente”.
A segunda parte do livro inclui ainda ensaios interessantes sobre o capitalismo e o especismo — a discriminação baseada na espécie.
A terceira e última parte, “Amenidades e Bens”, conduz-nos a horizontes mais agradáveis. A arte, a saúde, o lazer e as viagens contam-se entre os tópicos abordados, mas talvez aqui os ensaios mais importantes sejam os relativos ao ensino e à excelência. Para além de defender inteligentemente a importância do “ensino liberal”, no qual a literatura, a história e a apreciação das artes recebem a mesma atenção que as matérias científicas e práticas, Grayling opõe-se ao “espírito democrático negativo”, bem característico do ensino português, que resulta na aversão à procura da excelência e numa forte tendência para o nivelamento por baixo.
“O Significado das Coisas” propicia seguramente uma leitura aprazível. A tradução portuguesa faz inteira justiça à elegância literária de Grayling, que escreve de uma forma sempre lúcida e cativante, fazendo um uso criterioso da citação breve. O humor e a ironia estão presentes, quase omnipresentes, ao longo do livro, e mesmo os ensaios mais modestos no seu alcance filosófico não deixam de proporcionar um entretenimento delicado. Para saber mais sobre Grayling e ler alguns dos seus artigos, visite o “site” do autor em http://www.acgrayling.com.